Precariedade, subemprego e pobreza trabalhadora
Num contexto de desregulamentação do mercado de trabalho, os assalariados em tempo parcial, mais numerosos que os desempregados, são os protagonistas do problema do subemprego (ou emprego atípico) e da pobreza, que atinge sobretudo as mulheres.Margaret Maruani
Nos Estados Unidos, o número de desempregados aumentou cerca de 5% entre janeiro e abril de 2003. Na Espanha, o desemprego atinge 11,9% da população economicamente ativa – o recorde europeu. Na Alemanha, chega a 10,7% e, na França, a 9,3%. E mais, essas cifras minimizam a realidade. Paralelamente, a imposição do trabalho em tempo parcial, os horários atípicos estão cada vez mais presentes e, atualmente, cerca de um assalariado em cada seis recebe uma remuneração inferior ao salário mínimo, na França. Os trabalhadores pobres – trabalhadoras, na maioria das vezes – já não são uma exclusividade norte-americana.
No inventário dos danos colaterais do desemprego, a desestabilização multiforme das condições de emprego (trabalho temporário, contratos por tempo determinado, estágios de todos os tipos), aparece como uma espécie de evidência, conhecida e reconhecida há muito tempo. Em compensação, de modo geral, o subemprego não aparece entre os males do desemprego. Porque se confunde, em parte, com o trabalho em tempo parcial que os estereótipos culturais qualificam sistematicamente de “bom para as mulheres”.
Na verdade, é impressionante ver como o trabalho em tempo parcial continua, com muita freqüência, sendo excluído de qualquer reflexão sobre emprego e desemprego. O assunto é relegado ao capítulo da diversificação do trabalho e, o que é pior, ao título “conciliação entre vida profissional e vida familiar”, mas raramente abordado sob o ângulo da escassez de emprego.
A diversidade do “emprego atípico”
O subemprego não aparece entre os males colaterais do desemprego. Isso porque se confunde, em parte, com o trabalho em tempo parcial, “bom para as mulheres”
No entanto, disfarçado no discurso sobre a redução da jornada de trabalho (RTT, conforme a sigla francesa), o trabalho em tempo parcial constitui o pilar do subemprego. Este encontra-se muitas vezes escondido na expressão “empregos atípicos”, expressão genérica que engloba todos os tipos de emprego que, de uma maneira ou de outra, violam a norma do trabalho relativa ao contrato por tempo indeterminado e em tempo integral. Encontram-se contratos por tempo determinado, o trabalho temporário, os contratos de auxiliares e os estágios diversos – eufemisticamente denominados “formas particulares de emprego” -, assim como o trabalho em tempo parcial que, muitas vezes, corresponde a uma situação em que se trabalha menos do que se gostaria (leia, nesta edição, o artigo, de Margaret Maruani, “Empregos atípicos”). Em forte alta nos últimos 20 anos, os empregos atípicos representam ¼ dos empregos1.
Evidentemente, eles abrangem situações muito heterogêneas: o trabalho temporário, conhecido pela precariedade das condições que oferece, às vezes inclui também assalariados muito qualificados; alguns contratos por tempo determinado (CDD, conforme a sigla francesa), constantemente renovados, podem se revelar mais estáveis que contratos por tempo indeterminado (CDI, também conforme a sigla francesa) que levem à demissão.
Tempo parcial e subemprego
Em alta nos últimos 20 anos, o emprego atípico corresponde a 25% do postos, abrange situações heterogêneas e inclui muitos assalariados qualificados
Por isso nem sempre se podem identificar os empregos temporários com a precariedade, mesmo que isto se mostre, de modo geral, justificado. De uma maneira ou de outra, essas diversas formas de emprego não estão somente “fora das normas”. São caracterizadas também por uma instabilidade que as assimila à precariedade e que as aproxima do desemprego. Pois são freqüentemente as mesmas pessoas que oscilam entre contratos por tempo determinado, trabalho temporário, bicos e desemprego. São freqüentemente jovens, pouco qualificados2 e visivelmente em instabilidade permanente.
Mas eles não são os únicos a trabalhar sob o rótulo da instabilidade. Os assalariados e assalariadas em tempo parcial fazem parte também do panorama da desregulamentação do mercado de trabalho. Raramente inscrito no âmbito da instabilidade do emprego, o tempo parcial está, no entanto, no cerne do problema. É aí, entre assalariados e assalariadas que trabalham doze, quinze ou vinte e cinco horas por semana3, que se encontra o maior número de pessoas em subemprego, ou seja, as que trabalham menos do que desejariam. As discussões sobre as 35 horas suprimem totalmente o problema: como enfocam todas as pessoas que aspiram trabalhar menos (que, efetivamente, são inúmeras), esquecem as que querem trabalhar mais e não conseguem. As que têm necessidade de um salário integral, mas somente encontram um emprego de tempo parcial.
Atividade feminina “à francesa”
Assalariados em tempo parcial fazem parte do panorama da desregulamentação do mercado de trabalho na medida em que concentram o subemprego
Os debates sobre essa questão são uma síntese de má fé. Ao identificá-la a um “tempo escolhido”, ao apresentá-la como uma arte de viver que permite a “conciliação entre vida familiar e vida profissional”, apaga-se o problema do subemprego, apaga-se a questão dos baixos salários. E a questão é atribuída às mulheres.
Na França, como em toda a Europa, o trabalho em tempo parcial é apanágio das mulheres. Elas representam mais de 80% das pessoas que o desempenham. Mas, ao contrário de um grande número de vizinhos europeus, só recentemente surgiu na França. Seu desenvolvimento data precisamente do início da década de 80: atualmente, o número de pessoas que trabalha em tempo parcial – e que em 1980 era de cerca de 1 milhão e meio de pessoas – passou para pouco menos de 4 milhões. Ou seja, o trabalho em tempo parcial não constitui, na França, um componente do desenvolvimento da atividade feminina, pois, desde o início da década de 60, as mulheres entraram no mercado de trabalho em tempo integral. Essa constitui uma das características fortes do que se poderia denominar crescimento da atividade feminina “à francesa”. O trabalho em tempo parcial ganhou força há uns 20 anos, devido à crise de emprego e sob o estímulo de políticas de grandes incentivos: ajudas financeiras aos empregadores para a criação de emprego em tempo parcial, abatimentos de cotizações sociais etc.
Pressões de ordem ideológica
Há 20 anos, com a crise do emprego, cresceu a atividade feminina “à francesa”: mais de 80% dos que trabalham em tempo parcial são mulheres
Obviamente, esse fenômeno abrange realidades sociais extremamente diversificadas. Para algumas mulheres, reduzir a jornada de trabalho é uma decisão individual. Para outras, cada vez em maior número, trata-se de uma lógica inteiramente diferente. Na verdade, há 20 anos, o trabalho em tempo parcial desenvolveu-se em alguns setores (comércio, hotelaria, restaurantes, serviços para particulares e para empresas) e em uma categoria profissional particular: mais da metade das pessoas neles empregadas são mulheres. Caixas, vendedoras, faxineiras… a maioria não escolheu ocupar um posto em tempo parcial. Prefeririam ter um emprego de algumas horas a ficarem desempregadas. Muitas delas trabalham por um salário bem inferior ao salário mínimo mensal e com horários fracionados e alternados.
Está na hora, então, de acabar com essa idéia de “escolha”. Tempo escolhido, tempo submetido: apesar das aparências, a questão não é pertinente. O que significa “escolher”, quando as pressões são tão fortes que não existem outras soluções? Quando os empregos propostos jamais são de tempo integral? Quando as obrigações da vida familiar se tornam extremamente complexas? As pressões não são apenas de ordem econômica e doméstica. São também – e intensamente – ideológicas: o trabalho em tempo parcial foi construído com todas as peças como a forma de emprego ideal para as mulheres.
Expansão dos baixos salários
Portanto, não se trata de saber se o trabalho em tempo parcial foi um pouco, muito, apaixonadamente ou de maneira alguma escolhido, mas de considerar suas conseqüências. Ao longo dos anos, tornou-se o símbolo da divisão sexual do mercado de trabalho. E segue a mesma dinâmica, tornou-se o motor da pobreza laboriosa. Na verdade, quem fala de trabalho em tempo parcial, fala, é evidente, de salários parciais. No entanto, durante muito tempo, o assunto continuou tabu na França. Como se os working poor fossem uma exclusividade norte-americana.
Na França, a baixa remuneração está em expansão: 3,4 milhões de pessoas trabalham por salários inferiores ao mínimo. Entre elas, 80% são mulheres.
Foi preciso esperar o final da década de 90 para ter dados precisos e para que emergisse, enfim, a questão dos baixos salários e da pobreza laboriosa. As pesquisas de Pierre Concialdi e Sophie Ponthieux4 o demonstram: na França, desde então, 3 milhões e 400 mil pessoas trabalham por um salário inferior ao SMIC (salário mínimo interprofissional de crescimento) mensal. Entre elas, 80% são mulheres. Desde o início da década de 80, os baixos salários (menos de 838 euros por mês, ou seja, cerca de 2 940 reais) estão em plena expansão. Correspondem a 11% dos assalariados e assalariadas em 1983 e a 17% em 2001. O crescimento dos salários baixíssimos (menos de 629 euros, por volta de 2 200 reais), foi ainda mais rápido: de 5% dos(as) assalariados(as) em 1983, passaram para 9% em 2001.
Estatística oficial maquia o assalariado pobre
Esse rápido aumento do número de salários inferiores ao salário mínimo legal está estreitamente ligado à multiplicação dos empregos em tempo parcial, que atingem 80% daqueles que têm baixos salários. Paralelamente ao crescimento desse tipo de emprego, observa-se, então, o delineamento de um processo de pauperização: o desenvolvimento de uma margem de assalariados(as) pobres, ou seja, de pessoas que não estão desempregadas, nem são “excluídas”, nem “recebem assistência”, mas que trabalham sem conseguir ganhar sua subsistência.
Os que empregados em tempo parcial são 80% dos que têm baixos salários – eles não estão desempregados, mas não conseguem ganhar sua subsistência.
Essas mulheres, em sua maioria, são apagadas da contabilidade oficial dos working poor franceses. Por um lado, o Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos (Insee) mantém, em sua definição de trabalhadores pobres, o limiar de 50% da renda mediana (ou seja, 534 euros, aproximadamente 1 870 reais, em 1996), e avalia seu número em apenas 1 milhão e 300 mil5. Por outro lado, ao optar por se basear em uma definição familiar (e não individual) de rendas, as estatísticas oficiais consideram 60% dos homens entre eles.
Desemprego feminino demais para chocar?
Esse cálculo exclui uma grande parte dos baixos salários determinados pelo subemprego. Subestima a pauperização de uma parte do assalariado – e principalmente do assalariado feminino. No entanto, é preciso se render às evidências: em nosso país, os(as) assalariados(as) pobres são mais numerosos do que os desempregados. Foi preciso esperar muito tempo para que esses dados se tornassem públicos. Sem dúvida, será preciso esperar ainda mais tempo para que apareçam no debate social.
Se não é o caso, aliás, longe disso, de um desconhecimento dos fatos e das cifras, o esquecimento do sexo do emprego, que caracteriza a maioria das análises econômicas, é de deixar qualquer um desconcertado. Essa estranha falha de memória leva às perguntas: a pobreza dos trabalhadores seria extremamente feminina para ser chocante? O subemprego seria menos grave quando afeta o segundo sexo?
Tudo em nome do desemprego
É em nome do desemprego que se precariza o emprego e que se lançam algumas categorias na inatividade obrigatória, no subemprego e baixos salários
A França do início do século XXI conta com 3 milhões e 400 mil pessoas que ganham menos que o salário mínimo. Mas, calma: não são trabalhadores pobres. A maioria é constituída por mulheres que procuram emprego para ter um salário parcial – um salário suplementar… Provavelmente, é aí que é preciso buscar a origem desse discernimento suspeito: uma tolerância social vergonhosa.
Revelar os números do desemprego não é algo evidente mas, pelo menos, sabemos disso. Em compensação, o subemprego e a pobreza dos trabalhadores continuam sendo a face escondida da crise de emprego. Pois o desemprego não é apenas a falta de emprego para um número considerável de pessoas. É também um meio de pressão sobre as condições de trabalho e de emprego de todos aqueles que trabalham. É em nome do desemprego que se precariza o emprego e que se lançam algumas categorias de assalariados(as) na inatividade obrigatória ou no subemprego, que se redefinem os ritmos de trabalho e que se impõe a aceitação de salários inferiores ao mínimo legal.
(Trad.: Wanda Caldeira Brant)
1 – De acordo com as cifras apresentadas por Benoît Ferrandon, em “Population et emploi”, Les Cahiers Français n° 304, Paris, setembro-outubro de 2001.
2 – Segundo Olivier Chardon, “em março de 2001, 17% dos assalariados não-qualificados encontravam-se em CDD (7%), em trabalhos temporários (6%), em estágios (4%)” enquanto, em 1982, eram apenas 4%. Ler “Les transformations de l’emploi non qualifié depuis vingt ans”, INSEE Première n° 796, Paris, julho de 2001.
3 – Com o tempo, a definição do trabalho em tempo parcial evoluiu muito. Na França, durante muitos anos considerou-se que o trabalho em tempo parcial começava a partir de uma jornada de trabalho inferior a, pelo menos, um quinto da jornada legal ou convencional do trabalho. Desde a lei de janeiro de 2000 (a chamada lei “Aubry 2”), considera-se assalariado em tempo parcial aquele cuja jornada de trabalho é inferior à duração legal ou convencional: portanto, desde então, diz respeito a todos aqueles que não trabalham em tempo integral.
4 – Ler, de Pierre Concialdi et Sophie Ponthieux, “Les bas salaires en France: quels changements depuis 15 ans?”, ed. Dares, Premières synthèses n° 48.1, Paris, 1997, e “L?emploi à bas salaire: les femmes d?abord”, Travail, Genre et Sociétés n° 1, Paris, 1999; ler também, de Pierre Concialdi, “Bas salaires et ?travailleurs pauvres?”, Les cahiers français n° 304, Paris, setembro-outubro de 2001.
5 – Cifra de 1996, citada por C