Produzir o comum
A primeira estratégia para a produção do bem comum é submeter a economia ao controle democrático. Essa subversão da ordem atual requer uma ativa participação cidadã e a democratização radical das instituições políticas existentes
Produzir o comum é produzir o que é de todos, o que todos partilham em comum. E, se é de todos, não é de ninguém, não pode ser comercializado, não pode ser privatizado. É público.
É produzir uma sociedade colaborativa, solidária, com ampla participação cidadã em suas instâncias políticas, com um governo voltado para a melhoria da qualidade de vida para todos. É assegurar formas de apropriação coletiva da riqueza existente e dos recursos que essa sociedade gera.
Para que o interesse comum prevaleça é indispensável a existência de um Estado e de um sistema político com capacidade de impor essa nova estratégia e produzir as políticas públicas para conquistar esses resultados.
Essa proposta é contra-hegemônica, porque hoje o Estado atua para beneficiar interesses privados, vê a sociedade apenas como uma oportunidade de negócios, atua para facilitar esses negócios. É por isso que esses interesses buscam separar a economia da política, para que a gestão da economia sirva aos interesses do grande capital e não se submeta ao crivo dos interesses comuns.
Assim, a primeira estratégia para a produção do bem comum é submeter a economia ao controle democrático. Essa subversão da ordem atual requer uma ativa participação cidadã e a democratização radical das instituições políticas existentes, que foram desenhadas para afastar a cidadania das decisões de caráter público e garantir o controle da democracia pelos grandes atores da economia.
É por isso que a questão da reforma política entra em pauta. Com nossas instituições políticas e suas regras de funcionamento e legitimação, é impossível a produção do bem comum. As instituições democráticas se curvam aos interesses do grande capital, a desigualdade e a pobreza crescem porque a riqueza produzida não atende às necessidades das maiorias, mas é capturada pelos grandes bancos e empresas.
Num novo cenário, de uma sociedade mobilizada para construir o bem comum, o papel de um Estado democrático e forte é determinante. Somente ele é capaz de impor regras que limitem a voracidade do capital e liberem recursos públicos para investimentos na produção do comum. O desafio é construir uma combinação virtuosa entre um maior poder do Estado e seu controle por uma democracia efetiva, respaldada pela mobilização popular. Há hoje reflexões que levam a pensar que muitas coisas a serem decididas podem contar com a manifestação direta da cidadania, por exemplo, por consultas via telefone celular.1
A privatização das empresas públicas, prioridade do atual governo golpista, é a cessão para empresas privadas explorarem serviços públicos com interesse de lucro. As tarifas sobem e os investimentos caem, o serviço fica mais caro e sua qualidade, em geral, cai.
A criação do bem comum é a resposta da cidadania às privatizações. A cidade de Paris retomou a gestão direta dos serviços de água e esgoto porque, depois da experiência da privatização, reconheceu que “a gestão privada de políticas públicas é incompatível com a defesa dos interesses comuns”..
Os resultados são ilustrativos: a cidade economizou, imediatamente, 35 milhões de euros por ano; como serviço público, passa a ser prioridade garantir que ele chegue às crianças e aos mais pobres. O preço da água para os moradores de Paris foi reduzido em 8% em 2011 e a cidade ainda usou parte do dinheiro economizado para subsidiar a água para regiões mais carentes e financiar projetos de solidariedade no Marrocos e na Palestina.2
Um bem comum é de todos e não é de ninguém. É o Estado que tem a atribuição de geri-lo. Ele precisa de uma política pública universal, isto é, que se proponha a atingir a todos e todas; ele precisa ser regular, não pode falhar e deixar a população sem alternativa; ele não pode ser cobrado, seus custos recaem sobre todos, já que são os impostos que pagam pelo serviço; ele tem de ser de qualidade para garantir a satisfação das necessidades que atende.
A vida no mundo urbano muda a percepção do que é um bem comum. A população brasileira é hoje predominantemente urbana (84%), e satisfazer suas necessidades requer políticas públicas.
Essas necessidades, da ótica dos neoliberais, são oportunidades de negócios. Água, saneamento, luz, transportes, educação, saúde, lazer, cultura, segurança pública, segurança alimentar, tudo isso hoje é fonte de negócios e lucros para as empresas que os operam, mesmo quando são empresas públicas que alienaram parte de seu capital na forma de ações em Bolsa, por exemplo. A qualidade dos serviços e o bem-estar da população não está entre suas prioridades. A Sabesp ganhou prêmios na Bolsa de Nova York pela rentabilidade de suas ações.
O argumento básico dos neoliberais é de que não há orçamento público para a implantação dos bens comuns. Por isso eles são cobrados de seus usuários e sua gestão é repassada para as empresas privadas, supostamente mais eficientes que o Estado para gerir esses serviços.
Esse argumento remete à discussão do orçamento público, suas receitas e despesas, e da política tributária. Afinal, quem paga as contas neste país?
Da ótica da receita, há uma enorme sonegação de impostos por parte dos empresários, estimada em cerca de 25% do PIB.3 Há uma legislação – única no mundo – que isenta de impostos os lucros das empresas. Há um perdão das dívidas principalmente dos grandes empresários (agronegócio, bancos) e uma infinidade de outras benesses para os donos do capital.
O governo é comandado pelo grande capital, que não se dispõe a reduzir seus lucros e não aceita pagar nenhuma parte da conta da crise atual. A política tributária brasileira é das que mais protege os ricos, transferindo as contas a pagar para a maioria por meio da cobrança de impostos indiretos, embutidos nos produtos, ou pelo corte nos reajustes salariais e nas políticas sociais.
Ainda assim, mesmo com essa receita reduzida e sonegada, o governo brasileiro poderia dar conta do desafio da introdução de bens públicos comuns, não fosse o sorvedouro de recursos que é o pagamento dos juros da dívida pública, algo na casa dos R$ 400 bilhões este ano e que beneficia principalmente as grandes instituições financeiras. As isenções de impostos que as empresas deveriam pagar anda na casa dos R$ 280 bilhões/ano.
Para fins de comparação, o déficit da Previdência foi de R$ 150 bilhões em 2016. Cortaram suas fontes de receita e assim criaram o déficit. O orçamento da Saúde aprovado foi de R$ 125 bilhões para 2017; com os cortes e contingenciamentos, este foi para R$ 99,4 bilhões. O orçamento previsto da Educação foi de R$ 35,74 bilhões e, com os cortes, passou para R$ 31,43 bilhões. O orçamento aprovado para a área de Cultura é R$ 1,04 bilhão e caiu para R$ 620 milhões.
É complexo avaliar o tamanho do rombo deixado pelos recursos que vão para o lucro das empresas privadas que operam políticas públicas, mas certamente estaremos falando de algo significativo que se soma aos argumentos anteriores.
O Brasil não é pobre. Pobre é a maioria de sua população, mas o país ainda está entre as principais economias do mundo. O importante é ressaltar que não se trata efetivamente da falta de recursos, mas de seu direcionamento. A quem os recursos públicos, provenientes dos impostos, vão beneficiar? É justamente essa questão que está por trás da disputa política sobre o controle do Estado e do ataque neoliberal aos direitos sociais dos brasileiros e brasileiras.
Voltamos ao argumento do início, atualmente a sociedade brasileira se organiza para propiciar o maior lucro possível para o grande capital. É uma sociedade e um Estado que se movem orientados para atender aos interesses do mercado. Mudar para uma sociedade orientada para atender às necessidades das maiorias, reduzir a desigualdade, acabar com a pobreza e garantir melhor qualidade de vida para todos é possível, pois temos recursos para isso, mas é uma revolução. Significa mudar o poder de mãos e reorientar a ação do Estado e as políticas públicas para novos objetivos.
No plano internacional podemos perceber que amplas mobilizações sociais trazem em sua agenda a criação dos comuns. Michelle Bachelet só conquistou seu segundo mandato como presidenta do Chile com o compromisso da educação pública gratuita em todos os níveis. Jeremy Corbyn, na Inglaterra, Bernie Sanders, nos Estados Unidos, Jean-Luc Melénchon, na França, as principais lideranças socialistas nos países mais ricos, só conseguiram empolgar a juventude e conquistar grandes apoios sociais com a defesa dos bens comuns e da melhoria da qualidade de vida das maiorias.
Para produzir o comum é preciso produzir uma democracia de novo tipo, capaz de colocar o cidadão e a cidadã no centro das decisões sobre coisas de interesse público. Só com essa força, dos até agora invisíveis, é que se poderá submeter a economia aos interesses da maioria.
*Silvio Caccia Bava é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil.