Por uma organização da comunidade mundial
Como fundar uma organização mundial realmente engajada na defesa do bem comum dos povos e, principalmente, capaz de limitar o poder das grandes potências?Monique Chemillier-Gendreau
A reforma das Nações Unidas é um tema tão velho quanto aquele hipotético monstro marinho fabuloso sobre o qual os jornalistas voltam a falar quando falta assunto1. A burocracia da ONU, inchada ao longo dos anos, é taxada de ineficiente. O Conselho de Segurança, órgão responsável pela manutenção da paz, dominado pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, não cumpriu sua tarefa, deixando os conflitos se multiplicarem e escolhendo intervir de maneira arbitrária. Anunciados com o fim da Guerra Fria, os “dividendos da paz” foram apenas uma astúcia e as vendas das armas foram ressaltadas porque as grandes potências fizeram a escolha da militarização de suas economias. As operações de manutenção da paz se desenvolveram de maneira exponencial, conduzindo muitas vezes a fiascos retumbantes2. A operação no Iraque, decidida unilateralmente pelo presidente George W. Bush, ao tirar este país de uma ditadura para metê-lo no caos e na violência, confirmou a impotência da ONU.
A atualidade da reforma foi relançada por um primeiro relatório de peritos apresentado ao secretário-geral no fim de 2004 sobre as ameaças, os desafios e a mudança, seguida pela publicação do relatório de Kofi Annan, em 21 de março de 20053. Ali se encontra uma análise dos “desafios de um mundo em mudança”: a guerra entre Estados, a violência dentro dos Estados, a pobreza, as doenças infecciosas e a degradação ambiental, as armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas, o terrorismo, a criminalidade organizada. Assim, a tônica é colocada sobre a prevenção, e o objetivo da manutenção da paz é, por conseguinte, ligado às condições dessa paz.
O secretário-geral incluiu propostas muito precisas apresentadas no relatório de peritos relativos à regulamentação das armas (marcação e localização das armas leves, transparência dos estoques) e a definição do terrorismo (“qualquer ato [… ] cometido na intenção de causar a morte ou ferimentos graves a civis ou não-combatentes, que tem por objeto, por sua natureza ou contexto, intimidar uma população ou forçar um governo ou uma organização internacional realizar um ato ou se abster de fazê-lo”).
Limites da reforma
O que os beneficiários do estatuto de membro permanente fizeram deste poder em meio século demonstra suficientemente que é necessário terminar com tal sistema
A propósito da paz e consciente dos riscos de deterioração de um país que sai de um conflito, o secretário-geral propôs uma Comissão de Consolidação da Paz. Enfim, insiste para que todos os Estados-membros assinem e ratifiquem um grande número de tratados que abordem a proteção dos civis, os diferentes aspectos do desarmamento e, sobretudo, o estatuto de Roma, que dá autoridade ao Tribunal Penal Internacional. Mas não há lá um discurso da impotência já que o direito internacional, que permanece no quadro geral de qualquer reforma, deixa aos Estados soberanos plena liberdade de seus compromissos? E qual impacto terá essa exortação do secretário-geral sobre os Estados acinzentados de poder que mostraram superabundantemente nos últimos anos, que estavam acima qualquer regra?
Mas por importantes que sejam todas as considerações relativas ao ambiente no qual pode se estender o mecanismo central da manutenção da paz, elas ocultam os limites das propostas relativas à pergunta central: a da reforma institucional das Nações Unidas. O secretário-geral evita ir até o fundo do problema. A categoria de membros permanentes não é debatida apesar do uso de legitimidade dos cinco Estados vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Assim, contrariamente a um título esperançoso -“Democratizar o Conselho” (confissão que a composição deste rompe com a igualdade entre os membros, contudo proclamada) -, nenhum progresso da democracia entre os povos perfila-se ao horizonte. O estatuto dos membros permanentes e o direito de veto permanecem posições de poder sem outra justificativa. No entanto, o que os beneficiários do estatuto fizeram deste poder em meio século demonstra suficientemente que é necessário terminar com tal sistema. Sua impunidade, a consolidação da sua potência, a militarização à qual eles conduziram o mundo exige sem hesitação por uma diminuição dos seus privilégios.A Alemanha, o Japão, o Brasil e a Índia (G4) são abertamente candidatos a esse estatuto privilegiado e outros estão na fila.
Órgão aristocrático
Através dos ordenamentos que se propõe, o Conselho de Segurança permanece, então, um órgão aristocrático em ruptura com a democracia na sua essência igualitária
Não há, por conseguinte, nenhuma contestação da idéia de permanência da potência apesar do fato de que ela seja efêmera por natureza. Os novos que se admitiriam nesse clube porque são os potentes de hoje serão duplicados por outros mais potentes amanhã. Mas é necessário, sobretudo contestar a potência como critério de designação dos responsáveis. Toda a história da democracia consistiu em lutar contra o confisco do poder pelo mais rico ou mais forte. Através dos ordenamentos que se propõe, o Conselho de Segurança permanece, então, um órgão aristocrático em ruptura com a democracia na sua essência igualitária e o anúncio “Democratizar o Conselho” é um falso semblante.
As propostas relativas à Assembléia Geral são muito fracas. E a relativa a um Conselho dos Direitos do Homem para substituir a atual comissão é apenas uma melhoria relativa: as funções e os poderes desse novo órgão não são especificados. Nesse domínio, só uma reforma conduziria a eficácia dos direitos do homem que as vítimas de violações esperam. É a criação de um Tribunal Internacional dos Direitos do Homem, frente ao qual os direitos declinados pelos pactos internacionais seriam justiçados e os recursos individuais possíveis sob certas condições. A Europa adotou esse mecanismo com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sediada em Estrasburgo desde 1959, dando assim uma imensa vantagem aos Europeus sobre os humanos dos outros continentes. É urgente preencher este fosso. O Conselho dos Direitos do Homem proposto não é o suficiente.
Desigualdades indecentes
Enfim, se as causas da insegurança do mundo forem analisadas seriamente no recente relatório, a pergunta da segurança não é tanto para ser colocada em relação com a definição do bem comum no seio da comunidade política mundial. Lá, contudo, está o desafio principal do nosso tempo. E as medidas propostas são obstruídas por dois fatores: a hegemonia mantida pelos que confiscaram o poder em 1945 e a universalidade do liberalismo desde a queda do comunismo. Temos todos a perder.
As medidas propostas são obstruídas pela hegemonia mantida pelos que confiscaram o poder em 1945 e a universalidade do liberalismo desde a queda do comunismo
Para sonhar por outro sistema institucional mundial, é imperativo se perguntar primeiro em qual mundo vivemos e onde queremos ir. A idéia que domina o projeto de 1945 é a da segurança coletiva, mas as ameaças até então tidas em conta eram interestaduais, forças militares contra forças militares. As ameaças mudaram de natureza, o que o alto responsável das Nações Unidas sublinha: disseminação das armas clássicas ou nucleares, meios rudimentares de terrorismo, genocídios a golpes de sabre, são tantas as violências que atravessam e ultrapassam os Estados. Suas causas? A fome, as desigualdades indecentes de desenvolvimento, a desigualdade frente às catástrofes naturais, em especial climáticas, o incentivo das grandes potências às vendas de armas e os tráficos diversos, as ideologias de apoio ao racismo e às discriminações (grupos neonazistas numerosos em países da Europa e na Rússia, sionismo discriminatório contra os árabes em Israel e que conduz à recusa da paz na Palestina).
No entanto, os humanos não cessarão jamais de ser confrontados com a sua violência. O que se desdobra, através da globalização, deixa pelo caminho frações de excluídos cada vez mais importantes, gerando novas formas de violência e a entrada em cena de um terrorismo generalizado.
Comunidade das Nações
A resposta da ONU, mesmo melhorada com as propostas lançadas por Kofi Annan, aparece como profundamente insuficiente. A complexidade da sociedade mundial é ignorada. A ONU gera (bem ligeiramente) as relações entre os Estados. As relações intensas estabelecidas diretamente pelas populações fora de controle dos Estados desenvolvem-se em uma pura relação de forças e em detrimento dos direitos humanos, contudo afirmados. A urgente necessidade de pôr sob um estatuto de proteção e de divisão eqüitativa os dados vitais (água, energia, conhecimentos, medicamentos etc.) é estranho à Organização apesar do alerta dado a esse respeito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Se a ONU se revelar incapaz de melhorar, as grandes potências não irão ceder nada do seu poder e continuarão a captar o essencial dos recursos do mundo
Se a ONU se revelar incapaz de melhorar, as grandes potências não irão ceder nada do seu poder e continuarão a captar o essencial dos recursos do mundo, portanto é necessário urgentemente inventar uma organização da comunidade mundial. Os Estados mais sacrificados pela globalização seriam aconselhados a deixar a ONU para fundar imediatamente outra na medida das suas necessidades. Qual seria um projeto livremente concebido? Colocada em Jerusalém, como propôs o Régis Debray, ou na África ou ainda na América Latina para descentralizar simbolicamente do Ocidente, uma organização universal refundada teria por objetivo a construção de uma comunidade política universal, não substituta das comunidades nacionais, mas complementar a elas, a fim de responder à complexidade de uma sociedade que mistura relações interestaduais e interindividuais. O desafio central seria a definição e a defesa do bem comum dos povos. É através desse projeto que a manutenção da paz pode aparecer como outra coisa além de uma terapêutica tardia e muitas vezes desesperada.
Para responder a essa lógica, a arquitetura institucional poderia ser concebida em quatro órgãos políticos. A Assembléia Geral representaria os Estados. Uma segunda assembléia deveria responder à difícil representação das populações. Não é eleita diretamente porque isso abriria a porta a todas as manipulações. Um recinto reservado à sociedade civil por meio das organizações não governamentais (ONG) deve também ser afastado na medida em que elas são auto-legitimadas e desigualmente repartidas geograficamente. Uma solução aceitável, ao menos no momento, seria que a segunda assembléia fosse procedente dos parlamentos nacionais. Cada parlamento enviaria um número de membros, proporcional à sua população, mas de acordo com uma chave que permitisse evitar sobre ou sob representações. Assim, os pequenos Estados deveriam se agrupar para ter representação e isto seria salutar porque “um Estado, uma voz”, mantido para a primeira assembléia, e que lhes é muito favorável, seria assim corrigido.
Reflexão fértil
Essas duas assembléias trabalhariam juntas e nas comissões sobre um modelo bicameral nas questões políticas, mas também econômicas, sociais, militares e culturais de alcance mundial. Os textos votados teriam valor vinculativo e não seriam mais a soft law. O Conselho Econômico e Social desaparece, bem como o Conselho de Tutela4.
Uma organização universal refundada teria por objetivo a construção de uma comunidade política universal, não substituta das comunidades nacionais, mas complementar a elas
Nessas duas assembléias, feitas durantes dois Conselhos, um responsável pelas ações de prevenção (não militares) à paz e um agente das intervenções no caso de ruptura da paz. Os membros do primeiro (25) seriam formados por deputados eleitos apenas pela segunda assembléia e entre os membros desta, sem distinção entre si e por um período igual para todos. Seria particularmente encarregado de utilizar as medidas tomadas no domínio da organização da comunidade mundial em proveito do bem comum.
O segundo Conselho, responsável pela segurança, comportaria os representantes de 25 Estados eleitos pelas duas assembléias reunidas. Teriam todos a mesma duração de mandato e as mesmas prerrogativas de decisão. A categoria de membros permanentes e o veto seriam então suprimidos. Seria necessário imaginar, contudo, como regular o paradoxo de confiar a responsabilidade da paz a Estados que têm interesse pela guerra. Uma cláusula de inelegibilidade a esse conselho deveria barrar Estados que têm feito a escolha por orçamentos militares exorbitantes em relação às suas despesas sociais ou para os quais uma constatação de agressão teria sido estabelecida nos dois anos que precedem a eleição.
Os órgãos principais contariam ainda com um secretário geral responsável por sua ação frente às duas assembléias. Quanto ao Tribunal Internacional de Justiça, o seu estatuto seria reformado de modo que ele fundisse com o Tribunal Penal Internacional e que a competência desse duplo órgão jurisdicional seja obrigatória5. Um Tribunal Internacional dos Direitos do Homem viria completar esse dispositivo judicial.
A reflexão é fértil nessas direções, fora dos círculos governamentais6. As propostas acima estão entregues para ser discutidas. Os três imperativos que elas exprimem: necessidade de democracia (pelo desaparecimento de qualquer prerrogativa em proveito de certos Estados), necessidade de direito (pelo reforço das competências das assembléias gerais) e necessidade de justiça (pela competência obrigatória dos órgãos jurisdicionais internacionais) não podem ser ignorados muito mais tempo.
(Trad.: Marcelo de Valécio)
1 – É prova disso a obra de 950 páginas de Joachim Muller Reforming the United Nations. The quiet Revolution, Kluwer law International, La Haye, 2001.
2 – Ler Maurice Bertrand, L’ONU, La Découverte, Paris, 2004 (5a. edição), página 92.
3 – Documento das Nações Unidas A/59/2005. Este relatório pode ser consultado em: http://www.diplomatie.fr/actu
4 – O Conselho de tutela, composto por membros que administram territórios sob tutela e outros membros (artigo 86 da Carta), é um dos órgãos principais da Organização das Nações Unidas encarregado de supervisionar a administração dos territórios sob tutela. Com a independência de Palau, último território em causa, o conselho decidiu oficialmente suspender as suas atividades
Monique Chemillier-Gendreau é professora de Direito Internacional na Universidade Paris VII – Denis Diderot.