Porque o “doisladismo” é um totalitarismo
O que indica o uso do termo polarização como desqualificador? É um estigma. Sociologicamente, ele é utilizado por uma categoria que reúne líderes de opinião, jornalistas e comentaristas do centro econômico-intelectual do Brasil, isto é, São Paulo e Rio de Janeiro.
A desqualificação da polarização é uma maneira sutil de silenciar o debate, ridicularizar e humilhar o contraditório. É um tipo de totalitarismo de mercado que opera essencialmente na esfera discursiva. Contudo, ao agir nessa esfera, seu triunfo final se manifesta na concretização de um projeto econômico destrutivo.
Trata-se de uma atualização do famoso slogan de Margaret Thatcher, “There is no alternative” (Não há alternativa), desta vez, enunciado positivamente em forma de uma injunção do mercado: “somos a única alternativa”.
O que indica o uso do termo polarização como desqualificador? É um estigma. Sociologicamente, ele é utilizado por uma categoria que reúne líderes de opinião, jornalistas e comentaristas do centro econômico-intelectual do Brasil, isto é, São Paulo e Rio de Janeiro. O uso indiscriminado do termo polarização indica também o limite do mercado de comentaristas midiáticos, onde a escassez de ideias faz com que a maioria dos analistas repita como um mantra a nova palavra de moda sem ao menos tentar expressar certas nuances em sua utilização.
Outro termo que foi amplamente banalizado pela análise midiática nos últimos anos é a palavra “narrativa”. Usada como um termo “passe-partout”, ele acabou sendo esvaziado de sentido, expressando apenas uma espécie de niilismo político.
Um dos campos acusados de polarizar a política é o PT com sua pauta “Lula Livre”. Também não é coincidência que Lula seja estigmatizado como o “molusco” – desta vez pela extrema-direita –; nas caricaturas retratam um semi-humano.
Outro polo estigmatizado é o bolsonarismo e a extrema-direita. Embora, nos fatos, Bolsonaro não seja exatamente o oposto de Lula; digamos que ele não é a figura política em que Lula poderia ser espelhado; entretanto, é nesses termos que a mídia constrói a “narrativa” de que os dois polos se equivalem e que a única saída seria a alternativa centrista.
Um centrismo que é moralista
O posicionamento econômico de quem utiliza a polarização como estigma é claro: defende a liberalização e abertura dos mercados, mas é muito mais que isso. Ele postula que o crescimento econômico está moralmente situado acima de qualquer outra pauta política. Nem a questão racial (genocídio dos negros e da população indígena), nem a ambiental podem atrapalhar a marcha do progresso. Nota-se, de acordo com esse pensamento, que a polarização é pintada como contrária ao progresso.
Ora, nem historicamente esse argumento se sustenta; a mudança geralmente acontece em contextos polarizados. E não cabe agora empreender uma valoração moral do tipo de mudança que ocorre (Alexander, 2019). Não sabemos exatamente o que esperar de um contexto polarizado, de modo que, recusá-lo, a priori, é uma forma de conservadorismo. Outro pressuposto que a postura moral do Centro reforça é que a virtude está de seu lado do espectro político, ao passo que o vício está do lado da polarização.
Operação discursiva
Antes que me acusem de fazer um uso indevido do conceito de totalitarismo, o qual, sabemos, é um conceito datado e situado historicamente, gostaria de dizer em minha própria defesa que estou ciente que “tudo conceito tem um núcleo duro de significados”, como afirma o sociólogo brasileiro Gabriel Cohn. É justamente a um deles que gostaria de me agarrar: me refiro ao aspecto do silenciamento da opinião contrária.
O totalitarismo como categoria política e sociológica se distingue das outras formas de autoritarismo pelo fato de atuar na esfera do pensamento e da crítica (Arendt, 2012).
Há, contudo, uma contradição e um risco nessa operação de silenciamento do outro: ao marginalizar quem propõe um discurso radical e de ruptura, ou seja, uma crítica radical do fascismo e do programa econômico neoliberal (já que os dois fenômenos caminham juntos), o centrismo moral tende a acelerar a mudança que se propõe a obstaculizar. Bastaria, para entender esse processo, analisar, a partir do sociólogo alemão Reinhart Koselleck, o surgimento da crise no Ancien régime, como resultado necessário de um processo de silenciamento do pensamento crítico.
Em Orwell, o totalitarismo também se faz mais eficaz na medida em que coage os indivíduos no nível discursivo deformando a relação entre significado e significante do símbolo linguístico.
Em defesa do dissenso
Enquanto operação política, o uso do termo polarização como instrumento silenciador define também quem está qualificado ou não a existir dentro da sociedade democrática. É nesses termos que Jeffrey Alexander (2019) analisa os efeitos do termo que, na prática, funciona para autorizar ou desautorizar:
Todo líder democrático poderoso, (…), evocou os mesmos binarismos para sugerir que seus oponentes são civicamente incapazes e que somente eles e seus amigos estão dispostos e aptos a agir em nome da civilidade e a serem racionais, autônomos, abertos, cooperativos, orientados para o povo e solidários com este.
Ora, no fundamento do Estado democrático não está precisamente o consenso. O consenso é o resultado que obtemos uma vez que tramitamos por todos os dispositivos que as instituições democráticas nos oferecem para a resolução dos conflitos. O dissenso é salutar para a existência da democracia, é nele que reside a vitalidade democrática.
Eu diria, assumindo uma postura provocativa, que se existe uma dimensão verdadeira na designação desses dois espectros políticos que são o bolsonarismo e lulismo como polos opostos: é o reconhecimento implícito que somente eles estão realmente em posição de estabelecer um diálogo democrático. Pois, como diria Rancière, a democracia supõe “a cena política, a cena de comunidade paradoxal que põe em comum o litígio, [e que] não poderia identificar-se com um modelo de comunicação entre parceiros constituídos sobre objetos ou fins pertencentes a uma linguagem comum. ”
Existe um esforço constante do comentarista político em apresentar a democracia como algo de fácil realização. É tudo o contrário; a democracia recobre vários campos da vida que desafiam nossa imaginação e exigem uma inventividade radical e permanente. Esses campos, diz Rancière:
São aqueles onde a pressuposição do entendimento está em litígio, em que é preciso produzir ao mesmo tempo a argumentação e a cena em que ela deve ser entendida, o objeto da discussão e o mundo em que figura como objeto. A interlocução política é, por excelência, um tal campo.
Praticamente todas as esferas do debate público que configuram um espaço de radicalização política correspondem a essa descrição. É precisamente por isso que dividem: a luta antirracista, o feminismo, o movimento LGBT, o ambientalismo, a educação, etc. são algumas delas.
O doisladismo contra a solidariedade
Não se pode dizer que os adeptos desse tipo de posicionamento demonstram uma falta de empatia – não há fundamento para tal afirmação –, mas o que está absolutamente autorizado pensar é que o doisladismo carece de sentido solidário. Considerando aqui a solidariedade como preceito eminentemente republicano.
Há alguns meses, uma internauta sugeria que eu analisasse a noção de fraternidade à luz da atualidade justamente “polarizada” do Brasil. Segundo o diagnóstico que ela propunha, havia uma carência de fraternidade no Brasil que explicava a degradação do debate político. Claro, a fraternidade, terceiro mandamento do republicanismo francês [liberté, égalité et fraternité] é um valor da Revolução francesa. Está na base da construção do Estado democrático de direito pós-revolução. A fraternidade não é só um valor cristão, embora esse seja uma das suas dimensões, ela é um cimento da coesão nacional e fortalece a ideia do comum que nos torna modernos, isto é, políticos.
A solidariedade supõe superar a reificação do crescimento econômico como um fim em si. Ela supõe incorporar a ideia que sem a superação do racismo estrutural não há a menor possibilidade da democracia brasileira prosperar; ela supõe olhar mais para a questão indígena; ela supõe superar a indexação do argumento contraditório como lógica da polarização. Muitas vezes, trata-se tão somente de um grito de socorro. E neste momento, só posso lembrar do desespero de Jean-Luc Godard, numa carta a André Malraux, então ministro da cultura da França gaullista: “Como, então, você poderia me ouvir, Andre Malraux; eu que telefono para você de fora, de um país distante, a França livre? ”
Podem nos ouvir?
Em definitivo, quando examino a proporção que tomou no debate nacional o estigma da polarização, não posso deixar de pensar no subestimado filme de Clint Eastwood, “A troca”, protagonizado pela atriz Angelina Jolie. Levada até às últimas consequências, a desqualificação da polarização desenha um destino para todos aqueles que são alvos do estigma: a internação e o manicômio.
Referências
Alexander, Jeffrey. Progressistas/reacionários: A crise da solidariedade e a ameaça às instituições cívicas. Blog do Sociofilo, Trad. Ábia Marpin, 2019.
Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. Companhia das Letras, Trad. Roberto Raposo, São Paulo, 2012
Goffman, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Trad. Mathias Lambert, 1963.
Koselleck, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Editora Contraponto, Trad. Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro, 1999.
Orwell, George. 1984. Companhia das Letras, Trad. Heloisa Jahn e Alexandre Hubner, São Paulo, 2009.
Rancière, Jacques. O desentendimento. Ed. 34, Trad. Angela Leite Lopes, São Paulo, 1996