Por que Basaglia, por que agora?
Em 2024, comemoramos o centenário de Franco Basaglia. Sua presença no Brasil deixou ecos permanentes, auxiliando nas denúncias de violações de direitos humanos e no surgimento do Movimento da Luta Antimanicomial
A pergunta que nos direciona aqui no presente texto é inspirada na tese de doutorado “Por que Fanon, por que agora?” do professor Dr. Deivison Faustino, que discute os diferentes caminhos, usos e apropriações do pensamento de Frantz Fanon no Brasil. O pesquisador argumenta que o legado do autor está sendo reivindicado de maneira diversa por vertentes teóricas distintas e, por vezes, conflitantes.
Posso dizer que a tese de Faustino é leitura obrigatória para os estudiosos, críticos e intelectuais do campo da saúde coletiva e da saúde mental. No meu caso, ela conduz para a encruzilhada, provocando inquietações e provocações que são atualizadas a cada encontro. Fanon, um psiquiatra revolucionário inquieto, rompeu com a institucionalidade manicomial e localizou a psiquiatria como um dos saberes, poderes e práticas de perpetuação do colonialismo. Apesar do seu precioso legado, Fanon nos deixou aos 36 anos, em 1961.
Mas, qual a relação de Frantz Fanon com Franco Basaglia? É nessa encruzilhada que vou seguir a direção do nosso diálogo. Tarefa nada simples para quem precisa partir de rastros e “restos” escondidos nos escombros coloniais para desvelar um encontro entre dois psiquiatras revolucionários e que possuem um lugar importante para a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial brasileira.
No dia 16 de agosto de 2024, tive a oportunidade de participar da banca de defesa de doutorado de Priscilla Santos de Souza, que apresentou o seguinte trabalho: “Traços, restos e laços de Frantz Fanon: contribuições clínicas emancipatórias e anticolonialistas à psicanálise”. Em sua pesquisa, é possível notar o seu brilhantismo e o ineditismo que se exige de uma tese de doutoramento. A pesquisadora, impulsionada por um rigor teórico-metodológico, inspirada nas experiências de mulheres negras e tecida na delicadeza ancestral, retira dos escombros coloniais argelinos os “restos” de casos clínicos atendidos por Frantz Fanon.
Priscilla de Souza convoca para a gira literária a pensadora Lélia Gonzalez, nos fazendo rememorar o lugar que foi destinado aos negros: o lixo! E, “o lixo vai falar, e numa boa!” (Gonzalez, 1983). Os “restos” – que pouco ou nada importam – podem revelar memórias, afetos, afetações, disputas, teorias e inúmeras questões que os detentores das narrativas universalizantes desejam que fiquem esquecidos e não lembrados. Afinal, a quem interessa os “restos”, não é?! Posso dizer, que assim como a brilhante e mais recente doutora, persigo os “restos” fanonianos e os utilizo para apontar sobre a urgência de pensarmos uma saúde mental antirracista.
Frantz Fanon, é leitura obrigatória hoje para aqueles que desejam conhecer o debate da saúde mental em uma perspectiva antirracista, anticolonial e antimanicomial. Entretanto, não é possível trazê-lo desacompanhado do italiano Franco Basaglia, principalmente para dialogarmos com o campo da saúde coletiva, da saúde mental e da Reforma Psiquiátrica brasileira, devido a sua forte influência como inspiração e referência. Esse encontro entre dois baluartes de um outro fazer e pensar na/para saúde mental segue sendo retirado dos escombros coloniais. Por aqui, estamos persistindo nos lastros e “restos” para viabilizar uma aproximação entre suas experiências.
Apesar de Basaglia ser bastante conhecido em terras pindorâmicas pela sua importância na construção da Reforma Psiquiátrica Italiana, por suas visitas ao Brasil e pela crítica ao comparar o Hospital Colônia de Barbacena ao Holocausto Nazista, é necessário retomarmos sua práxis e legado intelectual e político. Temos importantes intérpretes que assumiram a tarefa de tradução, sistematização e análise das experiências protagonizadas por Basaglia, assim como permanecem como memórias vivas desse legado e, aqui, podemos destacar: Fernanda Nicácio, Paulo Amarante, Ernesto Venturini, Maria Stella Brandão Goulart, Diva Moreira, Sônia Barros e Denise Dias Barros.
Em 2024, comemoramos o centenário de Franco Basaglia, momento pertinente para ressaltar a importância da sua trajetória, da necessidade de retomar seus escritos e inspirar-nos em sua práxis. Primeiramente destacamos sobre a importância de Basaglia, não somente enquanto pessoa, mas como representação de um coletivo – diverso e plural – que era o Movimento Democrático Italiano. Apesar da sua liderança e destaque na cena política, ele não caminhava sozinho. Inclusive, vale dizer que Franca Ongaro Basaglia, sua companheira de vida e militância, escreveu e compartilhou muitos dos seus escritos e precisa ser mais bem conhecida e aqui destacamos os apontamentos já em desenvolvimento pela professora Melissa de Oliveira (Pereira, 2024).
Em segundo, retomar o pensamento de Basaglia e seu legado intelectual é primordial para identificarmos as influências filosóficas, clínicas e políticas que atravessaram seu percurso e seguem fazendo eco no território brasileiro. A tese de Daniela Albrecht, “Movimentos contra os manicômios e lutas de classes no Brasil e na Itália: um estudo sobre consciência e estratégia”, apresenta a influência marxista e a trajetória de Basaglia no Partido Comunista Italiano. Além disso, não podemos deixar de destacar a importância de Sartre, Merleau-Ponty, Goffman, Foucault, Fanon e outros pensadores para Franco Basaglia.
Um terceiro ponto, é ressaltar o legado de uma prática que não só transformou a legislação e colocou fim aos manicômios na Itália, mas que modificou vidas e comunidades. Não foi apenas encerrar uma instituição e, sim, realizar mudanças significativas nas formas de lidar com as diferenças e possibilitar novas maneiras de manter-se em relação. Basaglia entendia a dialética entre a micropolítica e a macropolítica. A crítica ao manicômio não se limitava a essa instituição, mas as diversas formas de controle, subjugação e violência que são fundamentais para a reprodução da sociedade capitalista.
E, por fim, é necessário rememorar a importância das vindas de Franco Basaglia ao Brasil. Sua presença deixou ecos permanentes, auxiliando nas denúncias de violações de direitos humanos e no surgimento, posterior, do Movimento da Luta Antimanicomial. Entretanto, é preciso retomar um aprendizado importante deixado pelo psiquiatra revolucionário: “não sei qual é a técnica que servirá para a destruição dos manicômios brasileiros. Não será inglesa, francesa, italiana, muito menos americana. Será uma técnica brasileira. É disto que o Brasil precisa” (Basaglia, 1979, p. 48). Portanto, seguindo os apontamentos do próprio Basaglia, é preciso trazer a memória aquilo que sabemos produzir na Améfrica Ladina, ou seja, a pedagogia da loucura (Correia, 2019), a aquilombação (David, 2024), dentre outras inúmeras práticas e experiências que demonstram nossa rebeldia.
É tempo de reencantamento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial brasileira e, para isso, é necessário rememorar a rebeldia incansável, as primorosas invenções e as diversas conexões de Franco Basaglia. Longe de idealizações e armadilhas da desumanização que podem nos ocorrer, torna-se necessário afirmar a sua humanidade e princípio basilar: a defesa da vida. Assim como Basaglia, seguimos insistindo na luta por uma sociedade sem manicômios, já que “a liberdade é uma luta constante” (Davis, 2018).
Rachel Gouveia Passos é Pós-Doutora em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe.