Por um novo projeto europeu
Nada obriga a União Européia a permanecer no imobilismo, desde que sua Constituição foi derrotada em plebiscitos na França e Holanda. É hora de imaginar uma coordenação mais intensa de políticas e uma definição mais clara sobre as fronteiras do blocoMichel Foucher
Da mesma forma que em 1954, o projeto francês de uma comunidade européia de defesa (CED) foi rejeitado pelo Parlamento, a iniciativa, também francesa e de igual ambição, de uma Constituição européia foi recusada no plebiscito de 2005. A relação entre os dois episódios irá além da rejeição? A recusa de 1954 foi seguida, três anos depois, da assinatura dos dois tratados de Roma: um instituindo a Comunidade Econômica Européia, a CEE, e o outro, a Comunidade Européia de Energia Atômica, a Euratom. O projeto de tratado institucional de 2005 poderá voltar à cena depois de três anos?
A recusa francesa, reforçada pela holandesa, marca uma bifurcação no curso do projeto europeu. A declaração de 25 de março de 2007, em Berlim, celebrando os sucessos colhidos em um processo de meio século, insiste em bases comuns renovadas, evita palavras de desacordo como Constituição e alargamento, mas fixa um calendário: em 2009, haverá eleições para o Parlamento europeu, seguidas da formação de uma nova Comissão Européia.
No “não” francês, o que foi recusado não eram as inovações institucionais propostas, mas a orientação da União Européia no campo econômico. Ela estava expressa em disposições legais sucessivas, reunidas na terceira parte do projeto do tratado, e num sentimento de expansão desordenada do bloco. O tratado de Maastricht, aprovado em 1992 por escassa maioria, na França, havia criado uma moeda única e confirmado a integração da Alemanha reunificada no sistema europeu.
Em 2005, a conjuntura geopolítica era diferente. A expansão da União Européia a dez novos Estados membros, em 2004, era justificável face à História, mas não foi objeto de uma politica inteligível. Foi uma decisão sem voz pública, criando a impressão de “uma história sem palavra”.
Diante da Europa, um cenário internacional modificado
No âmbito do alargamento europeu, a fratura causada pela opção norte-americana pelo uso da força no Iraque pesou sobre o projeto do tratado constitucional europeu. O objetivo indireto era, justamente, reconciliar os europeus, traumatizados e desunidos por suas divergências. Enfim, em escala global, houve a descoberta tardia de que a China (desde 1978) e, depois, a Índia (desde 1991) nao são somente países, mas mundos emergentes que entravam no Mercado global com suas vantagens comparativas (competência e salários), ambições e, perifericamente, a vontade estratégica de sair do subdesenvolvimento e da pobreza. A concorrência já não vinha mais de alguns lugares como Cingapura, Hong Kong e Taiwan, de potencial demográfico reduzido.
Trata-se de uma mutação fundamental que provoca uma nova aceleração da história e afeta o status quo dos Estados Sociais europeus. Os eleitores franceses perceberam as pesadas conseqüências desta mudança de escala, que implica a reformulação profunda do projeto europeu. Como afirmar-se como projeto político [1], via aprovação de um texto apresentado como constituinte, numa situação marcada pela inseguranca econômica e geopolítica?
A percepção de uma grande vulnerabilidade social e o sentimento de exclusão da cena política tornaram possível a recusa de a uma construção européia representada pelo liberalismo econômico sem limites. Outro fator foi a incerteza, diante da formação de um aglomerado político heterogêneo, de fronteiras frouxas, oposto à representação francesa de Estado nação unitário, de limites políticos claros e estáveis. Na Holanda, outro Estado fundador da União Européia e grande beneficiário da livre circulação, as reticências do eleitorado estavam ligadas ao temor de um risco de dissolução da identidade nacional, devido a expansões mal administradas, à crise na tradicional tolerância da sociedade com as comunidades imigrantes e à recusa de uma deposição de atributos de soberania encarnada pelo próprio termo “Constituição”.
Se é verdade que 18 Estados ratificaram o texto, sendo dois por referendo – Luxemburgo e Espanha —, outros sete ainda não manifestaram suas posições. A geografia desse prudente silêncio assinala Estados onde a concepção majoritária é a de uma Europa à imagem da Associação Européia de Livre Comércio [2], que se estenda de Portugal à Suécia, passando pela Irlanda, Reino Unido e Dinamarca, e ligada à República Tcheca de Vaclav Klaus. Esse não esconde sua preferência por uma simples Organização dos Estados Europeus, em vez de uma União, cujos poderes são vistos como muito amplos.
O caso polonês é específico. É marcado por um viés soberanista e populista de parte da elite, pela adesão crescente dos poloneses à União Européia (incluindo os agricultures), pela aceitação, bastante vantajosa, do sistema do tratado de Nice sobre direitos de voto [3] e por uma relação difícil com a vizinha Alemanha. A instalação de sistemas de interceptação anti-balísticos norte-americanos, na Polônia e República Tcheca, aumentará as tensões entre esses dois países e os outros, especialmente a Alemanha, sobre o tipo de relação estratégica que convém alimentar com a Rússia.
Comunidade política ou mero intermediário entre a nação e o mundo?
As interrogações feitas pelos dois países do “não” são partilhadas pelos demais: [4]. Se um Estado como a França, fundador e inspirador do projeto europeu, se expressa como em 2005, isso quer dizer que algo não vai bem também em Lisboa e Haia. Muitos dos dirigentes políticos atribuem tanta importância às questões de coordenação de políticas econômicas na zona do euro, aos mecanismos que permitiriam reduzir a insegurança econômica e ao respeito às identidades nacionais quanto às questões institucionais.
Dois pontos de vista opostos se desenham. Um, ao constatar que a União Européia está funcionando, ainda que minimamente, tende a subestimar os problemas institucionais, a privilegiar iniciativas comuns em um número limitado de terrenos e a ver a UE como um simples Estado intermediário entre a nação e o vasto mundo. Segundo Gordon Brown, isso não seria nada pertinente. Mas ao assumir o posto de primeiro-ministro britânico, no verão [do hemisfério Norte] de 2007, Brown poderia alterar sua posição, e passar a trabalhar por uma ampliação contínua da organização européia. Essa é a posição central dos Estados que silenciaram sobre o projeto de tratado. O outro ponto de vista considera a UE uma comunidade politica de limites claros, devendo dispor de instituições estáveis, eficazes e capaz de agir, organizar a solidariedade entre seus membros e adotar uma politica exterior mais ativa e autônoma. Estão no grupo Alemanha e França, Bélgica e Luxemburgo, e, sem dúvida, a Polônia para o aspecto da segurança.
Esse segundo grupo de Estado está em desacordo com quais deveriam ser os próximos passos. A Alemanha permanece ligada a um novo texto constitucional mais adequado a sua estrutura federalista, como a Espanha descentralizada e a Bélgica de forte viés federalista. Busca-se uma clara divisão de competências. Além disso, o peso demográfico (que resultou em 99 deputados alemães no Parlamento europeu — contra 87 da Franca, da Itália e do Reino Unido) faz dos dois grandes partidos da Alemanha (o social-democrata e o conservador) atores importantes do parlamento europeu que deveria escolher o próximo presidente da Comissão Européia, em 2009 — caso as disposições institucionais rejeitadas, em 2005, fossem retomadas de igual maneira em um novo texto. No Conselho Europeu, a Alemanha aumentaria significantemente seu peso em termos de direito de voto, passando de 11% para 17%. Na França, por outro lado, a busca de reconciliação dos eleitores do “sim” e do “não”, em torno de objetivos europeus renovados, não faz do debate institucional um assunto prioritário.
O que poderia dar identidade e papel internacional à UE
Há, no entanto, uma idéia que progride, com o apoio dos liberais belgas e de Luxemburgo, bem como de correntes de inspiração de centro- esquerda italianas e social-democratas francesas. Trata-se de um maior engajamento dos governos da zona do euro em uma coordenação econômica e em políticas de sustentação efetiva do crescimento. Para além da “governabilidade” econômica européia, trata-se de promover, concretamente, decisões harmônicas entre o grupo de ministros da Economia dos treze países da zona do euro e o Banco Central europeu, a respeito da “zona de sombra” da política de câmbio que envolve, sobretudo, as moedas asiáticas. Trata-se, ainda, de um acordo para que se tenha uma política fiscal mais harmônica e para dotar a zona do euro de um ministro da Economia, tal como previsto no projeto de tratado constitucional para relações exteriores.
Enfim admite-se que as políticas comuns devem ser renovadas e alargadas. Uma política agrícola mais orientada para a ecologia; uma estratégia coordenada de segurança energética, sob pena de, na falta disso, só se conquistar uma segurança ilusória; maior apoio a mobilidade de pesquisadores, estudantes, aprendizes e a programas de pesquisa; uma política de gestão “circular” dos fluxos migratórios, favorecendo a mobilidade em detrimento da migração definitiva ou seu repatriamento. Tudo isso não passa por um novo texto constitucional, mas por um debate sem a ocultação dos pontos discordantes e divergencias entre Estados-membros e forças políticas e sindicais. A realidade, desde 2005, é que não há mais debate sobre os objetivos comuns nas reuniões oficiais da Europa dilatada. As sessões são cada vez mais curtas (duas horas e meia para o Conselho Europeu de dezembro de 2006) e as delegações não intervêm, a menos que tenham algum ponto de vista nacional a fazer valer.
Quando se reunir o Conselho Europeu, em junho de 2007, a presidência alemã poderá concluir as consultas com cada um dos 26 Estados-membros com um acordo de base e um calendário bem definido? As posições dos 27 países parecem ter se aproximado após de 25 de março: uma nova ratificação geral do tratado constitucional não está descartada; o projeto inicial permanence como ponto de partida, até mesmo para a Polônia; o Parlamento europeu defende a manutenção da Carta de direitos fundamentais (parte II do tratado) e adendos significativos como a dimensão social, o clima, a zona do euro e a seguranca energética. Muito depende do resultado da eleição presidencial na França [5].
A delicada questão das fronteiras européias
Além dos objetivos econômicos e sociais, o próprio projeto europeu precisa ser atualizado. À escala continental dos últimos 50 anos, convém acrescentar a escala planetária, onde se desenvolvem forças que pesam sobre a vida dos europeus. Nesse novo contexto, diferente daquele de 1957, torna-se indispensável deixar claros os interesses europeus, via debates públicos e propostas formais [6]. O termo aparece somente duas vezes no documento relativo à estratégia européia de segurança apresentado em dezembro de 2003, por Javier Solana, alto representante europeu para política externa e segurança comum, a propósito da governabilidade dos países vizinhos à União Européia. O termo nem mesmo aparece no relatório anual de atividade da comissão, incluindo o capítulo que trata da Europa como parceiro mundial.
Essa discrição, isto é, inibição, provavelmente está ligada ao fato de que a defesa dos interesses estratégicos da Europa foi feita, desde a origem, pelo aliado norte-americano no contexto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). É, portanto, ilusório esperar preservar o Estado de bem estar social e o modo de vida europeu (“Artleben”, de acordo com Angela Merkel), sem que os Estados da União elaborem, de maneira autônoma, sua propria visão de mundo de maneira a influenciar sua evolução num sentido civilizado e solidário [7]. Num mundo policêntrico, onde a existência de diversos centros de poder não garante a cooperação entre eles, e em que o Ocidente não terá mais a capacidade de ditar a agenda internacional como tem feito desde o final do século 18, o interesse europeu é favorecer as práticas multilaterais, com o respaldo de sua própria existência de meio século de decisões conjuntas, que fundam sua legitimidade. Isso não se limita a negociações comerciais, mas abrange, também, outros aspectos, como a regulação e o desenvolvimento sustentável, em que a União Européia deveria fazer uma obra pioneira.
Se 50 anos após o íncio da unificação européia é fácil referir-se a uma cronologia agora bem conhecida, permanece difícil saber seu lugar no espaço. Como pretender unidade e reconciliação se não conhecemos a história uns dos outros? Foram necessários cerca de 60 anos e o impulso pessoal do presidente francês e do chanceler alemão para que o primeiro manual franco-alemão de História aparecesse, e sua redação não causou grandes problemas de interpretação para as duas equipes de historiadores (exceto a respeito da apreciação do papel norte-americano, mas favorável do lado alemão).
Lembremo-nos que mais da metade dos países-membros da União Européia não têm embaixadas nos demais 26. Num mundo marcado pela prevalência das representações, como imaginar que cidadãos possam se apropriar de um projeto democrático sem que as histórias nacionais de cada Estado estejam presentes e se não se pode identificar o território, já que, em razão da fluidez, o assunto virou tabu? Ai está uma razão, entre outras, para tratar o assunto seriamente, com a vontade de concluir a questão das fronteiras sempre rejeitada (ou tratada de maneira multiculturalista) pelos politicos.
Retomar a idéia de um projeto geopolítico compartilhado
Os únicos que parecem ter uma idéia estratégica clara dos limites da União Européia são os sucessivos governos norte-americanos: vista de Washington, a UE deve abarcar o conjunto de 46 países-membros do Conselho da Europa – única instância definidora de seu perímetro geográfico em 1995 – menos um: a Rússia. Por essa ótica, a União Européia é a dimensão civil e financeira de um conjunto político estratégico, que coincide com a OTAN, em sua extensão territorial. Na realidade, esse cenário corresponde a uma estratégia norte-americana de achatamento da Rússia. Ela não é isenta de riscos, como vimos na Ucrânia, na Moldávia e nos Estados do sul do Cáucaso.
Outro cenário, geopolítico e adequado aos interesses autônomos europeus, consiste em parar de causar confusões permanentes nos discursos e representações entre a Europa ampliada, como categoria sócio-econômica de longa duração, e a Europa instituída sob a forma de União Européia, associação voluntária de Estados democráticos, que tem toda legitimidade para decidir seus limites, mesmo de forma temporária [8], durante uma ou duas décadas. Uma estabilização das fronteiras, combinada com uma estratégia mais eficaz de aproximação com os vizinhos, que facilite sobretudo a circulação e a formação. Convém sair do tudo ou nada no problema da adesão.
Nesse quadro, dois problemas permanecem: nos Balcãs ocidentais, onde a fragmentação política continua, não é certo que a oferta de adesão remedie o déficit da construção nacional e os imperativos para um acordo de fronteiras ainda pouco viável nesses Estados. Não conviria aos Estados ser capazes de manter relações normais com seus vizinhos, antes de se tornarem Estados-membros da UE? Com a Turquia, as negociações permanecem. A motivação é o medo recíproco de perda. De imediato, é realista apontar uma ambigüidade política fundamental: as negociações com Bruxelas são conduzidas por um governo conservador islâmico, que as utiliza para enfraquecer o poderio militar. A garantia de laicidade em um país muçulmano é o primeiro argumento para justificar a opção pela adesao. É, portanto, razoável deixar as discussões prosseguirem sem dramas. No final, a Turquia poderá decidir se consente com as importantes transferências de soberania implicadas no pertencimento à União Européia.
Se estão definidas as fronteiras da União Européia e sua articulação com o continente e as regiões das margens do Mediterrâneo, se estão repensadas e expli