Por um Brasil visto de baixo
Um amplo setor da esquerda – não por acaso também acadêmico – mantém a tradição de analisar a história por cima
Até o final do século XIX, eram os grandes nomes e as personalidades políticas que narravam o curso da história no mundo europeu. Os reis eram confundidos com seus próprios países e poucos na sociedade tinham o direito de falar: só por meio de uma pequena parcela de “iluminados” a história existia. Essa foi a tradição que colonizou grande parte da produção acadêmica do Brasil.
A partir do segundo quarto do século XX, ganha força uma narrativa que transcende às grandes personalidades. Primeiro pela influência do marxismo, já que a ideia de classe social por si só fazia referência a um sujeito coletivo. A classe, e não mais um rei, figurava como o motor do tempo. Segundo pela multiplicidade de abordagens do fato que até então eram ignoradas: a psicologia, a economia, a geografia etc.
Mas, como em todo processo de mudança, não há uma imediata substituição, e sim uma convivência entre culturas. Trata-se de um processo. Tanto em documentários da Netflix, quanto na mídia/redes sociais, a história das grandes personalidades continua tendo bastante força, representando uma resiliência do modelo de se entender o tempo – quase exclusivamente – por conta da ação de grandes líderes. Esse aspecto fica muito evidente, no Brasil, quando são os presidentes da República que continuam a “contar” a história do país.
Isso não quer dizer que não sejam importantes as lideranças – e elas são – mas chamo atenção para o sentido da análise. Uma coisa é compreender o Estado Novo fundamentalmente a partir da figura de Getúlio Vargas, outra é entender que Getúlio seja fruto de um tempo, de uma sociedade e de um contexto histórico e político da época. É sutil, mas a percepção deste sentido faz toda a diferença.
Ou seja: Getúlio – ou Lula, ou qualquer outro exemplo – será consequência e ao mesmo tempo produtor de valores de/para o contexto social que o simbolizou como um líder. É uma via de mão dupla (ou múltipla) eterna: o nome e a base estarão sempre em construção mútua.
Quando, nos dias de hoje, discute-se uma candidatura à presidência do país, ainda é comum trata-la tão-somente como o projeto daquele candidato. Analisa-se a sua formação pessoal e o que ele, ou ela, disse, escreveu, achou ou interpretou sobre um tema. E isso não é um costume somente da direita liberal, não.
É raso discutirmos o projeto de Lula, Luciano Huck, Ciro Gomes, Henrique Mandetta, Eduardo Leite, Bolsonaro etc. deixando de lado o estrato social que há por trás desses personagens. É um problema político, mas também sociológico porque ele exclui o que sustenta a construção desses nomes. Que história e qual estrutura há por trás de cada um desses candidatos?
No caso das chamadas terceiras vias e de suas soluções moralizantes e voluntariosas, essa característica fica ainda mais evidente: parece não haver grupos envolvidos, mas indivíduos “geniais”, projetos de um candidato e só. Os partidos, que representam uma agência coletiva, são postos de lado porque evidentemente contrastam com uma – ainda muito forte – característica burguesa de individualizar a história.
Não à toa, recentemente ganhou forças no Congresso – e quase passou[1] – a ideia do “distritão”, que seria, a grosso modo, acabar com a relevância partidária. Por essa proposta, seriam eleitos os que fizessem maior número de votos independente de em que agremiação estivessem. Em resumo, é a individualização ou a privatização total da política: transformá-la num tema de competição entre indivíduos e não a representação da ideologia de um partido, que foi, é e deve continuar a ser construído coletivamente.

Encarando nossos traumas coletivos
O fato de estudar e questionar a sociedade que pariu seus líderes costuma ser facilmente entendível com a defesa desses. É muito mais importante, no entanto, pensar por que o Brasil raramente consegue produzir – e manter no poder – lideranças que resguardem, de alguma forma, os anseios populares. Parece ser mais cômodo culpar Getúlio pelo suicídio, Jango por não ter resistido ao golpe de 1964 e Lula por não ter rompido com o capital financeiro.
Um amplo setor da esquerda – não por acaso também acadêmico – mantém a tradição de analisar a história por cima. Não só a partir dos atos de presidentes da República, mas através de um idealismo que esmurra o dado concreto da realidade. Por conta disso, rejeitam qualquer diálogo com um Brasil profundo e conservador que fuja ao modelo revolucionário projetado. Essa parcela da esquerda continua no ideário iluminista da vanguarda que viria iluminar o povo e tirá-lo das trevas. Evidentemente esta esquerda mantém pouca efetividade e, menos ainda, aderência popular.
Outra demonstração do modelo de individualização da história é a pouca ênfase que damos ao Legislativo em comparação ao Executivo. É comum cobrar do presidente da República resoluções que muitas vezes cabem ao processo legislativo resolver. Segundo dados do IBGE relativos à legislatura atual, 85% dos parlamentares são homens, 75% são brancos e quase a metade, 48,85%, são milionários declarados. No caso específico do Senado, a situação é ainda mais densa: 66% dos senadores declaram ter patrimônio acima de R$ 1 milhão.
Mas é quando analisamos por bancadas temáticas na Câmara dos Deputados que definitivamente temos notícias do que se está em jogo. Um estudo feito pela Agência Pública, e divulgado pelo Congresso em Foco, mostrou que em 2016 havia, dentre um total de 513 deputados, 207 integrando a bancada ruralista, 197 a evangélica, 208 a empresarial, 226 a de empreiteiras e, a maior, a dos “parentes”, com 238 integrantes. Sim, quase a metade dos deputados federais têm sobrenome que remontam à era colonial.
Se isso for chocante para você, talvez lhe faça aprofundar o que de fato significa a popularidade de um presidente. Façamos um exercício: priorizemos – como propõe a linha argumentativa deste artigo – pensar a política a partir da sociedade; e não a sociedade a partir de seu presidente. Da mesma forma que não foram só os fascistas que votaram em Bolsonaro, não só os de esquerda elegeram Lula. Construir hegemonia é parte imprescindível da política. Mantê-la, igualmente.
Muito se ouviu falar dos 87% de aprovação popular que Lula tinha quando deixou a presidência em 2010 e que isso teria lhe credenciado “refundar o Brasil”. Essa análise, além de continuar a entender a realidade política a partir do chefe do Executivo, é ingênua em relação ao poder que rege o país. Esse poder, composto pelo agronegócio, capital financeiro e grandes empresários literalmente banca a existência secular da grande maioria de nossos parlamentares. E a população, que é capaz de eleger um projeto progressista no Executivo, é a mesma que sempre elegeu um Congresso extremamente conservador. Quem acreditaria, portanto, que um parlamento com essa composição fosse capaz de criar leis econômicas e fiscais que prejudicassem a elite nacional? O que se cobra é que ricos legislem contra si mesmos.
A própria popularidade que Lula construiu esteve baseada no projeto de conciliação que foi desenvolvido durante seus governos. Não foi o Lula de 1989 que deixou o governo com 87% de aprovação. Foi o de 2002, da “carta ao povo brasileiro”, com José Alencar, do PL, como vice. Isso – mais uma vez – diz mais sobre a sociedade brasileira do que sobre Lula. E é ela, a sociedade, que precisamos analisar.
Por isso, considerar a hipótese de, em 2021, um indivíduo escrever um “projeto de Brasil” – como fazem representantes da chamada terceira via – e que este mesmo projeto possa ser representativo de uma República tão absurdamente múltipla é, mais uma vez, escrever um Brasil visto de cima. Ainda, é achar que as questões políticas se resumam a boas ideias e que o próprio sentido do que é “político” possa transcender ao projeto elitista que sempre dirigiu esse país.
Só há realmente representatividade quando aquele ou aquela candidata simboliza um movimento plural que o supera. Do contrário, é a sequência imperial da história escrita de cima: daqueles que, em favor de pouquíssimos, falam naturalmente em nome de todos. Quando uma liderança do MST ou um presidente de sindicato fala por suas instituições, por exemplo, eles são porta-vozes de uma coletividade. De que coletividade pode se valer alguém que cria um programa de governo na primeira pessoa do singular?
Falo de uma burguesia dirigente. Uma burguesia formada no seio de uma intelectualidade que usa bem os talheres e os pronomes, mas está longe de discutir seu privilégio de classe, de raça, de gênero, de nada. Que quer seguir tendo o direito de subir no palanque e, por trás dos óculos da sabedoria, apontar dedo para os problemas como quem aponta uma estrada num mapa.
Mas a dor de quem sofre não estará nunca como sujeito no programa de governo que entende a política de cima para baixo, no máximo será objeto de alguma meta macroeconômica bem-intencionada. Por isso, um projeto de país, ou uma candidatura de um presidente da república, jamais poderia ser projeto de um indivíduo, mas de uma ampla coletividade.
Não há nenhum gênio que possa prescindir da conjunção entre movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, sociedade civil, associações de periferias, religiosos e tudo mais que componha a sociedade.
Mas também é sintomático que um país que proclamou sua independência numa montagem cênica de um personagem para camuflar um acordo entre senhores e que até hoje trata qualquer reparo às torturas da ditadura militar como “revanchismo” se negue a entender suas entranhas conservadoras. É mais fácil culpar alguns e recalcar um problema coletivo. Ou seja: a solução, mas também a culpa continua sendo de “indivíduos”.
Por isso a importância da construção de um sujeito coletivo que possa conjugar uma série de demandas de um setor da sociedade que precisa ser atendido mais do que outros. Aqui me refiro abertamente aos desempregados, aos que estão à margem da dignidade sem emprego formal, às minorias que morrem diariamente vítimas da barbárie e aos milhões de miseráveis que surgiram no Brasil desde quando o neoliberalismo tomou conta da economia de vez.
O sujeito coletivo não é uma coletividade abstrata, como um nacionalismo bolsonarista que beira o fascismo. Ele precisa resguardar um sentido político de prioridades, mas que dialogue com a concretude da sociedade brasileira que está mais próxima de uma república neopentecostal do que de uma revolução socialista.
É dessa conjugação entre demandas reais e urgentes de um país devastado por uma união entre neoliberalismo e fascismo que precisamos formar esse sujeito. E é a partir dele que o projeto político é construído, seja formando a candidatura de um presidente da república ou de parlamentares que disputarão esse país ainda tão governado pela lógica dos “de cima”.
Victor Moreto, historiador pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutorando em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Organiza o especial “Resistências latino-americanas” neste site.
[1] Na verdade, a votação teve maioria na Câmara dos Deputados, mas por se tratar de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) era necessária uma maioria de 3/5 da Casa, o que não houve.