Primeiros passos de Obama
Os interesses estratégicos americanos permanecem muito difíceis de equacionar para todo e qualquer presidente, sempre obrigado a assumir o papel de líder do império. Contudo, o começo do governo de Barack Obama sugere que ele ainda não se esqueceu do seu passado progressista nos bairros pobres de Chicago
Para enfrentar a herança dos seus predecessores, o novo presidente dos Estados Unidos descartou a maior parte das ideias que eles haviam encampado. Mesmo assim, Barack Obama não agilizou o processo de retirada das tropas americanas do Iraque, e ainda enviou mais soldados para uma guerra sangrenta e sem saída no Afeganistão. No plano interno, a sua política em relação à indústria automobilística, aos bancos e às remunerações dos dirigentes, não chega a romper com o inquebrantável “liberalismo” que nunca faz qualquer concessão à sociedade, a não ser quando precisa repassar-lhe o ônus das perdas das empresas.
Mesmo assim, o presidente Obama é, sem dúvida, o que o sistema americano pode produzir de mais progressista no momento atual. A tal ponto, que as decisões dos dirigentes de Washington, em muitos casos, aparentam ser mais apropriadas do que as dos seus homólogos em Paris, Bruxelas, Moscou, Pequim ou Teerã. Se a determinação da Casa Branca não esmorecer, e se alguns dos lobbies que colocam em xeque o Congresso forem mantidos sob controle, os Estados Unidos disporão em breve de uma legislação apta a proteger o direito dos sindicatos e a abrandar as despesas com saúde dos 46 milhões de americanos desprovidos de qualquer proteção social. O que não é pouco.
Alguns irão comentar que, sendo Obama um democrata, é o mínimo que se pode esperar dele. Mas isso equivaleria a ignorar 40 anos de história. Não se deve esquecer que, desde a eleição do republicano Richard Nixon à Casa Branca, em 1969, os dois presidentes democratas que assumiram o cargo depois dele podem até mesmo ter falado em ruptura, mas apenas para se referir a uma ruptura com a ortodoxia do seu próprio partido, o qual eles consideravam excessivamente progressista. Adotando essa postura, ambos prepararam o terreno para os republicanos que lhes sucederam (Ronald Reagan e George W. Bush).
Foi assim que James Carter inaugurou a farra das desregulamentações, incentivou uma política ultramonetarista e, sob o disfarce de uma atuação em “defesa dos direitos humanos”, promoveu a retomada da Guerra Fria. Já com Bill Clinton, foi pior ainda: assistiu-se ao endurecimento das sanções penais, a generalização da pena de morte, a abolição da ajuda federal para aos pobres, o início de operações de guerra no Afeganistão, no Iraque, no Sudão e no Kosovo, realizadas sem qualquer mandato das Nações Unidas. Portanto, estes são precedentes que devem ser levados em conta quando se trata de avaliar as primeiras realizações de Barack Obama.
O seu discurso no Cairo, em 4 de junho passado, nada acrescentou que seja realmente novo no que diz respeito às questões fundamentais: George W. Bush já havia admitido a ideia de um Estado palestino. Além do mais, desde a administração Carter, todos os inquilinos da Casa Branca andaram reclamando – com o resultado que conhecemos – a suspensão da colonização israelense. Em contrapartida, o tom hoje mudou da água para o vinho. Interessado em “romper o ciclo da suspeita e da discórdia” entre os Estados Unidos e os povos do Oriente Médio, Obama evitou cuidadosamente empregar o adjetivo “terrorista”, tão valorizado pelo seu predecessor. Ao referir-se ao Hamas, o presidente americano admitiu, até mesmo, que essa organização “dispõe de apoio junto a uma parte da sociedade palestina”. Por fim, sugerindo a estes últimos que se inspirem nos combates não violentos dos afro-americanos, ele assimilou implicitamente a colonização israelense à “humilhação da segregação” que os negros dos Estados Unidos vivenciaram no passado.
Entretanto, Obama também acrescentou que “a América não pretende ter o conhecimento do que é melhor para todo mundo”. Este princípio tão sábio seria aplicado sem demora ao Irã. Em seu pronunciamento no Egito, o presidente havia lamentado o golpe de Estado orquestrado contra Mohammad Mossadegh, pelos serviços secretos americanos, em 1953: “Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos exerceram um papel ativo no processo de derrubada de um governo iraniano democraticamente eleito”. Isso já era equivalente a sugerir, portanto, que eles não estariam numa posição ideal para criticar os fraudadores de urnas, sobretudo quando estes últimos não esperavam outra coisa para poder acusar seus concorrentes, que até recentemente eram defensores fervorosos do regime teocrático, de terem se transformado em mercenários do Grande Satã, os Estados Unidos. Contudo, quanto mais a situação iraniana se radicalizar, mais a disposição do presidente dos Estados Unidos a negociar com Teerã o tornará alvo das críticas de uma direita neoconservadora.
Os interesses estratégicos americanos permanecem extraordinariamente difíceis de equacionar para todo e qualquer presidente dos Estados Unidos, pois, queira ou não, este sempre será obrigado a assumir o papel de líder do império. Contudo, os primeiros passos dados por Barack Obama sugerem que ele ainda não se esqueceu por completo do seu passado progressista nos bairros pobres de Chicago.
*Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).