Portugal erradica suas favelas
Com um crescimento do PIB de 3,2% ao ano, uma inflação controlada em 2,1% e uma das mais baixas taxas de desemprego na Europa (4,5%), Portugal ainda apresenta indicadores de desenvolvimento humano pouco invejáveis: as favelas são sinais de pobreza que todos gostariam de empurrar para o passadoEmmanuel Vaillant
À entrada de Mato Cheininhos, uma vila de mil habitantes situada a 20 quilômetros de Lisboa, quatro imóveis recentemente pintados estão plantados no meio de um campo. As persianas das janelas estão fechadas nos apartamentos ainda vazios. No lugar da futura área de lazer do totalmente novo loteamento, uma tenda acolhe mais de 300 pessoas. Neste domingo todas as autoridades da região estão presentes, do deputado até o chefe de polícia, do prefeito até os responsáveis pela habitação.
A cerimônia tem ares de entrega de prêmios. Ao chamado de seus nomes, famílias, jovens solteiros, aposentados — portugueses, africanos e ciganos — sobem ao estrado sob aplausos. Um oficial lhes estende um par de chaves e uma caderneta intitulada “Manual de habitação”. Daqui a uma semana todos deixarão os seus alojamentos aleatórios nas favelas de Lisboa para ocupar apartamentos novos, neste loteamento ou em um dos quatro outros recentemente construídos na região.
Lisboa e Porto: 150 mil favelados
À saída, microfones e câmeras dirigem-se a estes rostos freqüentemente emocionados, um pouco incomodados diante de tantas solicitações. O acontecimento é amplamente coberto pela imprensa nacional. Marca, de fato, uma das primeiras realizações do Programa Especial de Realojamento (PER), programa nacional de erradicação de favelas. Adotado pelo Parlamento há já seis anos, dotado de uma verba de 200 bilhões de escudos (cerca de 1,1 bilhões de dólares), abrange oficialmente mais de 150 mil pessoas que ainda vivem em bairros de “barracas”, entre Lisboa e Porto.
O desafio está à altura de um contraste impressionante. Fortalecido por um crescimento de seu produto interno bruto (PIB) de 3,2% ao ano, por uma inflação controlada em 2,1% e por uma das mais baixas taxas de desemprego — oficial — na Europa (4,5%), Portugal, o bom aluno da escola européia, [1]continua apresentando indicadores de desenvolvimento humano pouco invejáveis. [2]E apesar de uma política ambiciosa de grandes obras sustentadas pela União Européia — da ponte Vasco da Gama, sobre o Tejo, à Exposição Mundial de 1998 — as favelas são sinais exteriores de pobreza que todos gostariam de empurrar para o passado, no momento em que o país vive um frenesi consumista sem precedentes.
De madeira, ou mais freqüentemente de tijolos, construídas por seus habitantes sem título de propriedade em terrenos públicos e privados, os primeiros barracos apareceram em Portugal no início dos anos 60. Era a época de uma industrialização encetada sob a ditadura de Salazar, quando centenas de milhares de camponeses instalaram-se nas cidades e nos circuitos de Lisboa e do Porto.
Somente a cinco estações de metrô do centro da capital, a Rua da Picheleira, um dos mais antigos bairros de barracos, é testemunha desse êxodo rural. Se as ladeiras obstruídas pela roupa posta a secar em varais são pavimentadas de velhas pedras como muitas das ruas da capital, nelas corre, no entanto, uma água usada através de canos despedaçados. Cada fachada de tijolos desbotada enquadra uma porta de madeira com o número pintado à mão. Sobre tetos de chapa ondulada estão fincadas antenas de televisão, algumas parabólicas e uma multidão de fios embaraçados que se cruzam e se esgarçam em direção aos raros postes elétricos instalados pela municipalidade.
Um afluxo maciço de refugiados
Estas construções precárias e deterioradas estão nesse lugar há mais de 30 anos. “35 anos”, precisa Teresa que, com seu marido hoje falecido e outrora empregado em uma oficina mecânica, foi das primeiras a chegar. Chão aladrilhado e encerado, paredes decoradas com azulejos e fotos de família em molduras douradas, mobílias envernizadas em uma sala onde impera uma grande televisão a cores, a casa de Teresa é bem cuidada, apesar de uma bacia de plástico que recupera a água da chuva pingando por uma goteira num canto do teto enferrujado. “Meu vizinho vai vir consertar”, diz a senhora. “Você sabe, desde sempre aprendemos a nos virar. E nada mudará. Como pagar um outro lugar para morar com 32.000 escudos (cerca de 130 dólares) de aposentadoria por mês? Mesmo antigamente não tínhamos outra escolha.”
Como todos os vizinhos, Teresa é originária do sul de Portugal, da região agrícola do Alentejo. “Aqui não há ciganos. Somos todos portugueses do campo. Alguns partiram para trabalhar na Europa, outros para Lisboa. Na França ou aqui, morava-se sempre em favelas. Champigny, você conhece?” comenta esta antiga empregada doméstica, antes de cutucar suas lembranças do tempo da recessão, desde o fim dos anos 60, que levou a uma vaga de emigração para o resto da Europa, especialmente para a França. É bem verdade que nessa época surgiram algumas cidades ao longo da via periférica à Lisboa. Os dois filhos de Teresa vivem hoje nessa região, com a família, “os dois em boa situação”. Segundo ela, um deles é contador em uma sociedade de informática, o outro responsável por uma loja de brinquedos do centro. Mas estas construções enfrentavam já um déficit de moradias que vai se tornar mais acentuado com o novo êxodo que se anuncia. Com efeito, depois da Revolução do 25 de abril de 1974 e da descolonização inevitável devida ao fracasso militar na África, o país teve que enfrentar a vinda de 600 mil refugiados de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e das ilhas de S.Tomé e Príncipe. Estas populações em geral não tinham outra escolha senão alojar-se em qualquer lugar. Nos anos seguintes a situação agrava-se ainda, apesar do crescimento econômico. Em 1986 a adesão de Portugal à Comunidade Européia marca o início de um desenvolvimento sustentado por seus novos parceiros. O aumento das obras públicas estimula uma política de grandes obras que atrai mão-de-obra estrangeira. Antigo país de emigração, Portugal abre-se agora à imigração. Mas na falta de moradias, esses imigrantes vão inchar a população das favelas e de algumas conjuntos habitacionais deteriorados que se espalham pela periferia das cidades.
As autoridades coniventes
Supõem-se que as “barracas” devem ocupar todos os espaços deixados livres na cidade e nos arredores. Instaladas em terrenos pouco visíveis, em geral em ladeiras, perto de uma infra-estrutura viária, uma avenida periférica, uma auto-estrada, uma praça do tipo rotunda no meio da cidade, ou uma via férrea, elas escapam a qualquer regulamentação urbanística. Porque essas habitações precárias foram toleradas durante anos? “Porque as autoridades, locais e nacionais, encontraram nisso um certo interesse”, responde Maria José Maranhão, socióloga do Centro de Estudos Territoriais de Lisboa. “Com um mercado legal de moradias muito especulativo, pois os terrenos para construção são raros, e com uma política de habitação social enfraquecida, as construções de barracos são uma resposta ’espontânea’ para as necessidades de alojamento dos trabalhadores. Não tendo eles que pagar aluguéis, as pressões para aumento de salário são reduzidas. O que garante sempre uma mão-de-obra competitiva”.
A 25 quilômetros de Lisboa, o Bairro dos Marianes foi instalado perto da estação de trens, no município de Carcavelos, à beira do Tejo, um lugarejo aprazível onde se enfileiram bairros de casarões. “Veja, deste lado estão os velhos portugueses das colônias. Ainda há muitos. E do outro estão os africanos” observa Fiorenzo, originário de Cabo Verde, português de nacionalidade, que vive há 18 anos nesta favela de cinco mil habitantes. O urbanismo deixa marcas de uma precariedade evidente. Os barracos estão colados a fileiras de imóveis envelhecidos. Um cheiro pestilento sai de um terreno vazio cheio de detritos. Há dois meses que as lixeiras não são esvaziadas. As ruelas lamacentas deixam escorrer águas usadas escuras e espumantes ao lado de muros de tijolos desbotados. Aqui a população conta com diferentes gerações de imigrantes. Os homens estão principalmente empregados na construção civil, as mulheres em atividades de limpeza e em restaurantes. “Para quem quer, há sempre trabalho, mesmo se varia conforme as estações: calmo no inverno, transbordante no verão”, afirma Fiorenzo, pedreiro como a maioria de seus vizinhos. Trabalho garantido, é verdade. Mas para estes operários pouco qualificados, empregados ao belprazer dos canteiros de obras e pagos ao dia, quando não ao metro por azulejo colocado, o mercado de emprego é brutal, como denuncia o economista e deputado — no entanto liberal — David Justino: “As condições de trabalho no país são deploráveis. A competitividade das empresas faz-se sobre a base de salários, e não sobre a de tecnologia. A flexibilidade vai longe hoje. É a lei da selva.”
“O problema é moradia. Trabalho, não”
Com sua mulher e seus quatro filhos, de idade de 12 a 20 anos, Fiorenzo mora em um barraco de quatro cômodos. “Eu mesmo o construí”, explica ele mostrando o interior da casa, apontando para as paredes com umidade escorrendo e o chão em parte quebrado, contrastando com um equipamento moderno: uma televisão ligada a um aparelho de jogo de video, um som hi-fi, uma cozinha bem aparelhada, etc. “Você acha que merecemos viver nestas condições? ” diz esse pai de família. Com suas ruas quebradas, suas casas sempre em construção, sua população de maioria africana, o bairro tem uma reputação de gueto, um estigma que os habitantes tentam apagar. “É evidente que há droga e delinqüência, mas não mais que em outros lugares. Vivemos como todo mundo”, defende-se Lúcia, a mulher de Fiorenzo. E ele acrescenta: “O único problema é a moradia; o trabalho, não”.
A alguns quilômetros de distância, uma outra favela se estende junto a um conjunto de imóveis vetustos, ao longo de um terreno em declive. Duas bicas de água para meio milhar de habitantes, algumas latarias de carros depenados como decoração, crianças andrajosas brincam não muito longe do barraco onde trabalham três jovens prostitutas, enquanto um grupo de homens espera a sua vez esvaziando caixas de cerveja: este bairro chama-se “Fim do Mundo”… Francisco, um guineense de 40 anos tem aí um restaurante em um quarto do seu barraco, que é também a sala de estar de sua família. Sua mulher, ajudada pelas duas filhas, ocupa-se da cozinha. Ele serve de garçom e bate papo com a clientela: os habitantes dos barracos e dos imóveis vizinhos. “Não fazemos diferença entre nós e os dos conjuntos habitacionais aí da frente. Somos todos da mesma galera. Esses imóveis, nós os chamamos de bairro das “Viúvas dos vivos”, porque há muitas mulheres sós com crianças. Seus maridos trabalham em canteiros de obras na Suíça e na Alemanha. Voltam uma ou duas vezes por ano.”
Francisco também trabalhou durante muito tempo na construção. Era pedreiro até que um acidente, há três anos, deixou-o inválido de uma perna. “O restaurante era a única escolha. Mas agora é preciso mudar de lugar. Por causa dos meus filhos. Eles não podem continuar a viver aqui. Procurar um bom emprego com o endereço “Fim do Mundo” é conformar-se em esperar muito, antes de ser convocado para uma entrevista.” Francisco está inscrito há um ano na lista dos que serão realojados. Ele já escolheu o novo apartamento dentre os que lhe foram propostos. E tem esperança de que possa abrir um restaurante em seu próximo lugar de residência.
Desemprego é baixo na favela
“Muitos erros foram cometidos no passado e tentamos não reproduzí-los”, sublinha Maria João Freiras, socióloga no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, um instituto governamental encarregado da questão das favelas. “Por exemplo, durante muito tempo pensamos que era suficiente mudar as pessoas de lugar. Ora, o que é construído é apenas a parte emergente dos problemas. Não é suficiente ter uma moradia, nem mesmo um trabalho, para sair do círculo vicioso da exclusão. A prova é que a taxa de desemprego nas favelas é inferior à média nacional. É preciso interrogar-se sobre o meio-ambiente num sentido mais amplo, sobre as razões que fazem com que, sendo as crianças mais escolarizadas que os pais, conseguem empregos ao mesmo nível, como se qualquer ascensão social lhes estivesse proibida, como se as imagens da exclusão colassem em suas peles.”
O realojamento em um bairro de Trajouce — uma vila operária da região de Cascais — mostrado a título de exemplo, demonstra uma realização cuidadosa. Previamente à chegada da “gente das barracas” em um novo loteamento da cidade, mais de um ano de trabalho foi necessário para que todo mundo aprendesse a se conhecer. É que do lado dos habitantes do lugarejo a oposição era violenta. “Foi necessário romper com as idéias de senso comum habitualmente ligadas à gente das ’barracas’, cuja chegada era vista pelos habitantes já instalados como uma difamação do seu espaço e deles próprios. Por exemplo, foram organizadas atividades para as crianças para que as mães se encontrassem”, conta Isabel, uma jovem socióloga encarregada de seguir o programa.
Novas lutas sociais
Por sua parte, as autoridades tiveram que dar provas de persuasão investindo maciçamente no desenvolvimento de novas infra-estruturas na cidade, financiadas pela União Européia. Uma nova escola, um centro médico, uma delegacia, melhorias viárias, novas linhas de ônibus, nada parece ter sido negligenciado para revalorizar um meio ambiente que dá lugar a lutas sociais nas quais os desafios econômicos misturam-se aos de um potente simbolismo.
Do lado das pessoas realojadas, as dificuldades não eram de somenos. “As pessoas estavam habituadas a ter uma sociabilidade de proximidade em torno das bicas para lavar a roupa, por exemplo. Nossas pesquisas mostraram que os mais velhos se acomodaram melhor que os jovens. Pois quem fala de realojamento fala de novo espaço com normas onde o controle social não é necessariamente bem vivido pelos jovens. Já os adultos reinvestem em seu espaço privado, a cozinha ou a sala, explica a socióloga. Menos de um ano depois desse realojamento em Trajouce a situação é encorajante. As inquietações dissiparam-se. A imagem da “gente das barracas” dilui-se. Alguns beneficiaram-se de condições vantajosas para tornar-se proprietários de seu novo apartamento. A escola é freqüen