Precariedade e salário estudantil
Como remediar a miséria que atinge os estudantes? Na França, após a Segunda Guerra Mundial, as forças sindicais e associações promoveram o surgimento de uma ideia hoje em dia esquecida: assalariar os “jovens trabalhadores intelectuais”
Em 8 de novembro de 2019, Anas, estudante de Ciência Política em Lyon, imolou-se com fogo dentro dos muros do Centro Regional de Obras Universitárias e Escolares (Crous). Depois, entrou em coma. Em consonância com a comunicação governamental, a cobertura de seu gesto feita pela mídia e as manifestações que a ela se seguiram se concentraram muito na queda de um quadro do Ministério do Ensino Superior, especialmente na “precariedade estudantil”, fenômeno geralmente ilustrado pelo baixo número de bolsas, na parcela daqueles que trabalham em paralelo com os estudos (46% em 2016) ou na taxa de pobreza dessa população (21,9% da quantidade de alunos em 2015). As constatações e as soluções políticas formuladas por Anas na carta que deixou e por seu sindicato, o Solidaires Étudiant-e-s, foram menos discutidas.
Dessa forma, pouco se falou sobre sua reivindicação de um salário estudantil. A medida, associada à gratuidade do ensino superior, consiste em conceder a cada aluno uma remuneração igual a uma referência salarial, por exemplo, o salário mínimo interprofissional de crescimento (Smic, cerca de 1.200 euros líquidos por mês). Ela reflete um projeto político mais ambicioso, que vai além da luta contra a precariedade, pois envolve trabalhar por uma mudança radical na sociedade, travando uma batalha cultural em torno da definição do trabalho.
Na França, os primeiros projetos a favor do salário estudantil foram expostos no âmbito da Resistência, a partir de 1943, por sindicatos de empregados, por associações de jovens e pelos dois sindicatos de estudantes existentes na época, a União Nacional dos Estudantes da França (Unef) e a União das Grandes Escolas (UGE). A ideia foi retomada em 1945 por um punhado de membros da Unef. Dadas as dificuldades materiais (comida racionada, moradias destruídas pela guerra), a imagem do “estudante pobre” foi então mobilizada, enquanto os apelos à caridade se multiplicavam. Le Figaro, em sua edição de 8 de abril de 1948, pedia a seus leitores, por exemplo, que “colocasse na mesa da família um talher a mais, uma ou duas vezes por semana, para um aluno em dificuldade”.1

Adotada no congresso da Unef em 1946, a Carta de Grenoble mobilizou um registro completamente diferente. Evocando a necessidade de uma “revolução econômica e social a serviço do homem”, ela consagrava uma fórmula enunciada em seu primeiro artigo: “O estudante é um jovem trabalhador intelectual” – em particular por causa de sua contribuição para o “esforço unânime de reconstrução”. Com uma votação apertada, ela serviu de referência quando a Unef impediu a duplicação das taxas de matrícula nas universidades, em 1947, ou quando obteve a extensão do regime de Previdência Social para os estudantes, em 1948.
A carta de Grenoble teve seu momento de glória em maio de 1951. Ela foi recebida em sessão plenária na Assembleia Nacional por deputados comunistas e democrata-cristãos que tinham decidido adotar a ideia de salário defendida pela Unef. Em sua exposição, o relator do projeto, o democrata-cristão Raymond Cayol, defendeu a medida em nome “do valor pessoal do estudante, de sua qualidade atual [e] do trabalho que ele realiza”. Além de uma integração das escolas particulares à universidade pública e uma reforma da arquitetura geral dos treinamentos, inspirada no plano Langevin-Wallon, de 1947, a proposta parlamentar previa o pagamento a cada aluno de uma remuneração alinhada com o salário-base usado para calcular os benefícios familiares.
A proposta foi finalmente adiada sine die. Na verdade, ela despertou a hostilidade de influentes ministros socialistas. Eles concentraram suas críticas no órgão responsável pela distribuição da remuneração e pela implementação das reformas educacionais às quais ela estava vinculada. “Não parece que todos os ministérios envolvidos […] tenham sido chamados ao seu conselho de administração […]; sua composição paritária corre o risco de colocar os representantes do Estado em minoria, quando se trata de administrar somas de tão grande importância que é difícil quantificá-las”, contestou o ministro da Educação, Pierre-Olivier Lapie.
Desde esse fracasso, a reivindicação desapareceu um pouco do cenário político francês. Com a teoria do capital humano, que ganhou influência nos últimos vinte anos, os estudantes são vistos mais como investidores: eles tentam maximizar sua renda futura e, portanto, parece então impensável remunerá-los. No entanto, as ideias da Carta de Grenoble continuaram a se disseminar, inclusive fora da França, onde organizações vez por outra retomaram esse projeto. Foi recentemente o caso em Quebec, por ocasião de uma greve de estagiários, lançada entre 2017 e 2019 por Comitês Unitários sobre Trabalho Estudantil (Cute).
O movimento começou alguns anos após a contestação da “Primavera do Bordo”, que (temporariamente) fez fracassar um projeto para aumentar de maneira drástica as taxas de matrícula.2 Na linha de visão dos Cute: esse trabalho muitas vezes imposto e exaustivo representado pelos estágios, que duram vários meses e são realizados fora do local de estudos. Prova, de acordo com ativistas, de que já existe trabalho estudantil remunerado e reconhecido, mas apenas nos treinamentos em que as mulheres estão em minoria (engenharia, administração, TI, medicina): nos setores em que elas são majoritárias (assistência social, educação, cuidados de enfermagem), prevalecem os estágios mal remunerados ou não pagos.3 Essa estratégia levou dezenas de milhares de pessoas a exigir um salário por seus estágios e estudos, e a participar de greves, que atingiram o pico no inverno de 2018. Se é muito cedo para fazer um balanço, o movimento já pode se orgulhar de ter obtido, na primavera de 2019, bolsas de estágio de 600 a 3 mil euros para cursos de treinamento feminizados que até então não eram remunerados.
Menos estágios para filhos de operários
Na França, uma greve de estagiários realizada em nome do salário estudantil poderia ser baseada em um contexto semelhante. O número de integrantes do ensino superior tornou-se muito significativo (quase 2,7 milhões de matrículas em 2018, 80% dos quais em instituições públicas), com maior participação feminina e oriundos em maior quantidade das classes populares.4 O número de estágios, por sua vez, também aumentou acentuadamente nas universidades públicas, sob pressão da profissionalização dos estudos:5 em 2018, 40% dos matriculados no terceiro ano do bacharelado e 64% dos alunos do segundo ano do mestrado concluíram um.
Como em Quebec, são fortes as desigualdades entre os setores. Os estagiários vindos de escolas de negócios (que recebem apenas 12,8% de filhos de trabalhadores e empregados, em comparação com 28,4% para todo o ensino médio) ou de engenharia (em que as mulheres só representam 30,3% dos alunos) recebem frequentemente remunerações entre 600 e mil euros.6 A situação é muito diferente nos cursos de formação universitária generalistas, em que as mulheres (56,2% dos alunos) e as classes populares (29,7%) estão mais presentes e em que os estágios com duração superior a dois meses – portanto, pagos – se mostram menos frequentes. Apenas 22% dos estagiários matriculados em mestrado receberam um bônus de mais de 600 euros por mês (comparado a mais de 50% nas escolas de engenharia), chegando a 4% no bacharelado. Uma pesquisa mostra, além disso, diferenças disciplinares no mestrado, com ciências exatas mais masculinas, menos populares e mais favorecidas durante os estágios que os outros treinamentos generalistas (letras, ciências humanas e sociais, economia, direito).7
No que diz respeito a estágios como outros períodos de estudos remunerados (aprendizado, educação continuada, estudos em saúde, doutorado, treinamento em prestigiadas escolas estaduais etc.), a perspectiva de um salário estudantil torna possível lutar não somente contra a precariedade, como também contra as desigualdades que a nutrem, no ensino superior e fora dele.
Aurélien Casta é sociólogo e economista, é pesquisador associado no Clerse (Universidade de Lille) e no Idhes (Universidade de Paris Ouest Nanterre) e autor de Un salaire étudiant. Financement et démocratisation des études [Um salário estudantil. Financiamento e democratização dos estudos], La Dispute, Paris, 2017.
1 Citado por Didier Fischer. In: Robi Morder (org.), Naissance d’un syndicalisme étudiant. 1946: La charte de Grenoble [Nascimento de um sindicalismo estudantil. 1946: A carta de Grenoble], Syllepse, Paris, 2006.
2 Ler Pascale Dufour, “Ténacité des étudiants québécois” [A persistência dos estudantes de Quebec], Le Monde Diplomatique, jun. 2012.
3 Cf., por exemplo, Amélie Poirier e Camille Tremblay-Fournier, “La grève des stages est une grève des femmes” [A greve dos estagiários é uma greve de mulheres], Françoise Stereo, n.9, Quebec, 23 maio 2017.
4 “Repères et références statistiques sur les enseignements, la formation et la recherche” [Marcos e referências estatísticas sobre ensinos, treinamento e pesquisa], Ministério da Educação Nacional, Ensino Superior e Pesquisa (Menesr) – Direction de l’évaluation, de la prospective et de la performance (DEPP), Paris, 2019. Todos os dados a seguir são desse documento e de suas edições anuais anteriores.
5 Ler Vanessa Pinto, “Deux jeunesses face à la ‘loi travail’” [Duas juventudes enfrentando a “lei trabalhista”], Le Monde Diplomatique, nov. 2017.
6 Cf., por exemplo, Étienne Gless, “Stages: les formations qui ‘paient’ le mieux” [Estágios: as formações que “pagam” melhor], L’Étudiant, Paris, 8 nov. 2019. Constatação já feita por Jean-François Giret e Sabina Issehnane, “L’effet de la qualité des stages sur l’insertion professionnelle des diplômés de l’enseignement supérieur” [O efeito da qualidade dos estágios na integração profissional dos diplomados do ensino superior], Formation emploi, n.117, Marselha, jan.-mar. 2012.
7 Jean-François Giret e Sabina Issehnane, op. cit.