Políticas de vida e de morte no controle proibicionista das drogas
Aumenta nacionalmente, de forma gradual e contínua, o número de vítimas de mortes intencionalmente provocadas: em 2018, mais de 65 mil pessoas cuja vida foi eliminada tiveram sua morte registrada oficialmente como “homicídio”, sendo o maior crescimento nas capitais de estados do Norte e Nordeste.
Com mais de 800 mil pessoas encarceradas no sistema prisional, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgados neste ano, das quais cerca de 40% ainda aguardam julgamento, o Brasil segue aumentando o número de pessoas presas e já figura como a terceira maior população prisional do mundo, seguindo Estados Unidos (1º lugar) e China (2º lugar). Das pessoas presas no Brasil, a grande maioria é homem, dos quais cerca de 30% são acusados por crimes relacionados ao varejo de substâncias psicoativas tratadas como ilícitas, também conhecido como “tráfico de drogas”. Quando olhamos as mulheres encarceradas, somam-se mais de 60% destas sob acusação de crimes nos quais as “drogas” – notadamente pequenas quantidades de substâncias como maconha e cocaína – servem como material para incriminação. Ainda, cada vez mais observamos, com base em pesquisas realizadas no sistema prisional junto a mulheres presas provisórias, o grande número daquelas que, por seus vínculos afetivos, pessoais e sociais com outros sujeitos já criminalizados, são encarceradas sob a categoria penal do crime de “associação ao tráfico”.
Aumenta também nacionalmente, de forma gradual e contínua, o número de vítimas de mortes intencionalmente provocadas: em 2018, mais de 65 mil pessoas cuja vida foi eliminada tiveram sua morte registrada oficialmente como “homicídio”, sendo o maior crescimento nas capitais de estados do Norte e Nordeste. Crimes esses que, apesar de sua alta incidência, apresentam baixo índice de elucidação. Segundo o CNJ, menos de 10% desses crimes são investigados e encaminhados ao sistema de justiça criminal pelas polícias investigativas por meio dos inquéritos, procedimentos burocráticos e administrativos produzidos pela Polícia Civil e encaminhados ao Ministério Público para denúncia ou não.
Isto é, o encarceramento em massa, ou o hiperencarceramento de um segmento específico da população, não corresponde à responsabilização por aquele que seria um dos crimes mais graves e relevantes, a saber, o crime de matar alguém. Ao contrário, além de pequenas quantidade de drogas, muitas vezes apreendidas em flagrantes forjados por policiais – como ocorrido com o jovem negro Rafael Braga –, homens e mulheres, em sua maioria jovens e negros, têm sido encarcerados por crimes relacionados ao patrimônio cometidos sem violência, como roubos e furtos.
Por outro lado, das vítimas de “homicídios”, cerca de 75% delas são jovens homens negros. E, quando interseccionados diferentes marcadores sociais e identitários, observamos que, enquanto para mulheres brancas os índices de letalidade diminuíram, são as mulheres negras as mais vitimizadas por feminicídio. Proporcionalmente, quase 64% do total de mulheres assassinadas são negras, de acordo com dados apresentados no Atlas da violência elaborado pelo Ipea em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nesse jogo no qual mortes são registradas e classificadas em diferentes categorias, no estado do Rio de Janeiro, ao longo do primeiro semestre de 2019, apesar do decréscimo no registro total de homicídios dolosos, aumentou em 15% o número de pessoas executadas por agentes estatais. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) apresentados pela pessoa do governador do estado, Wilson Witzel, em maio deste ano, os “homicídios decorrentes de intervenção policial”, também conhecidos como “autos de resistência”, estão compondo mais de um quarto do total de mortes intencionais. O governador, alinhado com o governo federal, liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, e apoiado pela autodenominada bancada armamentista nas casas legislativas estadual e federal, tem aproveitado oportunidades públicas de sua função para estimular, endossar e justificar mortes cometidas e legitimadas pela ação de agentes do estado. Sob a acusação de que essas vítimas seriam “traficantes”, “bandidos” e “criminosos”, essas mortes seriam justificáveis e, para certas moralidades, desejáveis, pois esses mortos, em vida, estariam “envolvidos” com práticas que transformam esses corpos em extermináveis e essas vidas em substituíveis.
Tais acusações estigmatizantes e incriminatórias ganham ainda mais legitimidade por meio da Súmula 70, decisão colegiada dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que autoriza que, em casos nos quais houve apreensão de drogas ilícitas, os policiais responsáveis pela ocorrência sejam as únicas testemunhas do fato.
Jovens negros e pobres cada vez mais são encarcerados, vitimados pela conflitualidade armada na sociedade ou pela violência de estado letal que se autolegitima ao retroalimentar discursos de medo e ódio construídos sobre a figura do inimigo indesejado, vinculado ao uso e, principalmente, à circulação de (algumas) drogas.
Diante desse contexto, ecoa a pergunta enunciada pela vereadora Marielle Franco, covardemente executada no dia 14 de março de 2018: “Quantos mais têm que morrer pra essa guerra acabar?”. Daí, uma série de questões sobre essa “guerra” que tem sido vivida, observada, descrita e registrada por meio de uma série de números, categorias e narrativas pode ser enunciada e permite analisar e questionar a atual política de drogas, seus mecanismos e efeitos.
O que faz o Estado realizar políticas de segurança pública cujo principal resultado é a produção constante de mortes e exclusão social? Por quais meios a alternativa de repressão e punição é atualizada com justificativas de conter e proibir o mercado varejista de drogas? Quais são efeitos de uma política de drogas usada para justificar uma política de segurança pública altamente repressiva e punitiva? Diante de tantas pessoas que estão sendo fatalmente atravessadas, quem são aqueles que insistem nesses modelos e inspiram tais práticas? E mais: por quais meios se atualizam na rotina das burocracias do Estado tecnologias e ferramentas que mantêm a funcionalidade de uma política de drogas voltada para a gestão de populações negras e pobres, que vulnerabiliza e precariza esses sujeitos em suas formas de viver? Ou, dito de outro modo, quem ganha com a morte e a prisão de tantos homens e mulheres jovens que perdem sua vida, seus direitos e liberdades e que sofrem na pele as marcas de uma sociedade historicamente fundada no racismo estrutural?
O modo como o controle da população tem sido exercido pelas instituições estatais pode ser observado pelas ferramentas e técnicas organizadas por uma burocracia policial e judicial que tem entre suas principais características elementos da tradição cartorial inquisitorial e de desigualdade jurídica, como tem examinado o antropólogo Roberto Kant de Lima. Por meio de papéis, documentos encarnados de fé pública, agentes administram e gerem o Estado, regulam relações, controlam o espaço público e inscrevem verdades que legitimam uma política de drogas proibicionista, que, como tem sido demonstrado, atualizam formas de extermínio e dominação de corpos, relações e territórios. Sob o espectro de uma dita “guerra às drogas” se configura uma “guerra na guerra”, como analisa o cientista político Thiago Rodrigues. “Guerra” essa que tem sido usada para justificar uma atuação do Estado cujos efeitos têm sido a morte e o encarceramento da juventude negra e pobre. Em vez de uma política para a promoção da vida e do bem viver, executa-se uma política que redunda na produção de morte, sofrimentos e ódio, operada por um mecanismo estatal de execuções extrajudiciais que, desde institutos médico-legais, delegacias, fóruns e tribunais, são repercutidas pela mídia e encontram ressonância em uma parte da sociedade.
Desse modo, evidencia-se a funcionalidade de um sistema de controle no qual repressão e punição aparecem como formas pelas quais o Estado atua sobre certos segmentos da população e se apresentam sobretudo quando olhamos para quem são essas pessoas que estão sendo mortas e encarceradas pelo Estado em nome da proibição das drogas.
Por um modelo sistemático de controle, repressão e punição, jovens negros e negras que habitam favelas, periferias e subúrbios das regiões metropolitanas das grandes capitais do Brasil são atingidos pelo feixe contínuo da violência estrutural e institucional que se reproduz de forma física, letal e armada.
A cada dia somam-se às estatísticas de mortes novos mortos, vítimas agregadas ao acúmulo de ausências, dores e sofrimentos vivenciados por aqueles atravessados pelo que podemos chamar de “necropoder”, o poder político de demarcar e decidir quem pode viver e quem deve morrer, como discute o filósofo Achille Mbembe. Diante de números que organizam as categorias pelas quais as instituições estatais classificam, organizam e administram “homicídios”, “autos de resistência”, “desaparecimentos” e outras tantas formas de registrar uma “morte matada”, buscam-se justificações para cada vez mais investir em ações e operações de segurança pública que se baseiam no monopólio estatal sobre o uso da força para atuar contra segmentos específicos da população.
Ao mesmo tempo, há em curso o recrudescimento de territórios específicos por parte de agentes que ora se mobilizam em nome de interesses pretensamente institucionais e, portanto, do Estado, ora em nome de interesses corporativos e, portanto, particulares, para, por meio do controle armado, exercer a dominação moral, de regras e do mercado. Controlando a circulação de bens, coisas e pessoas, impõe-se sobre moradores de diferentes partes da Região Metropolitana do Rio de Janeiro um ritmo da vida cotidiana no qual essas comunidades têm restringidas suas possibilidades de diversidade e existência. Além disso, esses grupos se articulam em um mercado global no qual armas, junto com fármacos e substâncias psicoativas ilícitas, as drogas, se configuram como principais mercadorias que de forma ilegal atravessam fronteiras, produzindo a circulação entre circuitos altamente lucrativos e potencializados pelo proibicionismo.
Na sobrevivência e resistência a essa política, mães e familiares de jovens assassinados vivem seu luto em luta e, a partir da morte de seus entes, apoiados por uma potente rede de ativistas, militantes e organizações, demandam memória, verdade e justiça por seus mortos. Na luta por direitos e por garantias de direitos humanos e civis, isto é, o reconhecimento desses mortos e sobreviventes como sujeitos com humanidade, dignidade e cidadania, as políticas de segurança pública e de drogas se tornam objeto de contestação por causa da constatação de sua eficácia enquanto política de promoção de morte e de produção de presos e mortos.
Desse modo, para concluir, evoco outras questões a serem articuladas e analisadas com base na relação entre políticas de vida e morte que geram e gestam desigualdades na sociedade, considerando o marco de que as drogas são argumento suficiente para repressão e punição de certos segmentos sociais. Como lidar com o “problema das drogas” levando em conta seus usos, consumos e circulação social e culturalmente diversos? Como outra política de drogas pode ser usada para a promoção da vida por meio de estratégias e ferramentas de redução de danos, cuidado e responsabilização? E de que maneira uma alternativa ao proibicionismo pode servir para a efetivação da demandada e necessária reparação histórica daqueles cuja vida, corpo e território são criminalizados, precarizados e vulnerabilizados? Essas são apenas algumas questões que aqui proponho e que, longe de serem respostas que apontem para caminhos já prontos, soam como reflexões, e não como soluções, diante dessa complexa situação. Pelo estranhamento de um Estado que, por vezes e cada vez mais, transparece agir contra a sociedade, estruturando relações de poder e controle sobre a morte que limitam e interrompem as potências da existências, como podemos disputar para construir relações que venham a reconfigurar e potencializar as formas diversas de vida?
*Flavia Medeiros é antropóloga, pesquisadora PNPD-Capes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF e do INCT-InEAC, e autora de Matar o morto: uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro (EdUFF, 2016) e de Linhas de investigação: uma etnografia das técnicas e moralidades numa divisão de homicídios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Autografia, 2018).