Pokémon
A partir da clonagem da ovelha Dolly, em 1997, todos sabemos que a do homem está ao alcance da proveta. A ciência ultrapassou a ficção, na medida em que ela supera o “método Bokanosky”, imaginado por Aldous Huxley em O Admirável Mundo NovoIgnacio Ramonet
Quem é que não conhece o Pokémon? Jogo de vídeo, da Game Boy, do Nintendo, desenho animado e jogo de cartões que se colecionam, o Pokémon e a sua miríade de sub-produtos comercializados invadiram o mundo com uma rapidez impressionante.
Criado a partir da contração das palavras pocket monster (monstro de bolso), o termo designa uma espécie de elfos transgênicos, diabinhos da era biotecnológica, “criaturas que vivem nas pastagens, florestas, cavernas, lagos”. [1] Existem 150 deles. Todos, únicos, com seu caráter genético específico. Alguns são raros, outros difíceis de apanhar. O objetivo do jogo é pegar os Pokémon. Depois de capturá-los, é preciso domesticá-los, treiná-los, para que eles produzam uma mutação da espécie. Aí eles podem mudar de forma, passar por uma metamorfose, em suma, “evoluir” (este é o conceito darwiniano que é utilizado no jogo), adquirindo novas faculdades, mais poderes…
Inquietações profundas
Na hora da revolução das biotecnologias, da técnica de clonagem e da invasão de organismos geneticamente modificados (OGM), o que haveria de espantoso no fato dessa epopéia de “simpáticos mutantes” fascinar as crianças?
As possibilidades de intervenção sobre o patrimônio genético não cessam de crescer. E a produção de animais transgênicos, a clonagem, a seqüência do genoma humano, a terapia genética, o patenteamento de seres vivos, o rastreamento genético de doenças hereditárias e a utilização de exames genéticos não poderiam deixar de provocar inquietações profundas. [2]
Novas formas de “pensar”
É bom lembrar que, desde as décadas de 60 e 70, pesquisadores como José Delgado, um dos mais fervorosos defensores do controle do espírito face a uma “sociedade psico-civilizada” que chegava, afirmava, nos Estados Unidos, que a questão filosófica central deixava de ser “O que é o homem?”, e passava a ser “Que tipo de homem devemos fabricar?”
O professor Marvin Minsky, um dos pais do computador, previa: “No ano 2035, o equivalente eletrônico ao cérebro será, graças à nanotecnologia, menor que a ponta do seu dedo. Isso significa que você poderá ter, no interior do seu crânio, o espaço que for necessário para implantar sistemas e memórias suplementares. Então, gradativamente, você poderá aprender mais a cada ano, acrescentando novos tipos de percepção, novos tipos de raciocínio, novas formas de pensar e de imaginar.” [3]
Ciência ultrapassa a ficção
Não foi o norte-americano Francis Fukuyama que garantiu que “daqui a duas gerações, as biotecnologias nos darão os instrumentos que permitirão conseguir o que os especialistas da engenharia social não conseguiram. Nessa etapa, teremos definitivamente terminado a história humana, pois teremos abolido os próprios seres humanos enquanto que tais. Começará, aí, uma nova história, além do humano”? [4]
A partir da clonagem da ovelha Dolly, em fevereiro de 1997, todos sabemos que a do homem está ao alcance da proveta. A ciência ultrapassou a ficção, na medida em que ela supera o “método Bokanosky”, imaginado por Aldous Huxley em O Admirável Mundo Novo. Isso porque Dolly não nasceu de qualquer tipo de fecundação: seu embrião foi simplesmente criado pela fusão do núcleo de uma célula adulta com o óvulo de uma ovelha grávida. A partir de então, já foram clonados ratos, no Havaí, carneiros, na Nova Zelândia e no Japão, cabras, na América do Norte etc. Desde 1998, a revista científica The Lancet, inglesa, vem avaliando que, apesar de todas as precauções morais e mundiais, a criação de seres humanos por clonagem tornou-se “inevitável”, assim como vem propondo que a comunidade médica o “admita desde já”.
Apropriação selvagem do mundo
Foi com esse espírito que os meios de comunicação anunciaram o nascimento de uma nova era no dia 26 de junho de 2000, data da decodificação dos cerca de três bilhões de pares de bases – acopladas, em cadeia, ao longo dos vinte e três cromossomos – que compõem o nosso patrimônio hereditário. O que irá permitir identificar a seqüência de genes envolvidos nas doenças. Potencialmente, os benefícios para a humanidade são enormes, já que a identificação de um gene responsável por uma doença hereditária abre caminho para a descoberta de um possível tratamento e cura.
Mas ainda estamos longe de termos uma noção exata das conseqüências dessa descoberta, que pode levar a perigosos desvios. Hoje, como nunca antes, a genética permite ao homem exercer “uma apropriação selvagem do mundo, uma versão moderna da escravatura ou da metódica devastação dos recursos naturais, como fizeram as empresas coloniais”. [5] Isso porque patentear genes significa privatizar um patrimônio comum à humanidade. E vender a informação à indústria farmacêutica – que a preservaria para alguns privilegiados – pode transformar este importante avanço científico numa fonte de discriminação. [6]
Uma espécie de transhumanidade
Além do mais, a engenharia genética prenuncia um novo tipo de eugenia que desemboca numa espécie de transhumanidade. Não é difícil perceber os contornos da “criança perfeita”, selecionada de acordo com a excelência de seu código genético…
Nossas sociedades apenas o ousam confessar, mas um indescritível pavor começa a aterrorizá-las: irá a espécie humana passar por um processo de fabricação em série? Com os recursos maciços das bi
Ignacio Ramonet é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.