Projeto do Estado de SP vai entregar 25 áreas florestais à iniciativa privada
Criado em 2019, o projeto Vale do Futuro abrange toda região do Vale do Ribeira e prevê a concessão para a iniciativa privada de 25 áreas para exploração econômica por 30 anos
Criado em 2019, o projeto Vale do Futuro abrange toda região do Vale do Ribeira e prevê a concessão para a iniciativa privada de 25 áreas para exploração econômica por 30 anos
O Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar) possui a maior porção de Mata Atlântica preservada no Brasil. Localizado entre os municípios de Apiaí e Iporanga, o parque faz parte da história e da cultura das comunidades quilombolas e ribeirinhas que ali residem. Em 2016, o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) aprovou a Lei n° 16.260, com atualizações em 2020 pelo governo de João Dória (PSDB), a fim de “conceder a exploração dos serviços ou o uso de áreas, ou parte de áreas, inerentes ao ecoturismo e à exploração comercial madeireira ou de subprodutos florestais, pelo prazo de até 30 (trinta) anos”.
Em 1990, o parque tornou-se propriedade do estado e, com isso, surgiu uma série de conflitos territoriais. O desenho do Petar acabou incluindo os territórios das comunidades e 60% de Iporanga tornou-se parque. Por esse motivo, as pessoas não podem morar nessa extensão. De acordo com a arquiteta urbanista Ana Beatriz Nestlehner, com a chegada do parque, “às vezes chegavam papéis e as pessoas assinavam seu despejo sem nem saber”. Com isso, os moradores “se tornaram criminosos no próprio ambiente deles”.
Apesar do conflito ter iniciado há 30 anos, somente em 2000 foi finalizada uma lei para regulamentação de unidade e conservação (SNUC). Segundo Ana, “aí começa uma pressão dentro das comunidades, desde 1990, quando a lei estava sendo discutida, pelo direito delas de permanecerem no lugar”. Foi devido a uma pressão do Banco Mundial, que não transferiria verba se as pessoas fossem retiradas da terra, que o governo criou uma lei permitindo a autodeclaração de Quilombo. “Ele acaba sendo de uma certa maneira uma forma de luta por direito territorial”, relata a arquiteta.
Atualmente já existem quilombos reconhecidos, mas outros ainda lutam por esse direito. As famílias não reconhecidas, portanto, estão em condições mais vulneráveis pois correm o risco de expulsão, principalmente com a privatização do território.
Moradores de Iporanga alegam falta de diálogo e transparência
Desde 2016, ano de publicação da lei que prevê a privatização de áreas florestais, moradores e moradoras dos municípios que abrangem o Petar não compreenderam muito bem a dimensão do projeto em suas vidas. A falta de transparência tanto do governo do estado, quanto da Fundação Florestal, responsável pela gestão do parque, fez com que a lei passasse silenciosa, com alguns murmurinhos pouco estridentes. “Quando surgiu o primeiro boato de concessão foi em 2016, praticamente ninguém sabia o que seria essa concessão do Petar e nós, para falar a verdade, não levamos em consideração”, conta Silnei Florindo, morador de Iporanga e guia turístico do parque.
Em 2018, a Fundação Florestal foi até as comunidades e informou a população que haveria participação popular. De acordo com Silnei, a Fundação afirmou, inclusive, que se a população não quisesse, não teria concessão. “Aí morreu o assunto”. Então, em junho de 2021, “fomos convocados novamente todos os monitores e aí sim, aí já teve uma apresentação falando como seria, quais os núcleos que iam ser envolvidos e aí começou a nossa revolta pela maneira como ficou desenhado”.
A lei, após aprovada, não pôde ser efetivada imediatamente pois exigia um Plano de Manejo que o Petar não tinha na época, e foi criado apenas em 2019. Uma das exigências era a criação de uma Comissão da Concessão com integrantes dos municípios e do órgão gestor do parque. No ano seguinte, a pandemia parou o processo. No dia 19 de outubro deste ano, o governo de São Paulo, através da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (Sima), comunicou abertura de Consulta Pública do projeto de concessão com prazo até 26 de novembro. A audiência pública para escutar os e as moradoras foi marcada para o dia 25, um dia antes da entrega dos documentos para alteração do projeto.
A audiência do dia 25 será virtual. No entanto, muitas residências não têm energia elétrica e o acesso à internet é limitado, o que dificulta o processo de participação dos cidadãos e cidadãs dos municípios que serão diretamente afetados pela privatização da área.
A privatização do Petar trará impactos para a vida das pessoas e para a fauna
Iporanga, em Tupi Guarani, significa rio bonito. O município tem cerca de 5 mil habitantes e apenas 12% da população empregada. Há especulações, nada formalizado, de oferta de apenas 50 vagas de emprego, o que para a população não irá resolver o problema do desemprego. Além disso, o direito de consulta prévia, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) não foi respeitado.
A pedagoga Luciane da Rosa, moradora de Iporanga, é uma das protagonistas do turismo de base comunitária, com outras agentes comunitárias da região. A primeira iniciativa foi realizada no Quilombo Praia Grande, em 2013, com oficinas de planejamento participativo para o desenvolvimento do turismo etnocultural. Com a perspectiva coletiva e auto sustentável, o projeto integra no roteiro de visitação a história étnica e cultural da comunidade.
A concessão, portanto, é vista como um processo de apagamento da história das famílias que chegaram na região antes mesmo da formação do parque, assim como atravessa a autonomia de quem vive do turismo. No local existem pousadas, restaurantes, bares e guias, todos moradores, que conhecem o parque como a palma da mão e são parte daquele que é o quintal de suas casas. Possuem motivação distinta de um projeto que visa privatizar todo o território do parque, que é o lucro.
Para Ana Beatriz, “a concessão irá criar competitividade, tem previsão de abertura de novas rotas que não eram previstas, de criação de novos circuitos e construção de pousadas dentro do parque”. O que não tem como ser feito, sem alteração na fauna local. No que diz respeito à promoção de biodiversidade, a arquiteta considera uma ação pouco eficaz. “Uma das questões que eles buscam para promover a biodiversidade é não dar comida para os animais. Ninguém nem vê animal quando faz trilha. ‘Não alimente os animais’, essa é a ação de conservação”.
Já Silnei revela descontentamento ao imaginar como será o parque privatizado, com uma empresa que terá seus próprios monitores, sem possibilidade de fazer as trilhas e as rotas que faz hoje com os visitantes. “Eles vão ter o controle, porque eles podem ter os monitores deles”.
Apesar disso, o guia afirma, “eu não aceito que venham até mim e digam que a concessão vai sair de qualquer jeito porque o governo quer. O governo somos nós, o povo, e a gente vai mostrar que o povo é soberano”.
O movimento ‘Petar sem concessão’ busca impedir a privatização do parque
A fim de reverter a situação, foi criado um movimento para denunciar a falta de diálogo e os impactos para o meio ambiente e para a vida das famílias de Apiaí e Iporanga. O “Petar sem concessão” luta contra a entrega do parque para a exploração comercial.
Na tarde de 22/11 foi realizada uma audiência na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) a fim de impedir o processo de privatização. Além disso, o movimento tem como objetivo adiar a data atual para finalização de consulta pública, prevista para o dia 26 de novembro, assim como realizar uma audiência pública com a comissão da concessão, moradores e gestão do parque de maneira presencial e não híbrida, como prevista.
Maiara Marinho é jornalista e mestra em Comunicação e Cultura (UFRJ).