Por uma “Primavera Europeia” em maio
A eleição do próximo Parlamento Europeu acontece entre os dias 23 e 26 de maio. O quadro geral é sombrio: as condições do Brexit permanecem confusas, a relação com os Estados Unidos é marcada pelas humilhações deliberadas de Washington, a extrema direita vai de vento em popa e a esquerda não chega a um acordo sobre um projeto europeu
A crise financeira planetária de 2008 – a de 1929 de nossa geração – desencadeou uma reação em cadeia em toda a Europa. Em 2010, ela já tinha destruído os alicerces da zona do euro, levando os membros do establishment a transgredir suas próprias regras a fim de salvar os investimentos de seus amigos banqueiros. Em 2013, a ideologia neoliberal, que até então tinha legitimado a tecnocracia oligárquica da União Europeia, espatifou-se, após ter jogado na miséria milhões de pessoas aplicando políticas oficiais: o socialismo para os detentores do capital financeiro e uma austeridade implacável para o maior número de pessoas. Essas políticas foram conduzidas tanto pelos conservadores quanto pelos sociais-democratas. Durante o verão de 2015, a renúncia do governo do partido Syriza, na Grécia, teve como consequências a divisão e a desmoralização da esquerda. Ela acabou com a esperança efêmera de ver progressistas que surgiram das ruas e das praças modificarem as relações de força na Europa.
Desde então, a cólera exacerbada pelo desespero deixou um vazio, rapidamente preenchido de um extremo a outro da Europa pela misantropia organizada por uma Internacional nacionalista que encanta o presidente norte-americano Donald Trump. Chumbada por um establishment que lembra cada vez mais a infeliz República de Weimar, assim como pelo racismo que as forças deflacionárias engendram, a União se fende. A chanceler alemã se dirige para a saída, o projeto europeu do presidente francês se mostra natimorto e as eleições para o Parlamento Europeu no próximo mês de maio oferecem a última oportunidade para os progressistas terem peso no nível pan-europeu.
Desde seu nascimento, em 2016, o Movimento pela Democracia na Europa 2025 (DiEM25) teve como objetivo aproveitar essa chance.1 Em um primeiro momento, preparamos nosso programa, o “New Deal for Europe” [Novo Acordo para a Europa]. Em seguida, convidamos outros movimentos e partidos para enriquecer e criar conosco nossa “Primavera Europeia”, primeira lista transnacional de candidatos que defendem um programa comum de escala europeia. Antes da discussão desse projeto, a esquerda deve encarar de frente dois pontos cruciais que a dividem e enfraquecem um pouco os progressistas em todo o continente: o problema das fronteiras e a questão da União Europeia.
Uma coisa muito curiosa ocorreu nos últimos anos: um grande número de cidadãos de esquerda foi levado a pensar que fronteiras abertas prejudicavam a classe operária. “Jamais fui favorável à liberdade de instalação”, afirmou diversas vezes Jean-Luc Mélenchon (do movimento França Insubmissa). Fazendo uma intervenção no Parlamento Europeu em julho de 2016 sobre a questão dos trabalhadores deslocados provisoriamente para outro país da União Europeia, ele declarou que, cada vez que um deles chega, “rouba o pão dos trabalhadores que se encontram no lugar” – afirmação pela qual, posteriormente, pediu desculpas, mesmo que sua análise quanto aos efeitos das migrações sobre os salários internos não tenha mudado.
Esse debate não é novo. Em 1907, Morris Hillquit, fundador do Partido Socialista da América, propôs uma resolução visando acabar com “a importação deliberada de mão de obra estrangeira a baixo custo”, defendendo que “os migrantes constituíam, sem estar conscientes disso, um veio de furadores de greve”. O novo, hoje, é que uma boa parte da esquerda parece ter se esquecido da crítica muito viva de Lenin, formulada em 1915 nestes termos: “Acreditamos que não é possível ser internacionalista e ao mesmo tempo favorável a tais restrições… Esses socialistas, na realidade, são chauvinistas”.
Em um artigo de 29 de outubro de 1913, Lenin forneceu o contexto: “Não há dúvida alguma de que somente a pobreza extrema pode obrigar as pessoas a abandonar sua terra natal e que os capitalistas exploram os trabalhadores imigrantes das maneiras mais vergonhosas. Mas somente os reacionários podem se recusar a ver o significado progressista dessa migração moderna das nações. O capitalismo atrai massas de trabalhadores do mundo inteiro. Ele quebra as barreiras e os preconceitos nacionais e une os trabalhadores de todos os países”.
A vida pode melhorar nas regras atuais
O movimento DiEM25 retoma a análise de Lenin: os muros que entravam a livre circulação das pessoas e das mercadorias são uma resposta reacionária ao capitalismo. A resposta socialista consiste em derrubar os muros, permitir ao capitalismo se autodestruir enquanto organizamos a resistência transnacional à exploração. Não são os migrantes que roubam os empregos dos trabalhadores locais, mas as políticas de austeridade dos governos que se inscrevem na luta de classes engajada em benefício da burguesia nacional.
Esse é o motivo pelo qual não permitimos que uma forma “alijada” de xenofobia contamine nosso programa. Como diz Slavoj Žižek, o nacionalismo de esquerda não é uma boa resposta para o nacional-socialismo. Nossa posição sobre os novos imigrantes defende igualmente dois pontos: nos recusamos a fazer uma triagem entre migrantes e refugiados e demandamos à Europa que os deixem entrar (#LetThemIn).
Companheiros de diversos países nos consideram utópicos. Segundo eles, a União Europeia não pode ser reformada. Se eles tiverem razão, a melhor resposta dos progressistas é trabalhar para o “Lexit”, ou seja, uma campanha da esquerda para uma desintegração controlada da União? Eu guardo com emoção uma lembrança de minhas intervenções na Alemanha diante de salões lotados no dia seguinte da capitulação do Syriza perante Angela Merkel e a Troika.2 As pessoas presentes explicaram que o que havia sido feito na Grécia não tinha sido em nome delas, em nome do povo alemão. Eu me lembro de como elas ficaram aliviadas em saber que o DiEM25 tinha feito um apelo para criar um movimento transnacional a fim de tomar o controle de instituições da União – Banco Europeu de Investimento (BEI) e Banco Central Europeu (BCE) – e de redesenvolvê-las de acordo com os interesses de todos os cidadãos.
Tenho também na memória a alegria de nossos companheiros alemães quando lhes foi apresentada a ideia de lançarem, para as eleições europeias, candidatos gregos na Alemanha e candidatos alemães na Grécia. Trava-se de mostrar que nosso movimento é transnacional, que ele entende se apropriar, aqui e agora, das instituições da ordem neoliberal. Não para destruí-las, mas para colocá-las a serviço de um número maior de pessoas em Bruxelas, Berlim, Atenas e Paris. Em toda parte.
Agora, imagine o que, ao contrário, teriam sentido se eu lhes tivesse feito o seguinte discurso: “A União não é reformável e deve ser dissolvida. Nós, os gregos, devemos nos voltar para nosso Estado-nação e tentar construir o socialismo lá. Vocês deverão fazer o mesmo aqui na Alemanha. Em seguida, uma vez que tivermos ganho, nossas delegações se encontrarão para discutir a colaboração entre nossos novos Estados progressistas soberanos”. Sem dúvida alguma, nossos companheiros alemães teriam perdido seu entusiasmo e voltado para casa desanimados com a perspectiva de enfrentar o establishment alemão enquanto alemães e não como membros de um movimento transnacional.
Se minha análise estiver correta, pouco importa saber se a União é reformável ou não. O que conta é levar adiante proposições concretas sobre o que faremos com as instituições europeias. Não proposições extravagantes ou utópicas, mas descrições completas de quais seriam nossas ações esta semana, no próximo mês e no ano que vem, considerando as regras atuais e os instrumentos existentes. Por exemplo, como redefiniremos o papel do mal denominado Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), como reorientaremos a política chamada de “flexibilização quantitativa” (quantitative easing) do Banco Central Europeu, como financiaremos imediatamente e sem novos impostos a transição ecológica ou uma campanha de luta contra a pobreza.
Por que propor um programa tão detalhado? Para mostrar para os eleitores que existem soluções, mesmo no interior de regras estabelecidas para servir aos interesses do 1% mais favorecido. Evidentemente, ninguém – e sobretudo nós – espera que as instituições da União se juntem às nossas proposições. O que queremos é que os eleitores vejam o que poderá ser feito em lugar do que é feito, de modo que eles desmascarem o establishment sem se voltarem para a direita xenófoba. É a única maneira, para a esquerda, de superar seus limites atuais e construir uma grande coalizão progressista.
O “New Deal for Europe” tem exatamente esse objetivo: em primeiro lugar, mostrar que a vida da maioria dos cidadãos pode ser melhorada a curtíssimo prazo, mesmo com as regras e as instituições existentes. Em segundo, delinear a transformação dessas instituições e, ao mesmo tempo, planejar o processo para a convocação de uma Assembleia Constituinte que, a longo prazo, levaria a uma Constituição Europeia democrática pela qual todos os tratados existentes serão substituídos. Em terceiro, demonstrar como os mecanismos que introduziremos desde o primeiro dia poderão nos ajudar a juntar os cacos se, apesar de todos os nossos esforços, a União se desintegrar.
Muitos são os que falam da importância da transição ecológica. Mas eles não dizem de onde virá o dinheiro nem quem a planejará. Nossa resposta é clara: entre 2019 e 2023, a Europa precisa investir 2 trilhões de euros nas tecnologias verdes, na energia solar, eólica etc. Propomos que o BEI emita durante quatro anos um volume de bônus suplementares da ordem de 500 bilhões de euros. Ao mesmo tempo, o BCE anuncia que, se o valor desses bônus cair, ele os comprará no mercado secundário de títulos. Considerando esse anúncio e a superabundância de poupanças em todo o mundo, o BCE não terá de desembolsar um único euro, uma vez que todos os títulos serão imediatamente vendidos. Com base no modelo da Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE) – precursora da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) –, criada em 1948 para distribuir os créditos do Plano Marshall, uma nova Agência Europeia de Transição Ecológica canalizará esses fundos para projetos “verdes” em todo o continente.
Cabe observar que essa proposta não necessita de nenhum imposto novo, pois se baseia em um título europeu existente (por exemplo, os bônus do BEI) e é plenamente legal de acordo com as regras em vigor. O mesmo ocorre com outras propostas de nosso “New Deal” sobre as medidas a serem tomadas imediatamente. Por exemplo, nosso fundo antipobreza. Propomos que bilhões de lucros do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), principalmente os lucros dos ativos no contexto de flexibilização quantitativa, sejam utilizados de modo a garantir alimentação, habitação e energia para todos os cidadãos.
Outro exemplo é nosso plano de reestruturação da dívida pública da zona do euro. O BCE servirá como mediador entre os mercados financeiros e os Estados para reduzir o fardo de sua dívida total sem precisar emitir moeda e sem que a Alemanha tenha de pagar ou garantir a dívida pública dos países mais endividados.
Como mostram esses exemplos, nosso “New Deal” faz uma combinação entre medidas que necessitam de uma alta competência técnica, aplicáveis considerando as regras existentes da União, e uma ruptura radical com a austeridade e com a lógica de “salvamento” imposta pela Troika. Além disso, prevê instituições que preparem o terreno para um futuro europeu pós-capitalista. É o caso de uma proposta de socialização parcial do capital e dos lucros provenientes da automatização: o direito de grandes empresas operarem na União será subordinando à transferência de uma porcentagem de suas ações para um novo Fundo Europeu de Ações. Os dividendos dessas ações financiarão, em seguida, uma renda básica universal a ser paga para todos os europeus, independentemente de outros benefícios sociais, seguro-desemprego etc.
União da esquerda é crucial
Outro exemplo da radicalidade de nossas propostas: a reforma do euro. Antes de mergulharmos nas mudanças a serem feitas nos estatutos do BCE, temos um projeto de criar uma plataforma digital pública de pagamentos em todos os países da zona do euro. Os contribuintes terão possibilidade, então, de comprar créditos fiscais digitais utilizáveis para efetuar transações entre eles ou para pagar futuros impostos com um desconto substancial. Esses créditos serão feitos em euros, mas somente poderão ser transferidos entre contribuintes de um mesmo país, o que impedirá brutais fugas de capitais.
Ao mesmo tempo, os governos poderiam criar uma quantidade limitada desses euros fiscais e destiná-la aos cidadãos que passam por dificuldades básicas ou para financiar projetos públicos. Os euros fiscais permitiriam aos governos sob pressão estimular a demanda, diminuir sua dívida e, enfim, reduzir a força esmagadora do BCE e evitar o custo de uma saída ou de uma desintegração do euro. A longo prazo, essas plataformas digitais públicas de pagamento poderão constituir um sistema regulado de euros específico a cada país, que funcionará como uma câmara de compensação internacional. Seria uma versão modernizada da visão de John Maynard Keynes do que veio a ser o sistema de Bretton Woods, mas que infelizmente ele não estava mais vivo para ver.
Para resumir, nosso “New Deal for Europe” é um projeto global para: a) redesenvolver, com perspicácia, de acordo com os interesses da maioria, as instituições existentes; b) fazer o planejamento de um futuro pós-capitalista, radical e verde; c) nos prepararmos para recuperar a saúde da União Europeia se ela sofrer um colapso.
A esquerda tem dois inimigos: a desunião e a incoerência. A união é crucial, mas não deve ser feita à custa da coerência. Tomemos, como exemplo, o estado do Partido da Esquerda Europeia atualmente. Como seus membros podem batalhar pelos votos dos eleitores no próximo mês de maio se, na Grécia, é representado por um partido que, quando no governo, implementou o mais brutal programa de austeridade da história do capitalismo e, em países como a França e a Alemanha, um grande número de seus dirigentes é eurocético?
Amigos de esquerda bem intencionados nos perguntam por que o DiEM25 não faz uma aliança com o movimento França Insubmissa, encabeçado por Jean-Luc Mélenchon e, na Alemanha, com o movimento Aufstehen, liderado por Sahra Wagenknecht e Oskar Lafontaine. A razão é simples: porque nosso dever é construir a unidade que tenha como base um humanismo radical, racional e internacionalista. Isso significa um programa radical comum para todos os europeus e uma política em favor de uma Europa aberta que considera as fronteiras como cicatrizes no planeta e dá boas-vindas aos imigrantes. Essa é a plataforma mínima.
Nosso apelo à unidade se baseia em uma ideia simples: o DiEM25 convidou todos os progressistas para serem coautores de nosso “New Deal for Europe”. Nosso apelo foi ouvido. Génération-s (França), Razem (Polônia), Alternativet (Dinamarca), Democrazia e Autonomia (Itália), MeRA25 (Grécia), Demokratie in Europa (Alemanha), Wandel (Áustria), Actúa (Espanha), Livre (Portugal) se juntaram a nós. Outros estão prestes a fazê-lo. Juntos, constituímos a coalizão “Primavera Europeia”, que lançará candidatos para as eleições no próximo mês de maio.
Nossa mensagem para o establishment europeu autoritário é a seguinte: resistiremos a vocês por meio de um programa radical, que é bem mais sofisticado tecnicamente que o de vocês.
Nossa mensagem para os xenófobos fascistas: combateremos vocês em todos os lugares.
Nossa mensagem para nossos companheiros da esquerda europeia, do movimento França Insubmissa etc.: podem contar com nossa infindável solidariedade, na esperança de que, um dia, nossos caminhos vão se convergir a serviço de um humanismo radical e transnacional.
*Yanis Varoufakis é economista, ministro das Finanças da Grécia entre janeiro e julho de 2015 e fundador do Movimento pela Democracia na Europa 2025 (DiEM25).
1 O ano de 2025 corresponde ao prazo final fixado pelo movimento “Para fazer que a Europa se torne plenamente democrática e funcional”. [Nota da redação.]
2 FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. [Nota da redação.