Prefácio do livro com discursos do Malcolm X
Leia com exclusividade o prefácio do livro “Há uma revolução mundial em andamento: discursos de Malcolm X”, do Lavra Palavra Editorial, escrito pelo professor doutor Silvio Almeida.
Em geral, o que conhecemos sobre Malcolm X é resultado da mitificação de sua figura. De fato, a vida de Malcolm é uma vida extraordinária, que o inscreveu na história como uma das personalidades mais importantes e influentes do século XX.
Exatamente por conta desta “mitificação” é que Malcolm serviu de inspiração para lutas políticas no mundo todo, muito além da fronteira dos Estados Unidos da América. Seja em África, seja na Europa e mesmo no Brasil, Malcolm X tornou-se uma inspiração política e estética, um símbolo, uma ideia fundamental na luta internacional contra o racismo e o colonialismo.
Paradoxalmente, à medida que Malcolm X tornava-se uma marca indelével no imaginário político, a força imensa do Malcolm X “histórico” se esvanecia. Ter acesso ao pensamento de Malcolm X exigia recorrer aos relatos de sua vida o que, fundamentalmente, era feito por meio de biografias. Destaco as duas que considero as mais importantes: a clássica “Autobiografia” (1965) narrada a Alex Haley, e “Malcolm X: uma vida de reinvenções”, (2011) biografia escrita por Manning Marable e ganhadora do prêmio Pulitzer.
Com a publicação do livro “Há uma revolução mundial em andamento” – coletânea de artigos com discursos de Malcolm X proferidos entre 1964-1965 – o Malcolm X “histórico” se revela em toda a sua complexidade. É um Malcolm X que pode ser incômodo para aqueles que pretendem reduzi-lo a horizontes políticos e intelectuais estreitos.
Começo comentando o internacionalismo e o anticapitalismo presente em seus discursos. Malcolm estava atento ao fato de que a luta pela emancipação do povo negro na América passava pela libertação de outros povos oprimidos. E a opressão de que Malcolm falava não se explicava apenas pela “supremacia branca”; a supremacia branca era apenas a forma assumida pela opressão em um mundo estruturado pelas relações capitalistas. Sim, Malcolm captou perfeitamente a relação intrínseca entre capitalismo e racismo, a ponto de afirmar que “não se pode ter capitalismo sem racismo”. E completa: “a maioria dos países que eram potências coloniais eram países capitalistas e o último baluarte do capitalismo hoje é a América. É impossível para uma pessoa branca acreditar no capitalismo e não acreditar no racismo”.
Mas qual seria para Malcolm X o sistema político e econômico em que o racismo pudesse ser de fato ultrapassado? Atento ao contexto internacional e às revoluções de libertação nacional de inspiração socialista como ocorridas em China e em Cuba, Malcolm diz que “todos os países que estão emergindo hoje, quebrando as correntes do colonialismo, estão se voltando para o socialismo” e que uma pessoa em que não se nota o racismo na forma de ver o mundo “normalmente se trata de um socialista ou de alguém que tem o socialismo como filosofia política”.
O segundo ponto em que a leitura dos discursos pode desestabilizar as visões que se tem sobre Malcolm X é no que se refere à relação com pessoas brancas. Ao menos em 1964 e 1965, seus dois últimos anos de vida. Malcolm declara-se abertamente um ativista pelos direitos humanos, mas não no sentido superficial de luta por novas leis. Malcolm X é um revolucionário, e aqui se encontra uma das maiores sutilezas de seu pensamento e de sua estratégia. Ele usa o termo “direitos humanos” justamente para demonstrar a limitação dos chamados “direitos civis”. A luta antirracista (que também é anticapitalista) não é uma luta por “mais direitos” ou pela cidadania. A experiência americana ainda demonstra isso. Era preciso colocar a questão nos seus termos corretos e, que no caso, são os termos da universalidade do antirracismo, o que leva a conversa dos direitos civis para os direitos humanos, movimento que também faria o grande Martin Luther King Jr. Além do mais, falar em direitos humanos permitia, no entendimento de Malcolm X, a denúncia dos Estados Unidos junto aos organismos internacionais, algo que poderia servir ao menos como uma forma de constrangimento e de exposição da falaciosa democracia americana.
“Direitos humanos” aqui comportam a ideia de uma nova humanidade, o que só é possível com um novo mundo, novas relações políticas e econômicas. Trata-se de pensar “humanidade” como algo absolutamente novo e que, portanto, vai se revelar em novas potências emancipatórias para todos os seres humanos, brancos e não-brancos. É isso a que se pode chamar “direito” nas falas de Malcolm X. Com isso, ele se aproxima daqueles que veem na superação da raça como a única possibilidade de uma humanidade emancipada. Nesse sentido, quando perguntado se acreditava na possibilidade de “Estado Negro”, responde: “Não. Eu acredito em uma sociedade na qual as pessoas possam viver como seres humanos com base na igualdade”.
Isso aponta para o fato de que Malcolm vê o branco como um sintoma de um mundo desgraçadamente organizado pelo racismo. Não se trata de um problema de “essência”, mas um problema político que só pode ser resolvido com luta política. Por isso, em discurso proferido no simpósio do Fórum Sindical Militante do Partido Socialista dos Trabalhadores americanos diz que “trabalharemos com qualquer pessoa, com qualquer grupo, não importa qual é a cor deles, desde que eles estejam realmente interessados em tomar as medidas necessárias para pôr um fim às injustiças que afligem os negros neste país. Não importa qual seja sua cor, não importa qual seja sua filosofia política, econômica ou social: desde que suas metas e objetivos estejam na direção da destruição do sistema abutre que tem sugado o sangue do povo negro neste país, eles estarão conosco”.
Mas para Malcolm X se os brancos de fato querem ajudar, ser “aliados”, que, primeiro, não queiram liderar o movimento negro, e segundo, que não sirvam de “algodão entre cristais”, ou seja, que não fiquem pedindo “moderação” aos negros enquanto estão sendo encarcerados e assassinados. O branco aliado também deve estar pronto para fazer uso da contraviolência na luta antirracista.
Malcolm X sabia que o aumento da violência contra os trabalhadores brancos e principalmente não-brancos era o sinal de que o mundo era uma bomba próxima de explodir. Nos Estados Unidos da América, Europa, na América Latina (ele cita expressamente o Brasil), na África e na Ásia a experiência da opressão colonial tinha um potencial, revolucionário, houvesse o devido trabalho político de construir as bases para uma solidariedade internacional capaz de se converter em luta anticapitalista. Malcolm X teve seu trabalho interrompido quando de seu assassinato em fevereiro de 1965, mas não sem antes nos indicar quais os caminhos a seguir.
Silvio Almeida é professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP) e presidente do Instituto Luiz Gama.