Privatizar um direito humano é a gota d’água
Saneamento básico é ponto fundamental para uma garantia de moradia digna
Em uma madrugada com raios e tempestades, quando estava com meus quatro filhos na minha casa em uma comunidade na região metropolitana de São Paulo, tive de passar a noite em claro segurando uma telha para que a chuva não inundasse o cômodo e não atingisse as crianças. Minha caçula, ainda pequena, se agarrou a mim, assustada. Esse cenário, não muito distante em minha vida, ainda faz parte da realidade de muitas mulheres em situação de pobreza extrema, sobretudo negras, que vivem em habitações precárias, onde os direitos básicos de moradia digna são negados.
De acordo com os últimos dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2022, pessoas pretas ou pardas representavam mais de 70% da faixa de pobres e extremamente pobres. No recorte por gênero, mulheres pretas e pardas somavam 39% no total, em comparação a 13,7% de mulheres brancas. Quando essas mulheres pretas ou pardas são chefes de família, ou seja, são as únicas responsáveis economicamente por seus filhos menores de 14 anos, a concentração de pobreza é de 29,2%. Nesse mesmo estudo, cujos dados voltados às condições de moradia e saneamento básico mais recentes são de 2020, apontam que de um total de 45,2 milhões de pessoas que residiam em moradias com inadequações, como ausência de banheiro de uso exclusivo, 31,3 milhões são pretas ou pardas.
Ter acesso a saneamento básico — que inclui fornecimento de água tratada e coleta de esgoto, por exemplo — é algo que ultrapassa o campo do direito à moradia: é algo que precisa ser encarado por toda a sociedade como um direito humano. A negação do direito à água, que atinge pessoas negras, que são a maioria no grupo presente na linha extrema da pobreza, é uma forma de racismo ambiental. A própria ONU (Organização das Nações Unidas) ratificou esse apontamento por meio da resolução n.º 64/292, aprovada há mais de 10 anos.
No Brasil, após dois anos de tramitação no Congresso, recentemente a PEC 06/21, que garante, via Constituição Federal, o acesso à água potável entre os direitos e garantias fundamentais para toda a população, teve parecer aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. A Bolívia e o Equador são exemplos de uma visão mais profunda: lá, a água é encarada como sujeito de direito, ou seja, ela é mais que um recurso natural a ser explorado, é um elemento vivo, tal qual os seres humanos.
Nas favelas, nos assentamentos urbanos, nas ocupações de trabalhadores sem teto, mulheres com histórias e rostos parecidos com o meu são a espinha dorsal da família, sendo responsáveis pelo cuidado que ultrapassa o núcleo familiar direto, pois muitas das vezes, além de filhos, ficam sob sua tutela pais, avós, sobrinhos e outros parentes. Numa realidade onde o pouco que se tem é organizado para ser compartilhado, como administrar uma família e zelar por sua saúde, por sua alimentação e pela sua higiene sem ter acesso à água tratada?
A universalização da coleta de água e abastecimento de esgoto, juntamente às políticas de habitação social, oferece dignidade às famílias em situação de vulnerabilidade. Para que isso ocorra, é necessário que haja a garantia suprema de que não haja cobrança desleal e abusiva nas tarifas, sobretudo às de tipo social (voltadas a cidadãos cadastrados no CadÚnico e desempregados, por exemplo) e vulnerável (pobreza total). Privatizações desse serviço, a exemplo da tentativa do governo paulista em vender a Sabesp, são muito perigosas, pois não garantem que o fornecimento de água seja encarado como um direito básico, e não meramente uma commodity — ou, no bom e velho português, apenas um produto.
Na vida real, onde mulheres negras são responsáveis por garantir o sustento de suas famílias, o acesso à moradia digna, em uma região devidamente urbanizada e que garanta o básico para sobrevivência, está cada vez mais longe de ser algo palpável.
A maneira como a cidade vem sendo produzida segrega para as margens, cada vez mais, os pobres, as mulheres, as mães solo e os negros e negras. Que o Estado repense os assentamentos urbanos como espaços de dignidade. Tratar o saneamento básico como mercadoria é a gota d’água.
Ediane Maria é deputada estadual (PSOL-SP). Primeira trabalhadora doméstica a ocupar a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e do Movimento Raiz da Liberdade.