Por que não conseguimos aproveitar o valor econômico da biodiversidade?
A própria pandemia é consequência direta do impacto que os seres humanos causam nos ecossistemas
Agraciado pela evolução biológica com um tesouro vivo, o Brasil conta com imensas e pouco exploradas vantagens competitivas em relação ao resto do mundo. Os dados constam nos relatórios publicados pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços (BPBES): os ecossistemas brasileiros são os mais biodiversos do planeta e oferecem o maior potencial em variedades para produção de alimentos, pesquisa medicinal, genômica e inovações tecnológicas, como os biomateriais para a construção civil.
A biodiversidade também contribui para a economia com os chamados serviços ambientais, como a polinização, o fornecimento de água em abundância e o equilíbrio do regime de chuvas. Ecossistemas naturais protegidos apresentam maior capacidade de resistência e recuperação quando afetados por situações climáticas extremas.
A compreensão biológica e biomimética das espécies de plantas e animais adquiriu um valor econômico incalculável. Há décadas o biólogo Fernando Reinach, um dos coordenadores do projeto que sequenciou o genoma da bactéria Xylella fastidiosa, uma praga que afeta os laranjais do país, alerta para o potencial de negócios em biotecnologia.
Em janeiro de 2021, matéria da revista Pesquisa FAPESP comemorou o fato de o fundo de investimentos Pitanga Redux, do qual Reinach é conselheiro, ter anunciado um segundo ciclo de negócios para start-ups que tenham por objetivo fornecer soluções de tecnologias com potencial para gerar patentes.
A ciência e as políticas públicas são os pilares do desenvolvimento sustentável
Os fundos de investimentos são um poderoso e necessário estímulo, porém somente a integração das políticas públicas setoriais será capaz de converter de fato nossa capacidade científica em desenvolvimento sustentável: agricultura, energia, cidades, meio ambiente e aperfeiçoamento do marco legal para incentivar a inovação tecnológica.
Resta muito a descobrir sobre nossos ecossistemas. Ninguém sabe quais e quantas espécies são necessárias para sustentar a vida humana, porque as plantas que chamamos de “úteis” dependem de outras para sobreviver, incluindo os micro-organismos do ar e do solo. Também é preciso difundir e tornar acessível o conhecimento já adquirido sobre a biodiversidade brasileira, premissa necessária para a recuperação de áreas degradadas. Associações não governamentais, como o Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), têm muito a contribuir.
O Cria trabalha há vinte anos para tornar acessíveis, de forma on-line, livre e gratuita, as informações sobre a biodiversidade brasileira antes dispersas em acervos e coleções biológicas do Brasil e do mundo. Desenvolve ferramentas de busca, recuperação e análise dos dados. O conhecimento gerado é fruto de uma prática colaborativa entre cientistas de mais de uma centena de universidades e institutos de pesquisa, a maioria associada a programas de pós-graduação.
O carro-chefe do sistema é a rede speciesLink, que mantém uma média de 1,8 milhão de registros e 11 mil imagens utilizadas por dia. Em breve o Cria lançará uma nova interface com a opção de uso de filtros geográficos por regiões brasileiras, biomas, bacias hidrográficas, unidades de conservação e terras indígenas.
Tornar acessíveis os dados relativos à nossa biodiversidade para a pesquisa científica é estratégico para o Brasil e contribui efetivamente para o estabelecimento de políticas públicas de manejo e preservação dos mais variados ecossistemas. Trata-se de um serviço prestado por uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, que requer o devido apoio.
O desenvolvimento sustentável é um bom negócio e condição vital para a adaptação às mudanças climáticas. O tema chegou a Davos no esteio da Covid-19. Independentemente de quão efetivas serão as medidas tomadas pelas grandes corporações e os governos locais para concretizar “the great reset”, está evidente que o capitalismo predatório ameaça a sobrevivência da humanidade. Afinal, a própria pandemia é consequência direta do impacto que os seres humanos causam nos ecossistemas.
Precisamos nos reintegrar à natureza para sobrevivermos como espécie diante da crise do clima, substituindo o mero crescimento de fluxo de bens e serviços a curto prazo por um pensamento a longo prazo que combine descarbonização e manutenção da biodiversidade.
Em que pesem as evidências, no Brasil o binômio que opõe desenvolvimento à preservação do meio ambiente está mais forte do que nunca. Herança da matriz colonialista e escravocrata, que despreza os nativos da terra e as comunidades rurais, naturalizando a grilagem e a devastação? Por outro lado, não seria justo imputar somente a uma parcela dos brasileiros o desrespeito ao meio ambiente. A natureza está sendo devastada em escala planetária, num processo capitaneado pelas economias mais pujantes, resultado de um pensamento de curto prazo que empurra a conta ambiental para o futuro.
É preciso transformar a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos
A questão é que o futuro chegou e, com ele, a conta ambiental. O Brasil ainda tem a possibilidade de dar a volta por cima com uma perspectiva concreta de prosperidade sustentável. A evolução biológica, que nos presenteou com a máxima biodiversidade do planeta, tem o potencial de realmente transformar o país. Temos os meios de criar ferramentas para colocar em prática a bioeconomia da floresta em pé, respeitando o conhecimento dos povos tradicionais que sabem desse potencial.
Como bem observou o cientista Carlos Nobre no webinar “Biodiversidade, crise climática e a revolução do futuro”, a construção da sustentabilidade passa por reinventarmos nossa democracia, assim como fizemos em 1988. Para tanto será preciso uma radical mudança cultural, filosófica e existencial, condição necessária para transformar nosso país na potência biotecnológica do século XXI. Temos as bases de um projeto para 2022.
*Rubens Naves é sócio titular de Rubens Naves Santos Junior Advogados, presidente do conselho administrativo do Centro de Referência em Informações Ambientais (Cria) e conselheiro da Biotec Amazônia.