Praça Tahrir, sete anos depois
Os egípcios vão eleger seu presidente no dia 26 de março. A oposição denuncia um jogo de cartas marcadas, com todos os candidatos de envergadura impedidos de enfrentar o atual presidente, Abdel Fattah al-Sissi. As esperanças que surgiram em janeiro de 2011 evaporaram, enquanto a população enfrenta a degradação econômica e a mão de ferro do regime
Praça Tahrir, uma noite de dezembro. No piso lustrado do edifício Mogamma, um enorme prédio administrativo da década de 1950 construído pela ex-URSS em um pesado estilo soviético, um grupo de jovens anda de skate lançando desafios, sob o olhar de dois policiais indulgentes. Casais de todas as idades, sentados nas muretas de pedra dispostas aqui e ali, assistem ao espetáculo. Todos parecem indiferentes ao ruído ensurdecedor dos carros e à poeira, dois flagelos de Cairo que nenhuma revolução foi capaz de vencer. Parece distante o tempo em que centenas de milhares de egípcios, lado a lado nesta enorme praça, derrubavam um regime moribundo aos gritos de “Mubarak, vá embora!” e “‘Aïch, Horia, ‘Adala Edjtéma’ïa!” (“Pão, liberdade e justiça social!”).
Dois anos e meio após a “revolução de janeiro”, como os egípcios a chamam hoje – sem mencionar o dia de seu início (25) nem o ano em que ocorreu (2011) –, nesta Praça Tahrir que se tornou o lugar obrigatório da expressão popular, um número tão grande de egípcios quanto em janeiro de 2011, se não maior, exigia a saída do presidente democraticamente eleito em junho de 2012, Mohamed Morsi, membro da Irmandade Muçulmana. Após um golpe de Estado desejado por parte da população, o Exército assumiu o poder em 30 de junho de 2013.1 A resistência pró-Morsi tentou se organizar, e foi reprimida com um banho de sangue algumas semanas depois: foram mil mortos no dia 14 de agosto de 2013 na Praça Rabaa, no Cairo. Milhares de pessoas foram presas. Um ano depois, em junho de 2014, o marechal Abdel Fattah al-Sissi foi eleito para a presidência da República, com 97% dos votos. Desde então, o que se passa? Como se vive no Cairo?
TVs nas mãos do governo
À primeira vista, não pior do que antes. Os cafés populares, onde as pessoas fumam narguilé por horas enquanto assistem ao futebol ou discutem qualquer coisa com os amigos, estão sempre cheios. Os que preferem beber uma cerveja, moças e rapazes misturados, se reúnem nos bares que ocupam os terraços dos edifícios ao redor. Pode-se ir ao cinema, assistir a shows ou admirar o trabalho de artistas contemporâneos, por exemplo, na Galeria Townhouse, soberbo local de exposição instalado em uma antiga fábrica de papel, a algumas centenas de metros da Praça Tahrir. Com um magnífico estacionamento subterrâneo e uma imensa bandeira egípcia plantada na superfície, a própria praça parece esforçar-se para esquecer que um dia a população esteve ali pedindo a cabeça de dois presidentes.2 As avenidas à sua volta exalam ordem e limpeza, e o Ministério do Interior, alvo da fúria revolucionária, foi prudentemente deslocado para um bairro distante. Salvo alguns agentes de trânsito com uniformes azuis e talão de multa em mãos, a presença policial parece inexistente. Apesar de tudo isso, em outubro passado a Anistia Internacional publicou um relatório denunciando o clima político perigoso no Egito. “Advogados, jornalistas, adversários políticos, ativistas, defensores dos direitos humanos, nenhuma voz crítica escapa à repressão maciça das autoridades egípcias, que continuam detendo, perseguindo ou encarcerando pessoas pelo simples exercício pacífico de seu direito à liberdade de expressão”, denuncia a organização.3
Miran F., uma jovem que conhecemos com seus amigos perto da Praça Tahrir, não concorda. “Se eu me sinto vivendo sob uma ditadura? Não, na verdade não!” Nascida há trinta anos em uma família da pequena burguesia do Cairo – pai engenheiro, mãe dona de casa –, ela “obviamente” participou da revolução de 2011 e depois das manifestações populares de 2013. “Minha mãe é Sissi roxa! Ela o adora! Meu pai é mais crítico, acha que ele não sabe conduzir a economia, que desde que chegou tudo está muito caro. Eu fico entre os dois. Não morro de amor por Sissi, mas acho que ele herdou uma situação econômica catastrófica e faz o que pode.” E a repressão, as pessoas presas, isso não a assusta? “Sim, um pouco. Mas entre eles há terroristas também. Além disso, Sissi deve saber o que está fazendo. Quando as coisas melhorarem, ele vai soltá-los.” De qualquer forma, Miran e seus amigos não têm medo de falar de política nos cafés abertos para a rua, onde, apesar do constante barulho dos carros, qualquer estranho na mesa ao lado pode ouvir a conversa. “Até no Facebook eu não tenho medo de criticar o governo, nem mesmo o presidente! Nunca me preocupei com isso.” Seu amigo Ahmed T. intervém: “De todo modo, o que realmente interessa não é a liberdade, é o dinheiro. E hoje todo mundo está sofrendo com a crise econômica!” (ver boxe).
Para além das reflexões dispersas coletadas ao acaso nas conversas – cheias de opiniões tão divididas como as da família de Miran –, é difícil saber o que os egípcios pensam do regime, o qual se empenha em desencorajar qualquer atitude contestatória. “Gente que não sabe nada sobre o que é um Estado quer intervir e fazer declarações. Isso é inaceitável”, declarou em janeiro um ameaçador Sissi, lançando um aviso a personalidades e partidos de oposição que pediam boicote à eleição presidencial, prevista para o fim de março. Esses opositores argumentam que a eleição é um “teatro do absurdo”, por causa da prisão, da retirada mais ou menos forçada ou do impedimento de inúmeros adversários do presidente. “Garantimos estabilidade e segurança, senão é o caos”, continuou Sissi. “Eu não ameaço ninguém. O que aconteceu no Egito há sete anos não se repetirá.”
O clima político também se caracteriza por um forte retorno dos militares a todos os lugares de poder, especialmente na economia. “O Exército há muito tempo goza de uma imagem positiva”, lembra Tewfik Aclimandos, professor da Universidade do Cairo. “Com razão ou não, ele é considerado menos corrupto que a polícia, mais eficaz que as administrações civis, e parece uma emanação do povo. No Egito, todo mundo tem um parente ou conhecido no Exército.” Quanto a saber o que as pessoas acham do presidente, “é proibido, de qualquer forma, fazer verdadeiras pesquisas de opinião sobre ele”, diz o acadêmico. “Temos de nos contentar com sinais de otimismo. A partir daí, parece quase certo que o entusiasmo que levou o presidente Sissi ao poder em 2013-2014 caiu muito, especialmente após o ataque ao avião russo, em 2015.4 Mas ele ainda tem uma base sólida.”
Para manter uma taxa suficiente de opiniões favoráveis, o regime conta com uma ferramenta muito poderosa: o controle da mídia, principalmente a mais consumida delas, a televisão.5 Sob a presidência de Hosni Mubarak e depois nos anos após a revolução, surgiram canais privados, com programas de entrevistas muito populares, que traziam verdadeiros debates. Tudo isso desapareceu. Hoje, todos os canais estão nas mãos do regime e de seus amigos. O mesmo ocorre com a mídia impressa, com exceção do jornal Al-Masri Al-Youm, um diário com tiragem de 120 mil exemplares – para uma população de quase 100 milhões. “Somos independentes”, comenta Doaa Eladl, famosa cartunista do jornal. “Mas existem linhas vermelhas – mal definidas, por sinal, o que complica ainda mais meu trabalho. Qualquer assunto pode irritar o regime. Eu tento não me autocensurar, mas sei o que faço.” É inimaginável, por exemplo, desenhar o presidente. Em compensação, em novembro de 2017 ela conseguiu publicar um cartum mostrando jovens egípcios presos, no momento em que o presidente Sissi abria o Fórum Mundial da Juventude em Sharm el Sheikh. “Tenho um problema mais sério”, continua. “Se o assunto for muito delicado, nenhum jornal, nem o nosso, fala sobre ele.”
Essa censura permitiu ao governo incutir em muitos espíritos o fantasma paranoico da espionagem estrangeira. “Nos programas de TV, nos jornais, sempre há um capanga do regime pronto a explicar que os Estados Unidos e seus aliados europeus apoiaram a sociedade civil egípcia para derrubar Mubarak”, diz o escritor Khaled al-Khamissi, autor de uma famosa coleção de contos, Taxi (2007), e do romance A arca de Noé (2009).6 “Ou que um complô norte-americano-sionista quer dar parte do Sinai para os palestinos. Mas que, felizmente, o presidente Sissi conseguiu frustrar essas conspirações e salvar o Egito!” E funciona. Basta começar a tirar fotos pela janela de um ônibus para que, em alguns instantes, um passageiro mande parar “imediatamente!”. Por quê? “É uma questão de segurança nacional!”
Irmandade Muçulmana apagada
Nesse contexto, os espaços de dissidência reduzem-se ao extremo. As organizações egípcias de direitos humanos falam em “60 mil presos políticos”, esclarecendo que é impossível obter números confiáveis. Muitas pessoas são presas e depois liberadas sob fiança. A maioria está ligada à Irmandade Muçulmana ou simplesmente é suspeita de simpatia a Morsi. A elas se somam militantes do campo revolucionário. A Comissão Egípcia por Direitos e Liberdades (ECRF, na sigla em inglês) fala em quarenta desaparecimentos forçados por mês. A Irmandade Muçulmana, que durante décadas foi a única força de oposição, foi literalmente eliminada da paisagem política, tanto pela repressão quanto por causa dos profundos conflitos internos. Milhares de membros se refugiaram na Turquia. “E os que ficaram no Egito, se não estão presos, vivem como fantasmas”, diz a pesquisadora Fatiha Amal Abbassi, autora de uma tese em fase de conclusão sobre a Irmandade. “Mudaram suas roupas, sua maneira de falar, e a usra, reunião semanal da qual os membros tinham de participar, foi suspensa. Também há muitos que, em completo desacordo com seus líderes, se distanciaram da organização.” Alguns provavelmente se uniram a organizações terroristas, mas não é possível investigar esse fenômeno, descaradamente instrumentalizado pelas autoridades, para as quais qualquer oponente é “terrorista”.
Quanto aos militantes de 2011, aqueles que foram o motor da revolução – “um grupo de alguns milhares de pessoas, no início”, de acordo com o cientista político franco-egípcio Youssef el Chazli, “em torno do qual se somaram dezenas de milhares de simpatizantes, sem jamais, no entanto, chegarem a constituir uma organização ou um partido” –, a maioria deles cessou toda a atividade política. Alguns estão presos; outros decidiram morar no exterior; muitos passaram por um período de depressão.7 “É muito doloroso ter participado de algo tão grande como a revolução, ter realmente sonhado em mudar a cara de seu país e virar testemunha da própria derrota”, lamenta Mansoura Ez-Eldin, jornalista literária da revista semanal Akhbar Al-Adab e autora de um delicado romance sobre a necessidade de escrever, Jabal al-zomorrod [O monte esmeralda] (2014).8 Sentada no Chesa, “café suíço” (está escrito na frente) da Rua Adly, não muito longe da Praça Tahrir e de seu jornal, ela continua: “Eu sobrevivi lendo, escrevendo e me concentrando nas pequenas coisas da vida. Com meu marido e meus filhos, mudamos para New Cairo, um bairro longe daqui. Lá, tenho a impressão de viver em outro lugar, longe de Tahrir”.
Reuniões importantes proibidas
Alguns ex-revolucionários prolongam seu engajamento em ONGs de defesa dos direitos humanos. É o caso de Malek Adly, chefe da rede de advogados Egyptian Center for Economic and Social Rights (ECESR), que passou quatro meses na prisão em 2016: “Somos assediados pela polícia, a maioria de nós está proibida de sair do país, temos julgamentos suspensos por receber fundos estrangeiros ou por ‘atentar contra a segurança do Estado’, corremos o risco de passar décadas na prisão, mas continuamos! E continuaremos até a morte, se for preciso!”. A proibição de receber financiamento externo, que as autoridades justificam pela necessidade de lutar contra a “mão estrangeira”, é uma verdadeira máquina de destruir organizações militantes. E também afeta muitos espaços culturais. Uma vez que o Ministério da Cultura não oferece nenhum tipo de subsídio, essas estruturas passaram, há anos, a funcionar graças à ajuda ocidental. Agora precisam encontrar outras formas de financiamento, ou fechar as portas. Em maio de 2017, foi promulgada uma nova lei sobre as ONGs, que deve eliminar as últimas que ainda estão em atividade: além da proibição de receber fundos estrangeiros, todas terão de apresentar um pedido de renovação do registro a uma comissão formada por militares.
Esraa Abdel Fattah, conhecida na época da revolução como “The Facebook Girl”, exibe o mesmo desencanto: “Eu vivi os dezoito dias de 2011 [de 25 de janeiro a 11 de fevereiro, dia da renúncia de Mubarak] como uma magnífica utopia. Mas fomos idiotas. Idiotas em acreditar nas promessas de democracia de Morsi, depois de Sissi. E hoje a situação é pior do que era com Mubarak. Às vezes eu acho que não há esperança, que Sissi ficará para sempre. Mas, se eu parar de militar, me sentirei traindo todos os que estão mortos ou na prisão”.
Apesar de sua aparente onipotência – com a mídia sob controle e uma oposição aniquilada –, o regime encarnado por Sissi parece ter um medo profundo do povo. “Como que pressionado pelo medo obsessivo de uma ‘nova Tahrir’, o regime faz de tudo para conter eventuais impulsos da sociedade”, analisa Karima H., cientista político francês residente de longa data no Cairo, que prefere ficar anônimo, “pois, nos dias de hoje, é melhor ter cuidado”. Qualquer manifestação ou reunião um pouco maior é estritamente proibida. Sob o pretexto do “perigo terrorista”, foram construídas paredes de concreto curvas de 4 metros de altura em torno de cada ministério, bem como do Banco Central, e soldados armados protegem suas entradas. Toda sexta-feira, dia de descanso em que normalmente acontecem as grandes manifestações, policiais de capacete e bota posicionam-se nas sete artérias que levam à Praça Tahrir, enquanto caminhões antimotim se organizam ao seu redor, prontos para intervir. Nos últimos dois anos, ocorreram apenas duas manifestações, em outras partes da cidade: uma contra a transferência para a Arábia Saudita de duas pequenas ilhas desabitadas do Mar Vermelho, Tiran e Sanafir, em abril de 2016;9 e outra contra a decisão de Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel, no início de dezembro de 2017 – decisão criticada por todos os egípcios, ainda muito sensíveis à Questão Palestina. No final da manifestação, alguns gritaram: “Pão! Liberdade! Abaixo o regime!”. Os instigadores foram imediatamente jogados na prisão. No início de fevereiro, dezessete pessoas foram condenadas à prisão perpétua por terem se manifestado, em 2014, contra a candidatura de Sissi à presidência.
Muitos tabus foram quebrados
Em locais públicos, é possível discutir política com os amigos, como faz Miran F. Para esta reportagem, muitas entrevistas foram realizadas sem nenhum problema. Mas há um limite que não pode ser cruzado: abordar estranhos e levá-los a criticar o regime. Conversamos com Mahmoud S. perto de sua casa, em Ain Shams, um dos tantos bairros arrasados pela miséria na tentacular Cairo de 20 milhões de habitantes, a mais de uma hora de táxi da Praça Tahrir. “Não consigo deixar de falar, de discutir nos cafés do meu bairro”, explica o desempregado de 30 anos, que esteve nas manifestações de 2011. “A situação é verdadeiramente terrível. Todo mundo está morrendo de fome, não há liberdade. Mas, há três dias, uns amigos me disseram que policiais à paisana vieram fazer perguntas sobre mim. Isso aconteceu com um amigo meu, e ele está preso. É um aviso, não falo mais com ninguém.”
Manter a população em liberdade vigiada com avisos desse tipo é a tática para conter qualquer indício de rebelião. Conseguimos conversar livremente, mas muitos dos entrevistados disseram: “Não escreva isso, senão eu vou preso!”. No meio universitário, o aviso foi a morte, em condições obscuras, em janeiro de 2016, do pesquisador italiano Giulio Regeni, após seu rapto em plena rua. Segundo a Reuters, o jovem teria sido detido por policiais à paisana e transferido para uma delegacia da capital, antes de desaparecer e ser encontrado morto, com o corpo torturado e mutilado.10 As autoridades egípcias apresentaram diversas vias de investigação, inclusive a de sequestro malsucedido e a de crime sexual, que não convenceram ninguém.11 “Se foi um erro ou um crime encomendado, o fato é que todos estamos muito cautelosos”, confessa um pesquisador francês, obrigado a realizar “clandestinamente” suas pesquisas junto à população.
Apesar de seu profundo desânimo diante de uma situação de opressão que consideram por unanimidade “pior do que era com Mubarak”, todos os veteranos da “revolução de janeiro” admitem, contudo, que ela “deixou marcas positivas indeléveis” na sociedade.
“As pessoas se sentem menos submetidas”
Para Ghada Abdel Aal, de 38 anos, que em 2008 publicou o famoso livro A ronda dos pretendentes,12 “a revolução permitiu quebrar muitos tabus no debate público e nas conversas nas redes sociais. Hoje, podemos falar de relações sexuais antes do casamento, de homossexualidade, de agressão sexual, e questionar alguns princípios religiosos, até a própria crença em Deus. O governo, que permanece muito conservador nessas questões, continua punindo. Mas, na sociedade, o debate existe”. Há três anos, ela mesma se permitiu uma ação que tornou pública em sua página do Facebook, com 180 mil seguidores: tirou o hijab que era forçada a usar desde a infância, “por mero código social”.
Segundo Georges Seif, médico voluntário na Praça Tahrir em 2011, “as pessoas se sentem menos submetidas ao olhar alheio. Mesmo o bawab, uma espécie de porteiro-espião que aterroriza todos os edifícios, perdeu um pouco de seu poder”. Antes de 2011, acrescenta Sarah Mohamed, militante da primeira hora, “quando as pessoas viam uma mulher fumando em um café, automaticamente a consideravam uma vagabunda. Hoje já não é assim”. Na rua, ou em uma repartição pública, pessoas vítimas da arbitrariedade de um funcionário ou de um policial hoje se atrevem a dizer “não” e exigir que seus direitos sejam respeitados. “Antes, isso era impensável!”
Para além da política e das discussões sobre o bloqueio da eleição presidencial, os egípcios estão empolgados com um assunto muito mais mobilizador: após 28 anos fora da competição, o Egito se classificou para a Copa do Mundo de Futebol, que acontecerá em junho, na Rússia. Se o regime sabe que isso desviará a atenção da população durante algumas semanas, ele também não ignora que uma classificação para a segunda fase ou, ao contrário, uma derrota humilhante bastariam para encher a Praça Tahrir novamente. Com tudo que isso implica em termos de possíveis transbordamentos e protestos de caráter político.
*Pierre Daum é jornalista.
1 Ler Alain Gresh, “A revolução egípcia à sombra dos militares”, Le Monde Diplomatique Brasil, ago. 2013.
2 Após vários julgamentos, Mubarak foi libertado em março de 2017. Morsi, que chegou a ser ameaçado com a pena capital, cumpre sentença de 45 anos de prisão.
3 “Égypte: les voix critiques réduites au silence” [Egito: vozes críticas reduzidas ao silêncio], Anistia Internacional, Paris, 21 out. 2017.
4 Em 31 de outubro de 2015, a explosão de um avião russo no Sinai, pouco depois de decolar da cidade balneária de Sharm el Sheikh, fez 224 vítimas. Primeiro de uma longa série, o atentado foi reivindicado por um grupo islâmico afiliado à Organização do Estado Islâmico.
5 Ler Aziz El Massassi, “La presse égyptienne mise au pas” [Imprensa egípcia sob controle], Le Monde Diplomatique, nov. 2015.
6 Ambos em francês pela Actes Sud, Arles, respectivamente 2009 e 2012. Sem tradução para o português.
7 Ver o filme de Pauline Beugnies Rester vivants [Continuar vivendo] (2017, 110 min), documentário que faz o retrato de quatro manifestantes da Praça Tahrir, com percursos muito diferentes.
8 Em francês pela Actes Sud, 2017. Sem versão em português.
9 “Le pouvoir égyptien dans l’imbroglio de l’affaire des îles Tiran et Sanafir” [Governo egípcio no imbróglio do caso das ilhas Tiran e Sanafir], OrientXXI.info, 25 jan. 2017 (tradução de um artigo em árabe do Mada Masr, Cairo, 17 jan. 2017).
10 “Exclusive: Egyptian police detained Italian student before his murder” [Exclusivo: polícia egípcia deteve estudante italiano antes de ele ser assassinado], Reuters, 21 abr. 2016.
11 Hélène Sallon e Philippe Ridet, “L’Italie doute de la version égyptienne de la mort de l’étudiant Giulio Regeni” [Itália duvida da versão egípcia da morte do estudante Giulio Regeni], Le Monde, 26 mar. 2016.
12 La ronde des prétendants, Éditions de l’Aube, Avignon, 2013. Sem tradução para o português.
<BOX>
Uma vida muito cara
Seja um vendedor de rua em um bairro informal do Cairo,1 um funcionário em uma repartição pública ou um escritor famoso em um belo apartamento em Wust el-Balad (nome árabe do centro da cidade, em torno da Praça Tahrir), em resposta à pergunta “O que mudou depois de 2011?”, todos os nossos interlocutores exclamam imediatamente: “A vida está muito cara, está terrível!”. Essa alta dos preços começou a ser sentida em 2014, logo após as eleições presidenciais, quando o governo do marechal Abdel Fattah al-Sissi iniciou “reformas estruturais” impostas pelo FMI, em troca de uma ajuda anual de US$ 12 bilhões a US$ 15 bilhões. “Trata-se de passar gradualmente de um sistema de subvenção generalizado dos bens de consumo para uma ajuda financeira específica voltada às pessoas com rendimentos muito baixos”, explica Marie Vannetzel, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), atualmente no Cairo para estudar o tema.
No antigo sistema, produtos essenciais, como pão, açúcar, óleo, feijão etc., além de gasolina, gás e eletricidade, eram fortemente subsidiados. Antes da reforma, por exemplo, o pãozinho redondo e oco, item fundamental da dieta egípcia, custava 5 libras (R$ 0,90) em uma padaria subsidiada, contra 36 libras no mercado livre. Todos tinham direito a ele, e em quantidade ilimitada. Bastava se dispor a enfrentar as filas às vezes intermináveis das padarias. Para outros produtos alimentícios, era necessário ter um carnê, no qual o vendedor anotava a compra, limitada a uma cota mensal. Esses carnês, teoricamente atribuídos por critérios sociais, eram na verdade detidos por 85% da população. Hoje, o número de pães é limitado a vinte por família por dia. Esses vinte custam 1 libra egípcia (R$ 0,18). Mas raramente eles são suficientes para as famílias, frequentemente grandes. Ainda mais quando, em tempos de pobreza crescente, o pão torna-se o alimento básico. Então ele precisa ser comprado a um preço alto: 20 libras (R$ 3,65) a cada vinte pães. Para os outros alimentos básicos, um cartão com chip substituiu o carnê, recebendo uma provisão mensal de 200 libras (R$ 36,50) para uma família de quatro pessoas. Embora o número de titulares de cartões seja aproximadamente o mesmo de detentores do antigo carnê, o preço dos produtos subsidiados aumentou muito. Entre 2014 e 2017, “o quilo de açúcar passou de 4,5 para 10 libras [R$ 0,82 para R$ 1,83]; o litro de óleo, de 6,5 para 14 libras [R$ 1,19 para R$ 2,56] etc.”, detalha Marie Vannetzel – isso em um país onde um médico de um hospital ganha 1.300 libras por mês (R$ 238); um diretor da administração pública, 4.500 libras (R$ 822); e um trabalhador é considerado “bem pago” quando recebe 1.200 libras (R$ 219). Para as pessoas mais pobres – 9 milhões, de acordo com os critérios em vigor –, concede-se um benefício mensal extra de cerca de 700 libras (R$ 128) por família.
O governo também reduziu bruscamente o subsídio da energia, que beneficiava todos os egípcios. Em três anos, o preço da gasolina e do gás triplicou, e o da eletricidade ficou quatro ou cinco vezes mais caro. Não é de admirar, então, que a taxa da população abaixo da linha de pobreza nacional tenha aumentado, de acordo com o Banco Mundial, de 25% em 2010 para quase 28% em 2015 – hoje provavelmente já ultrapassou a marca de 30%. Ainda mais porque, com a queda brutal da libra em novembro de 2016, todos os preços aumentaram, enquanto os salários evoluíram muito pouco.
Esse sofrimento econômico sentido pelos egípcios, em todas as classes sociais, provocou, principalmente no interior, alguns movimentos sociais rapidamente reprimidos.2 Muitos ainda acreditam que, “quando chegou ao poder, Sissi encontrou os cofres do Estado em uma situação terrível” e que ele “faz o que pode”. O Exército, já presente em muitos setores (turismo, construção, indústria) e que, desde a queda de Hosni Mubarak, tem se inerido maciçamente em todos os setores da economia, sob o pretexto de que “sem [ele] nada funciona”, parece querer servir de amortecedor, ao mesmo tempo que cultiva sua imagem de instituição próxima do povo. “Em uma manhã qualquer, podemos ver caminhões do Exército chegando a um bairro pobre cheios de carne para ser vendida a um preço muito inferior ao do mercado”, conta Vannetzel. Nesses mesmos bairros, mães de família obrigadas a alimentar seus dez filhos e netos, todos os dias, com “apenas pão e batata”, dizem com a voz embargada: “Se isso continuar, as pessoas vão para a rua! O Exército pode atirar na gente, não vamos ligar!”. Como explica o cientista político Karima H., o presidente Sissi “parece determinado a realizar as reformas que seus predecessores Sadat e Mubarak tentaram e foram obrigados a desistir por causa da ira popular”. Há risco de grandes manifestações, comparáveis às que foram realizadas em 1977, sob o governo de Anwar el-Sadat? O acadêmico não acredita nisso. “Motins esporádicos, talvez, mas não mais que isso.” Em março de 2017, os egípcios protestaram contra o aumento do preço do pão, mas o movimento não chegou à esfera política. Entre uma mídia submissa, uma oposição destruída e um contexto regional usado como elemento de contraste – guerras civis na Líbia, Síria e Iraque –, o regime parece manter o povo sob controle. (P.D.)
1 Megalópole caótica de 20 milhões de habitantes, o Cairo é formado por uma miríade de bairros, a maioria deles construída sem a intervenção das autoridades públicas. Mesmo quando é de alvenaria, a habitação nesses “bairros informais” é quase sempre muito precária.
2 Ler Mustafa Bassiouni, “Nada detém os operários egípcios”, Le Monde Diplomatique Brasil, ago. 2014.