Por uma comunidade cívica no Brasil
Os cientistas políticos discutem de maneira interessante a ideia de capital social equiparando a aquilo que chamamos de “civismo” em pequenas comunidades, municípios e até em países inteiros
Mais uma pesquisa sobre a popularidade do governo de Jair Bolsonaro em tempos de pandemia foi divulgada. Mal publicam e uma horda de analistas políticos distribuem os resultados de maneira aleatória e instantânea em suas redes sociais. A conversa sobre política em tempos de covid-19 é feita nesse espaço social e não mais no bar, na calçada, no almoço de família e na reunião de trabalho. O bom sinal é que ela permanece até retornar a outros espaços públicos.
Os resultados da pesquisa, como os de outras recentes, não são bons para o governo. Revelam um executivo federal perdendo apoio, incapaz de ver a importância do isolamento social como única medida neste momento para conter o avanço do vírus letal e ainda pouco conhecido. Mostram também que, apesar de uma pequena queda do mês anterior para este, há apoio considerável às estratégias dos governadores diante da crise sanitária e até melhor aceitação da atuação do Congresso. Após alguns anos sendo destroçados por canais e instituições, políticos aparecem como agentes públicos sobre os quais o cidadão pode repousar alguma confiança. Isso me parece um alívio. Será que o brasileiro começa a entender? Está sabendo separar o mau político da boa e fundamental atividade política, necessária em qualquer sociedade? A ver.
Perversidade
Nessa rearrumação de tabuleiro me chama atenção um detalhe, a tolerância de grupos a falas cada vez mais perversas do chefe do executivo brasileiro. Há um grupo que permanece preso à lógica perversa do presidente de atacar as medidas de contenção da epidemia e que parece culpar quem é infectado pelo vírus, adoece e morre. Esse são os fracos, o que há de problema? Em todo lugar há os que vão morrer e os que resistem por serem fortes. É assim que tenho lido. Neste momento em que me deparo com o discurso do dono de um banco de investimento decadente de nossa república. “Pico de Covid-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela”, afirma Guilherme Benchimol.
Não me interessa quem é Guilherme Benchimol, de onde veio, para onde vai, nem como é a sua cara, isso já está dado, nada o que fazer. Como cientista política, o que me interessa é o significado da frase desse ator social quando ocupa a posição estratégica e simbólica que tem. Um dono de banco no Brasil que ignora a gravidade de nossa desigualdade, do sofrimento de famílias e que se sente confortável em dizer publicamente que o pico do coronavírus (no seu grupo) já passou.
A frase ficou martelando: “Pico de Covid-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela”, “o desafio é que o Brasil tem muita favela”, “muita favela”… Vi semelhanças entre esta frase e o “E daí?”, “Não sou coveiro” de Jair Bolsonaro. E qual é a diferença dessas para a de Paulo Guedes quando este, um banqueiro e hoje super ministro, diz que a vida está boa para quem recebe R$ 600: “Se falarmos que vai ter mais três meses, mais três meses, mais três meses, aí ninguém trabalha. Ninguém sai de casa e o isolamento vai ser de oito anos porque a vida está boa, está tudo tranquilo”. A fala desses três remete a um padrão cultural, a uma ideia de sociedade, a uma formação de nossos grupos estratégicos, dos grupos que decidem em um momento como este. E é isso que tem que nos interessar como sociedade.
Os cientistas políticos discutem de maneira interessante a ideia de capital social equiparando a aquilo que chamamos de “civismo” em pequenas comunidades, municípios e até em países inteiros. Robert Putnam se destaca entre esses intelectuais como um importante apoiador deste modelo. Após uma pesquisa extensa sobre a Itália, Putnam nos mostra que o capital social significa “características de organizações sociais, como as redes, as normas e a confiança, que facilitam a ação e a cooperação com vista a um mútuo benefício”. Ele continua: “trabalhar em conjunto é mais fácil numa comunidade abençoada por um volume substancial de capital social”. Aqui, poderíamos trocar o conjunto por coletividade, “trabalhar em uma coletividade é mais fácil numa comunidade abençoada por um volume substancial de capital social”. Bruno Reis em seu artigo resume bem a discussão de Putnam numa frase: “Putnam dedicou seu livro a tentar responder por que, afinal, as instituições políticas das diversas províncias italianas podem exibir desempenhos tão díspares de umas províncias para outras, já que todos os governos regionais dispõem, afinal, de instituições políticas”.
Há muitos outros autores das Ciências Sociais que já se debruçaram sobre esta questão, mas o trabalho de Putnam tem um pioneirismo e uma importância que mereciam ser compartilhados aqui. Para ele, “comunidades cívicas” valorizam a solidariedade, a participação cívica e a integridade. Da mesma forma, tanto comunidades cívicas como não-cívicas, na leitura dele, se reforçam, fortalecendo suas características que parecem ter raízes e explicações culturais e históricas. Uma das críticas ao argumento de Putnam vem daí, uma vez que se considerarmos em sua totalidade esta lógica, não atribuímos aos indivíduos e às instituições o papel que têm, de mediadores e transformadores de um equilíbrio cívico ou não-cívico. Mas eles têm esse papel, e é a isso que chamo atenção.
As razões históricas e culturais são necessárias para entender como estamos, mas não são suficientes. Precisamos entender por que um tipo de arranjo cultural não-cívico permanece nas falas, nas práticas, nos pensamentos, reproduzindo-se e se reforçando nas decisões institucionais, no tecido social todos os dias, todos os meses e anos a fio. Por que toleramos tanto isso diariamente? Ou melhor, por que não rompemos com isso toda vez que vemos?
Mas Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e Guilherme Benchimol, a julgar pelas frases proferidas neste momento tão grave, não parecem entender a coletividade como um conjunto de toda a sociedade. Ela é reservada e limitada a determinados grupos. Isso basta. E é sobre essa construção de coletividade que teremos que nos debruçar e mudar após todos os horrores sanitários e políticos passarem, pois estes passarão. Como cidadãos, temos muito trabalho pela frente em casa, nas ruas, nas instituições, na coletividade. E como cientistas sociais, temos também uma agenda de pesquisa a ser desdobrada e revisitada, para ontem.