Por uma segunda abolição
Reconhecer o racismo no Brasil é passo fundamental para enfrentá-lo de forma mais efetiva e enérgica. Precisamos vivenciar uma nova extinção da escravatura, que transcenda o corpo da lei e faça prevalecer o seu espírito. Uma libertação que não fique só no papel, mas que conquiste também as consciências
Minha pele é negra, minha cor é a humanidade. Eis a mensagem de um brasileiro de corpo negro, mas de alma mestiça. Um brasileiro que passou a perceber o Brasil não só por sua ancestralidade essencialmente africana, mas pela graça da mistura, que reúne ameríndios, africanos e europeus nesse país-continente chamado Brasil. Culturas originariamente tão distintas, aqui hoje amalgamadas, que me fazem sentir tão negro quanto brasileiro. É assim que me percebo, é assim que percebo o meu país.
Para entender o que significa ser negro no Brasil é preciso primeiro entender a riqueza mestiça de sua formação. Somos um país que se fez de misturas cromáticas e sincretismos culturais. De fusões, confusões e transfusões de genes e signos. Um país que se afirmou diverso pela adversidade de sua história e formação. Um país que, desde os seus primeiros anos de colonização, aprendeu a ser e a se ver sob as lentes multifocais da mistura. Só isso já faz do Brasil uma nação diferente e, portanto, do negro brasileiro, um negro também diferente, singular por ser mestiço e plural.
Essa diversidade étnica e cultural da formação brasileira imprimiu um modo também diverso do negro se perceber e ser percebido. Num país onde a história se deu por interações, muitas vezes, sofridas e impostas aos descendentes africanos, o negro passou a ser visto como uma entre as várias raízes que formaram o Brasil – e não como parte de uma sociedade dividida entre “brancos e negros”, sob o padrão racial dicotômico que caracteriza, por exemplo, a sociedade norte-americana.
Se fizermos uma breve comparação entre a história dos negros no Brasil e nos Estados Unidos, poderemos perceber bem essa diferença. Basta ver como nos EUA a religiosidade dos negros se desenvolveu como uma ramificação do cristianismo e no Brasil, como manifestações sincréticas ou marcadamente fiéis às tradições religiosas africanas, envolvendo o culto à natureza e aos orixás. Basta perceber como diversas raízes lingüísticas africanas foram mantidas no vocabulário escrito e falado do Brasil, o que não ocorreu nos Estados Unidos. Basta observar como os negros norte-americanos se mobilizaram em atitudes especialmente segregacionistas, ao contrário dos negros brasileiros que, mesmo resistentes ao racismo e ao jogo excludente do país, permaneceram em uma atitude, de um certo modo, mais agregadora, voltada à inclusão. Enfim, são breves comparações que mostram que, apesar de tentarem nos impor uma visão ianque de nossas relações raciais, nossa história é outra. Essas considerações mostram o quanto aprendemos a nos encarar e a nos entender como seres essencialmente mestiços e o quanto a mestiçagem interveio na forma de os negros se expressarem e serem vistos no Brasil.
Mas serem “vistos” não significa serem “reconhecidos”. A mestiçagem no Brasil ainda não se traduziu em justiça social. Carregamos em nossa história uma vasta carga de preconceitos e discriminações que reproduzem até hoje, ainda que de forma velada, a violência social do regime escravocrata. No Brasil, os negros sofreram e sofrem com o racismo e continuam confinados na base da pirâmide social e no jogo cruel da exclusão. O Brasil cultiva um racismo tácito, que coloca os afro-descendentes em desvantagem, em uma condição notadamente desigual. Reconhecer, portanto, o racismo no país é passo fundamental para enfrentá-lo de forma mais efetiva e enérgica. Vivemos uma abolição parcial, que ainda precisa ser concluída. Eu pergunto: será que estamos livres de fato? Livres para sermos em nossa plenitude? Livres para nos desenvolvermos no exercício pleno de nossas capacidades? Livres para partirmos juntos, lado a lado, da faixa de largada na corrida da educação, da renda, do emprego, da saúde e da sobrevivência? Estamos realmente livres da pecha da escravidão, do estigma da subserviência, do complexo de inferioridade que nos marcaram e ainda hoje marcam nossas vidas? Ainda não… ainda. Precisamos viver uma segunda abolição que transcenda o corpo da lei e faça prevalecer o espírito da lei. Uma abolição que não está no papel, mas nas consciências.
Apesar de ter uma presença massiva na população brasileira, os negros ainda têm presença incipiente no mercado de trabalho, nas classes de alto poder aquisitivo, no meio universitário e nas esferas de poder. Segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 75,3% dos negros não chegam nem a completar o ensino fundamental no Brasil e, portanto, raramente arranjam empregos mais valorizados e assumem postos de chefia. Se tomarmos as estatísticas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), podemos observar que entre o décimo mais rico da população, quase 88% são de cor branca e 15% são negros ou pardos, enquanto entre os 10% mais pobres, cerca de 70% são negros ou pardos. Os números também mostram que as desigualdades têm sido mais acentuadas nos estados com mais negros. Na terra em que nasci, Bahia, apesar de mais de 80% da população ser negra ou parda, os trabalhadores negros e pardos recebem apenas 36% do rendimento/hora dos trabalhadores brancos.
Por mais que a sociedade, ainda que timidamente, tenha começado a encarar a questão, temos muito que avançar. Romper com a dialética entre estigmatização x idealização em busca de caminhos novos de afirmação das singularidades dos negros brasileiros e de estabelecer um diálogo mutuamente estimulante com a tradição. Transcender medidas paliativas e compensatórias, que são importantes, mas não suficientes, e concentrarmo-nos em agir no plano das consciências: no plano de quem exclui e de quem é excluído. Agir no enfrentamento do racismo que atinge o negro, mas também no enfrentamento do racismo que produz o negro – quando, nas palavras de Paulo Freire, “o opressor habita no oprimido”.
No momento em que começarmos a tratar da questão de forma mais abrangente, teremos respostas também mais abrangentes. Se encararmos a problemática da questão racial no Brasil como uma questão pertinente para o conjunto da população, e não apenas aos negro-mestiços, poderemos então vislumbrar sinais de mudança.
Não podemos tratar a inclusão social e cultural como um processo de cooptação ou de incorporação de grupos e indivíduos a uma dimensão hegemônica que o processo histórico tenha consagrado como sendo “a” cidadania. Quando falo em inclusão, falo em cada um segundo sua própria história, seus valores, suas expressões, para a construção de uma igualdade na diversidade através de um diálogo efetivamente democrático de identidades que não precisem se anular. Ao mesmo tempo, é preciso recuperar a enorme dívida do Estado com os afro-descendentes.
É nesse sentido que a contribuição negra precisa se dizer forte, precisa se dizer completa, não só porque queremos ser iguais, mas porque também queremos o desigual, porque queremos acolher a diferença. O sociólogo português Boaventura Sousa Santos costuma dizer que “devemos lutar pela igualdade toda vez que a diferença nos discrimina, mas devemos lutar pela diferença, toda vez que a igualdade nos descaracteriza”. A grandeza da existência humana é poder trabalhar com a pluralidade, é poder compreender nas diferenças o conjunto da igualdade humana.
O Brasil é o que é hoje porque é negro, porque é amarelo, porque é branco, porque é plural. A brasilidade, embora muitos ainda não admitam, é o que é hoje porque é principalmente negra. O negro nos deu resistência e coragem para sermos o que hoje somos, mas também nos deu ginga, cadência e generosidade para permitir que os outros também sejam.
A qualidade do negro está na capacidade de se afirmar não só pela raça, mas pela graça, não só pela luta, mas pela ternura, não só pela régua, mas pelo compasso. A qualidade do negro é trabalhar a diversidade em sintonia com a alteridade. Por essa qualidade procuramos qualificar o mundo e deixar que o mundo nos qualifique.
*Gilberto Gil é músico, cantor, compositor e ministro de Estado da Cultura.