Por uma coleção pública sem condições
A diversidade de poéticas artísticas e trabalhos opera como uma constelação dentro da coleção. Tal imagem retoma uma ideia de Walter Benjamin, segundo a qual entendemos que cada uma das obras que compõem a coleção pode ser vista como uma estrela. Estas, quando colocadas em situações de proximidade, formariam constelações. As constelações não são a simples soma dos elementos que resultarão em uma totalidade, ou seja, não se trata, para Benjamin, de um conjunto ou amontoado; não é retilíneo o enfileiramento das partes. Há, sim, uma dança de equilíbrio, uma aproximação pouco óbvia, não tão objetiva.
O título deste texto retoma a conhecida conferência realizada pelo filósofo Jacques Derrida no ano de 1998, em Stanford, e intitulada “The future of the profession or the university without condition (thanks to the “Humanities”, what could take place tomorrow)”. Na versão brasileira, a conferência foi publicada em livro no começo dos anos 2000 com o título “Por uma universidade sem condição”. Nossa ênfase, nesse texto, retoma algumas das posições de Derrida, mas desloca-as para uma ideia – e, ainda mais, para uma defesa – de uma coleção pública de arte contemporânea sem condições dentro de uma universidade também pública. Trataremos neste artigo da recente política de aquisições realizada entre 2016 e 2019 para o acervo da Casa da Cultura da América Latina da Universidade de Brasília – CAL e que, culminou, neste ano, na exposição “Triangular: arte deste século”, realizada na Casa Niemeyer, também parte da UnB, com curadoria de Ana Avelar e Gisele Lima.
Em sua conferência, Jacques Derrida defende que uma universidade sem condições é aquela em que subsiste o “direito de dizer tudo” e de “dizê-lo publicamente”. Derrida defende que a universidade não tem limites fixos se ela for entendida como local de incondicional questionamento e de radical interrogação, em busca da “verdade” e de questionamento acerca da “verdade”. O título da conferência, porém, assinala ainda um outro sentido para o termo: a “vulnerabilidade” da universidade diante de todos “os poderes que a comandam, a cercam e tentam dela se apropriar”: a universidade encontra-se vulnerável e permeada por condições vindas de diversas esferas de poder, sejam eles estatais, econômicos, midiáticos, políticos, militares, religiosos1.
Derrida aponta justamente para a ambivalência do quadro no qual se coloca a universidade: entre uma impossível busca pelo direito de tudo dizer, e entre às pressões de forças e demandas externas. Para ser livre e autônoma, a Universidade precisa responder a critérios rígidos que não são critérios reais de sua existência. Não existe Universidade que não seja livre e, ao mesmo tempo, que não seja atrelada a valores sociais, econômicos e políticos. Daí a lógica do título dado a palestra. E, é nesse conflito entre ser autônoma e livre, mas sempre atrelada aos limites e condições, é que reside a potência e a garantia da existência desse espaço.
Ao nos referirmos a ideia de uma coleção pública de arte contemporânea sem condições dentro da universidade, acreditamos que, assim como a universidade, é importante entender a contradição na qual ela se instala: a coleção deve ser entendida como um espaço da pluralidade, da diversidade de lugares de fala e de escuta e, mais ainda, como um lugar que permita o surgimento de outras imaginações políticas. Ao mesmo tempo, a coleção é condicionada pela burocracia universitária, por condicionantes políticos, econômicos e sociais. A ambivalência e o jogo político entre tais condicionantes e, ao mesmo tempo, a busca por não os ter, permite que a coleção de arte exista e tenha garantida certa autonomia.
A defesa – e significativa expansão – de um acervo de arte contemporânea de um museu universitário público no contexto brasileiro atual nos parece um ato de grande resistência diante do desmonte da universidade e dos recentes ataques às artes e à cultura. E, é nesse momento do desmonte em que buscamos outras formas de estar no mundo e de partilhar o comum e os espaços sensíveis. A coleção da CAL deve ser entendida, por nós, como um símbolo de resiliência.

Museus universitários
A recente expansão da coleção da CAL iniciou-se há três anos. Nesse último ano, porém, em um momento de grandes incertezas quanto ao futuro da Universidade, houve um crescimento exponencial dessa política de aquisições. O espaço faz parte da Universidade de Brasília – UnB e localiza-se em uma casa de estilo “colonial” que Oscar Niemeyer projetou para ser sua primeira residência na nova capital do país, nos anos 1960. O edifício foi doado para a Universidade e, por muitos anos, abrigou diversos setores relativos à burocracia universitária. Desde 2017, o edifício funciona como um espaço de arte contemporânea, tendo como diretriz seu caráter pedagógico. Seu funcionamento enquanto espaço cultural é garantido majoritariamente por alunos, por alguns poucos funcionários da universidade e por uma parte do corpo docente. A participação dos estudantes é um dos pilares centrais para existência da Casa Niemeyer e da CAL, ambas hoje sob a direção de Alex Calheiros, professor do Departamento de Filosofia. Como espaços culturais vinculados a uma universidade, parte de seu papel é servir como um ambiente experimental de criação para os alunos, um lugar para se pensar a profissionalização dos sujeitos, mais do que isso, de mobilizar neles as noções de pertencimento e de responsabilidade com a esfera pública.
O convite para fazer parte do acervo da instituição teve adesão praticamente completa dos mais de 100 artistas convidados. O único pedido feito pelas curadoras era a doação de uma obra — ou mais — que “melhor representasse seu trabalho numa coleção pública e universitária instalada na capital federal”. A partir desse convite, o artista sugeria trabalhos que pudessem ser doados e a curadoria, juntamente com uma equipe de alunos do curso de Teoria, Crítica e História da Arte, analisava a relevância do trabalho no âmbito da coleção e da poética do artista. Assim, a coleção recém-constituída reúne a produção de mais de 100 artistas contemporâneos brasileiros de diferentes gerações, regiões e etnias. Entendendo o museu como um protagonista crítico no sistema das artes e, tendo entre suas atribuições a defesa de expressões artísticas que despontam no cenário cultural, a coleção tem um recorte que almeja a descentralização de produção artística do eixo Rio – São Paulo e a representatividade dos diferentes sujeitos e grupos sociais. Entre os importantes nomes reunidos na mostra estão: Ana Teixeira (SP), Aline Motta (RJ), Bárbara Wagner (DF), Dalton Paula (GO), Danielle Fonseca (PA), Denilson Baniwa (AM), Gê Orthof (DF), Grupo Contrafilé (SP), Guerreiro do Divino Amor (RJ), Helô Sanvoy (GO), João Castilho (MG), Juliana Notari (PE), Laercio Redondo (RJ), Lenora de Barros (SP), Lyz Parayzo (SP), Marcelo Silveira (PE) e Tony Camargo (PR).
A estratégia curatorial empregada para a constituição do acervo não cai em um revisionismo histórico que assume o cânone ocidental, branco e masculino como seu “centro” e que aceita a hierarquia como um dado natural – perigo ao qual nos alerta a curadora e pesquisadora Maura Reilly, reconhecida pela proposta de um “ativismo curatorial”. As diversas poéticas dos artistas reunidos no novo acervo constituído tangenciam e criticam os termos que criaram a negligência de mulheres, artistas provindos de realidades ditas não-hegemônicas e/ ou de fora de um eixo central da acumulação capitalista no Brasil.

Dança de equilíbrio
A diversidade de poéticas artísticas e trabalhos opera como uma constelação dentro da coleção. Tal imagem retoma uma ideia de Walter Benjamin, segundo a qual entendemos que cada uma das obras que compõem a coleção pode ser vista como uma estrela. Estas, quando colocadas em situações de proximidade, formariam constelações. As constelações não são a soma dos elementos que resultarão em uma totalidade, ou seja, não se trata, para Benjamin, de um conjunto ou amontoado. Há, sim, uma espécie de dança de equilíbrio, uma aproximação pouco óbvia e não objetiva2. Existe um espaço ocupado por um trabalho em relação ao outro: há um entrelugar – sempre temporário – criado por relações de proximidade e de distância entre as estrelas-trabalhos. Nesses entrelugares é que residem os aspectos mais interessantes de um acervo como o da CAL. Sem dúvida, não há limites entre as relações a serem criadas entre as obras que compõem tal constelação.
A primeira exposição de longa duração do acervo pode ser vista como a primeira constelação formada pelos novos trabalhos adquiridos na mostra “Triangular: arte deste século – Aquisições recentes para o acervo da Casa da Cultura da América Latina da Universidade de Brasília”. A curadoria é de Ana Avelar, professora de Teoria, Crítica e História da Arte na UnB, e Gisele Lima, curadora independente e ex-aluna do mesmo curso. Ao expor as novas aquisições e organizá-las em núcleos temáticos, a exposição nos permite visualizar a pluralidade de vozes, de referências e de modos de fazer que estão presentes na prática artística brasileira. O agrupamento em núcleos, que emergem diretamente das poéticas dos artistas [e não como um tema que antecede a escolha curatorial], sugere, porém, a partilha de algo comum e a possibilidade de diálogo dentro de uma polifonia de vozes.
A apropriação da abordagem triangular para o ensino de arte, desenvolvido por Ana Mae, à qual faz referência o título da exposição, demonstra uma posição engajada da curadoria e afirma a perspectiva pedagógica da coleção e da CAL. Ao retomar a abordagem triangular, cujo tripé é formado pelas noções de criar arte, contextualizar a obra de arte e analisar imagens, e ressignificá-lo a partir das noções de mostrar arte, ler arte e localizar o discurso artístico, a curadoria propõe uma reflexão sobre “o letramento visual contemporâneo, em nosso entender, fragilizado nos dias de hoje. Nosso objetivo também mira, nas palavras de Ana Mae, uma ‘iconografia do olhar’, ou seja, a formação de um repertório da arte produzida no Brasil hoje para todxs que tomarem contato com a coleção”. Ao escolher homenagear essa figura central do campo teórico artístico brasileiro — vale lembrar que Ana Mae foi aluna de Paulo Freire — , as curadoras assumem ainda uma posição de preocupação com as esferas de recepção da arte. Nesse sentido, percebemos que recepção dos trabalhos deve ser o mais democrática possível, ou seja, não se pretende obscurecer as tensões sociais e políticas no campo da relação das artes com o público geral. Entende-se, porém, que é necessário que emerjam múltiplos sujeitos discursivos no campo das artes e, para tanto, a educação e a formação de um repertório é crucial.
Retomamos, por fim, Jacques Derrida. O autor afirma que a Universidade sem condição não se situa necessariamente e nem exclusivamente apenas no que hoje se chama de “universidade”, mas em todos os lugares onde essa incondicionalidade possa ser enunciada ou talvez pensada. Constituir uma coleção e uma exposição sem condição significa criar e garantir espaços de questionamento e radical interrogação sobre o campo das artes – e, mais ainda, sobre o momento em que vivemos. Além do potencial pedagógico proporcionado pelo encontro entre os alunos – e o público em geral – e as poéticas dos diversos artistas, há um componente de imaginário que deve ser ressaltado. Desse encontro, surge um potencial de produzir outras possibilidades de viver e estar no mundo, de representá-lo.
Ana Roman é doutoranda em Art History and Theory na Universidade de Essex (UK) e curadora da mostra 29ª Mostra de Arte da Juventude (SESC Ribeirão Preto, 2019), entre outras.
Referências
1 Fernando Fragozo. Da incondicionalidade: universidade, ciências, filosofia. In: Em Construção: arquivos de epistemologia histórica e estudos de ciência, 2018
2 Von Krüger, Constance. A coleção – um gesto poético: uma leitura benjaminiana sobre o colecionismo. In: Cadernos Benjaminianos, Belo Horizonte, v. 8, p. 71-78, 2014