Por uma agricultura multifuncional
O líder dos agricultores franceses relata como surgiu, a que se opõe e o que defende o movimento que desmontou lojas do McDonald’s e ajudou a enterrar a Rodada do Milênio da Organização Mundial do ComércioJose Bové
Tinha eu apenas 20 anos quando, em 1973, diante de cerca de 80 mil pessoas reunidas para a luta do Larzac, [1] no Rajal del Gorp, Bernard Lambert, líder dos camponeses-trabalhadores, proclamou: “Nunca mais os camponeses atuarão como ’versalheses’. [2] Por isso estamos aqui para festejar o casamento de Lip [3] e do Larzac.” Esta primeira grande manifestação de apoio aos 103 camponeses que se opunham à extensão de um campo militar. Havia sido convocada pelo pequeno e novo Movimento dos Camponeses-Trabalhadores, construído como oposição à Federação Nacional dos Sindicatos de Agricultores (FNSEA), sindicato “único” diretamente saído da Corporação Camponesa do regime de Vichy, [4] bem como de sua ala jovem, o Centro Nacional dos Jovens Agricultores (CNJA).
Sob o signo de Maio de 68
Nascida das contradições engendradas pela modernização da agricultura dos anos 60 e das reivindicações do Maio de 68, esta oposição proclamou logo de início sua ambição de recolocar as questões agrícolas e rurais no contexto mais amplo das lutas sociais do conjunto da sociedade. A modernização acelerada da agricultura francesa, encorajada pelo poder público e pela criação do Mercado Comum Europeu, no início dos anos 60, faria surgir graves problemas. Excetuando-se os setores bem protegidos pela Política Agrícola Comum (PAC) européia — como a cultura de cereais e da beterraba para açúcar e os que se beneficiavam de mercados bem definidos — como os vinhos e licores de qualidade —, a maior parte do campesinato passou a sofrer repetidamente crises de superprodução. A isso acrescentavam-se tensões internas muito fortes, devido à forma de repartição dos meios de produção, tanto entre camponeses, quanto entre regiões (concentração em alguns lugares, desertificação em outros). E ainda havia, em toda parte, uma aceleração do êxodo rural. Em nome da “unidade camponesa”, a FNSEA e o CNJA administravam esta política em conjunto com o Ministério da Agricultura, dentro de um espírito naturalmente corporativista: “As questões agrícolas são questões dos agricultores e de suas organizações”.
Foi contra este procedimento, contra a industrialização da agricultura e contra o retrocesso do campesinato que se constituiu, aos poucos, a Confederação Camponesa, oficialmente fundada em 1987. [5] Desde o início ela esteve engajada numa reflexão que se alimenta de um enfrentamento diversificado, porém permanente com a lógica do mercado: defesa dos camponeses absorvidos pela empresas de alimentos derivados de gado, nos anos 70; apoio aos agricultores superendividados junto aos bancos (dentre os quais, o mais importante, o Crédit Agricole), a partir dos anos 80; ações múltiplas visando uma repartição mais justa da terra; reivindicação de preços garantidos, mas apenas para volumes de produção definidos até o teto pelo tipo de exploração, particularmente por ocasião das crises de superprodução (leite, carne, viticultura, etc.).
Crítica ao produtivismo
No início dos anos 80, no Departamento de Loire-Atlantique, os produtores de uma cooperativa denunciaram práticas ilegais às quais estavam obrigados: a utilização de hormônios — substâncias proibidas — a fim de melhorar artificialmente o desempenho de sua criação e de tentar assim manter sua renda. Foi a primeira vez, que se saiba, que, através da crítica de um modo de produzir, um sindicato profissional colocou publicamente a questão da finalidade social do trabalho daqueles que ele pretendia defender e representar. E isso com o risco que não ser compreendido pela maioria dos camponeses!
Esta crítica ao produtivismo na agricultura abrangeria não apenas a qualidade dos produtos e a segurança sanitária dos consumidores, mas também o impacto social — número de camponeses, condições de trabalho — da ocupação do território e a degradação dos recursos naturais: água, solo, biodiversidade. E isso tanto nas regiões de exploração intensiva quanto nas ameaçadas pela desertificação, por exemplo, risco de incêndios ou avalanches neve nas montanhas, etc.
Progressivamente, durante os anos 80, a Confederação Camponesa passou da crítica à elaboração de um projeto alternativo: o de uma agricultura camponesa. Trata-se da reapropriação, pelos agricultores, de práticas mais autônomas e mais econômicas em relação às empresas capitalistas. E constitui também uma referência na luta sindical contra o produtivismo, apesar de este ser freqüentemente apresentado como “indispensável” para satisfazer as necessidades alimentares européias e mundiais — justificando portanto a famosa “capacidade exportadora” da agricultura francesa — reafirmada na lei de orientação agrícola de 1980.
Contra a agricultura dual
O conceito de agricultura camponesa opõe-se totalmente à imposição de uma agricultura dual. Dual porque pretende-se, de um lado, uma produção em massa, industrializada, supostamente a preço baixo, assegurada pelos camponeses ditos “ricos” e destinada a consumidores com fraco poder econômico; de outro, os nichos de produção de qualidade, portanto “necessariamente” mais cara, realizada por camponeses mais ou menos miseráveis — ou seja, não competitivos — para consumidores abastados.
Este clichê é falso: a dualidade desenhada não separa camponeses ricos de pobres. Além disso uma mesma agricultura, espalhada sobre o conjunto do território, pode perfeitamente satisfazer as necessidades dos consumidores em quantidades razoáveis e em qualidade diversificada, respeitando o meio-ambiente e mantendo o emprego. É o que chamamos de multifuncionalidade da agricultura.
Em 1992, a Política Agrícola Comum européia foi reformada. Depois, vieram os acordos da Rodada Uruguai do GATT sobre as tarifas alfandegárias e o comércio, adotados em 1993 e assinados em 1994, em Marrakesh. Nessas condições a Comissão Européia constatava que PAC estava num impasse. Formulava críticas que compartilhamos sob vários aspectos: custo orçamentário, prejuízos sociais e ambientais, perturbações nas trocas mundiais devido às subvenções às exportações dos excedentes europeus, etc. Entrava em pauta uma profunda reforma.
Mas, fiel a seus dogmas ultraliberais, a Comissão Européia adotava soluções diametralmente opostas ao teor das constatações. Propunha a desregulamentação e o desmantelamento parcial do mercado comum agrícola, em uma primeira etapa, pela baixa de preços. Para amortecer o choque, aos setores nobres (cereais e criação de gado) que se beneficiavam de preços garantidos, eram oferecidos auxílios diretos compensadores de renda. Portanto, nada absolutamente que colocasse em causa o produtivismo! Esta orientação radical levantava duas questões fundamentais e não específicas da agricultura: a do papel das políticas públicas diante de um mercado que agora se pretendia mundial; e a da legitimidade dos subsídios públicos.
Um movimento camponês internacional
Tendo consciência dos limites de uma ação estritamente camponesa e francesa, a Confederação Camponesa lança então duas iniciativas. De um lado, junto com a Coordenação Camponesa Européia (CPE), propõe a construção de um movimento camponês internacional, a Via Campesina, que reúne hoje mais de 69 organizações de 37 países dos quatro continentes. De outro, defende a criação de uma aliança produtores-ecologistas-consumidores cuja ambição é constituir, na França, um lugar de troca de idéias e de iniciativas sobre as questões da agricultura, da vida no meio rural e da alimentação.
A nova PAC apenas confirmou o que era perfeitamente previsível: agravamento das disparidades entre camponeses e crises de superprodução, mais agudas nos setores debilmente protegidos (porcos, aves, frutas e legumes, etc.). Além disso a PAC deve agora enfrentar uma crise de confiança dos consumidores em relação à agricultura industrial, que continua sendo sustentada por Paris e Bruxelas: o caso da carne de boi com hormônios em 1995 e 1999; o da “vaca louca” em 1996; e mais recentemente, o caso da dioxina e o da lama nos locais de depuração dos alimentos para gado, sem esquecer da poluição das águas por nitratos e pesticidas na região da Bretanha e nos rios da bacia parisiense. [6] Nesse novo contexto começa na França a adoção de uma nova lei para orientação agrícola e, em escala européia, uma nova etapa da reforma da PAC.
A Confederação Camponesa, cuja representatividade junto ao poder público aumentou — a partir de 1997, com Governo de Lionel Jospin, poderá se fazer ouvir sobre as novas orientações que preconiza, particularmente sobre a multifuncionalidade da agricultura e — contra a FNSEA (Federação Nacional dos Sindicatos de Agricultores) e os cerealistas — sobre as primeiras medidas de diminuição dos auxílios condicionados ao tamanho das explorações. A Comissão Européia, por seu lado, mantém seu objetivo ultraliberal.
A população contra o consumismo
Em janeiro de 1998, em Nérac (no Departamento de Lot-et-Garonne), a destruição simbólica de sementes de milho transgênico da Novartis contribuiu para uma mobilização francesa e internacional contra as multinacionais da biotecnologia que pretendem impor seus organismos geneticamente modificados (OGM) e confiscar a vida através das patentes. [7] Nestes últimos anos, a sociedade reencontrou o gosto pela luta e pela resistência ativa contra o horror ultraliberal: em 1995, por ocasião da greve dos ferroviários, e em 1997, quando da greve dos caminhoneiros. Depois, por volta de setembro de 1999, uma larga camada da população, ultrapassando o prazer mesquinhamente consumista, frente aos escândalos alimentares, aprovou a batalha contra a “comida ruim” (mal-bouffe) e a recusa de um modelo de agricultura e de alimentação correspondendo apenas aos interesses das multinacionais. Um debate público enfim tomou forma, podendo desembocar na instituição de um controle cidadão em escala planetária.
É por isso que, junto com outros sindicatos, a Confederação Camponesa esteve presente em Seattle, em dezembro de 1999, para se opor aos projetos de liberalização a todo custo programados para a Rodada do Milênio da OMC (Organização Mundial do Comércio). Expressou aí sua visão da agricultura e da alimentação, ao lado dos que defendem o re