Punir o crime ou a contestação?
Considera-se o aspecto não político da ação terrorista. Como o único elemento que distinguiria uma ação terrorista de uma ação de direito comum – a finalidade política da primeira – é ignorado, a definição de ação terrorista se torna impossívelJohn Brown
Dizem que o mundo nunca mais será mais o mesmo depois do dia 11 de setembro. Essa frase, repetida com freqüência, serve, entre outras coisas, para justificar uma longa série de regras liberticidas, tanto no âmbito nacional quanto no europeu; em poucas palavras, serve para normalizar o Estado de exceção. A proposta de decisão conjunta sobre o terrorismo, submetida pela Comissão Européia ao Conselho da União Européia e ao Parlamento Europeu, se insere nessa lógica1
. Procurando estabelecer entre os quinze países da UE uma definição, bem como penas mínimas comuns para o terrorismo, ela constitui uma etapa decisiva na evolução da doutrina penal internacional. Para compreender devidamente seu alcance, convém retomar as principais etapas da legislação antiterrorista internacional.
Como que causada por um terrível presságio, a atual legislação antiterrorista organizou-se, até a década de 90, fundamentalmente em torno do ponto fraco da circulação planetária dos bens e das pessoas que é a aviação2
. Nessa pré-história do antiterrorismo, que permanece no campo do direito penal clássico, busca-se punir e prevenir ações concretas (seqüestros de aviões, tomada de reféns, atentados à bomba), e o termo “terrorismo” não é utilizado.
A difícil definição de terrorismo
Há uma certa reticência em definir um termo – terrorismo – que figura nas convenções internacionais e que seria a essência de uma nova doutrina jurídica
Esse termo aparece pela primeira vez, em direito internacional, em dois textos muito recentes: as convenções internacionais para a repressão dos atentados terroristas à bomba (Nova York, 15 de dezembro de 1997) e para a repressão do financiamento do terrorismo (Nova York, 9 de dezembro de 1999). Contudo, não apresentam com precisão a noção de “terrorismo”.
Parece existir uma certa reticência em definir um termo que figura nos títulos desses textos legislativos e que, retroativamente, se tornaria o ponto essencial de uma nova doutrina jurídica. Como diz a Comissão Européia, na exposição de motivos de sua proposta de decisão conjunta: “Segundo a convenção contra o financiamento do terrorismo, o fato de fornecer ou de coletar fundos, diretamente ou indiretamente, ilicitamente e intencionalmente, com o propósito de utilizá-los, ou sabendo que serão utilizados para cometer qualquer ato situado no âmbito de aplicação das convenções acima mencionadas (com exceção da convenção relativa às infrações e a alguns atos que ocorrem a bordo de aviões, que não está incluída), constitui uma infração. Isso significa que, mesmo que os termos “terrorismo” ou “ações terroristas” não apareçam na maioria delas, essas convenções dizem respeito às infrações terroristas3
.” Será que como Jourdain, que obtinha sucesso de modo quase inconsciente, o legislador internacional das décadas de 60 a 80 já praticava o antiterrorismo?
O aspecto não-político da ação terrorista
Já existe um primeiro esboço de definição do terrorismo, mas ele justapõe duas concepções diferentes, e mesmo contraditórias, do fenômeno
Não, pois o objetivo desses primeiros textos era incentivar a cooperação internacional na luta contra algumas ações de violência particularmente perigosas e hediondas. Para tal, era importante distingui-las das ações políticas, para incluí-las no direito comum. Aliás, isso se revela indispensável em sistemas legais democráticos que não conhecem delitos políticos e que só podem punir ações, nunca opiniões.
Segundo o artigo 6 da convenção sobre a repressão do financiamento do terrorismo, por exemplo, “cada Estado adota as medidas que possam ser necessárias, inclusive, se for o caso, uma legislação interna, para garantir que as ações criminosas que constituem objeto da presente convenção não possam, em circunstância alguma, ser justificadas por considerações de natureza política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou por outros motivos análogos.” O aspecto não político da ação terrorista é que é levado em conta. Como o único elemento que distinguiria as ações terroristas das ações de direito comum – isto é, a finalidade política das primeiras – é sistematicamente ignorado, a definição de ação terrorista se torna impossível.
Além das ações concretas visadas pelas diferentes convenções internacionais, a convenção sobre a repressão do financiamento do terrorismo (artigo 2, 1 b) considera como infração “toda […] ação destinada a causar a morte ou danos corporais graves a qualquer pessoa civil, ou a qualquer outra pessoa que não participe diretamente das hostilidades numa situação de conflito armado, quando, por sua natureza ou seu contexto, essa ação é destinada a intimidar uma população ou a obrigar um governo ou uma organização internacional a realizar, ou a se abster de realizar, qualquer ação.”
Os princípios do Tribunal de Nuremberg
O terrorismo é visto como uma ação de guerra ilícita, à medida que esta é dirigida contra a população civil, e assimilado a um crime de guerra
Essa fórmula constitui um primeiro esboço de definição do terrorismo, mas justapõe duas concepções diferentes, e mesmo contraditórias, do fenômeno. A primeira, que insiste nos danos causados à população civil, situa-se na linha dos princípios do Tribunal de Nuremberg; a segunda, que enfatiza a subversão da ordem política e encontra expressão no Terrorism Act da Grã-Bretanha, iria inspirar a proposta da Comissão Européia.
Na realidade, o terrorismo é visto como uma ação de guerra ilícita, à medida que esta é dirigida contra a população civil – que, pelo menos segundo as regras tradicionais, deveria permanecer à margem de um conflito cujos autores seriam apenas as forças armadas. Assim, é assimilado a um crime de guerra no sentido estabelecido pelos princípios do Tribunal de Nuremberg (6, B), segundo os quais esse tipo de crime se definiria da seguinte maneira: “As violações das leis e costumes da guerra que compreendem, sem se limitar a eles, assassinatos, maus tratos ou a deportação para trabalhos forçados, ou para qualquer outro fim, populações civis nos territórios ocupados, assassinato ou maus tratos a prisioneiros de guerra ou de pessoas no mar, a execução de reféns, o saque de bens públicos ou privados, a destruição perversa de cidades ou vilarejos e a devastação que as exigências militares não justificam4
.”
Mudança radical de paradigma
Em sendo necessário definir o terrorismo, essa definição pareceria mais aceitável à medida que, não fazendo intervir considerações de ordem política, se veja na ação terrorista um dano importante contra a sociedade e as pessoas. Entretanto, as violações das leis e dos costumes da guerra, e os ataques contra a população civil, são a essência mesma dos conflitos que, a partir do século XX, fazem vítimas entre a população civil. Uma vez proibida a guerra (desde o Pacto Briand-Kellogg, de 1928, declarar guerra constitui um crime contra a paz), o inimigo torna-se um criminoso e as velhas “leis e costumes” que poupavam os civis caem em desuso.
Em sendo necessário definir o terrorismo, essa definição pareceria mais aceitável à medida que se veja na ação um dano contra a sociedade e as pessoas
Sem excluir a eventualidade de incriminar os Estados, é necessário estabelecer para o terrorismo uma diferença específica que o distinga do crime de guerra. Essa diferença estaria em sua finalidade política. Esta é reconhecida na segunda parte da convenção sobre a repressão do financiamento do terrorismo5
, que faz dele uma ação “destinada a intimidar uma população ou obrigar um governo ou uma organização internacional a realizar, ou a se abster de realizar, uma ação qualquer”. Uma mudança radical de paradigma: acabam-se as listas precisas e as cansativas descrições desses crimes hediondos cujo objetivo político deveria ser sistematicamente ignorado. A partir de agora, é à finalidade política que se fará apelo para fundar a nova categoria de delitos. A inspiração para essa reviravolta copernicana seria buscada não no âmbito do direito e, sim, no terreno – realista por excelência – da polícia.
Opção pela norma policial
De fato, essa idéia de finalidade política lançaria suas raízes numa definição policial do terrorismo – a que é retirada da lista das tarefas do diretor do Federal Bureau of Investigation (FBI): “O terrorismo consiste na utilização ilícita da força e da violência contra pessoas ou bens com o objetivo de intimidar ou de coagir um governo, a população civil, ou uma parte dela, para atingir objetivos políticos ou sociais6
.”
Se, no âmbito da tradição do direito penal, a definição do terrorismo se choca contra obstáculos de princípio, estes seriam superados graças à definição policial norte-americana, que servirá de base para as novas definições “jurídicas” do Terrorism Act de 2000, da Grã-Bretanha, e da proposta da Comissão Européia.
Apesar de algumas pequenas mudanças de estilo introduzidas nos textos nela inspirados, a fertilidade da norma policial é facilmente reconhecível. Desse modo, segundo o texto britânico, o terrorismo é “a prática ou a ameaça de uma ação” que tem “por objetivo influenciar o governo ou intimidar o público, ou uma parte deste, e […] a fim de promover uma causa política, religiosa ou ideológica”. Encontram-se, nesse texto, as duas principais finalidades do terrorismo enunciadas na definição do FBI: a influência ou a coação sobre o governo ou a população, e a finalidade política última da ação, que também se expressa sob forma religiosa ou ideológica.
Não há crime sem lei; não há pena sem lei
A definição da Comissão Européia não se afasta muito desse modelo que reconhece seguir. Contudo, limita a extensão do termo definido a uma série de ações que retoma os pontos capitais de acusação da legislação internacional (assassinato, chantagem, tomada de reféns, atentado etc.) e acrescenta a essa série outras ações que se aproximam mais da desobediência civil ou de meios de luta sindical ou de luta pela cidadania (ocupação de lugares públicos ou de infra-estruturas, alguns danos a propriedades que têm um valor simbólico, ciber-ações). É a intenção política que unifica todas essas ações. Uma ação anticapitalista que empregue meios que estão no limite da legalidade, ou que até sejam ilegais, mas de modo algum violentos, seria, portanto, considerada uma ação de terrorismo.
Seria possível dizer-se que é ilegítimo tirar essa conclusão: entretanto, o texto é suficientemente eloqüente. Se é verdade que estabelece uma lista de ações, essas ações não são definidas de maneira clara e unívoca. Para caracterizá-las como ações terroristas, recorre-se a um critério de interpretação de triste memória em direito penal: a analogia e, concretamente, a analogia de intenção.
Uma velha fórmula latina traduz o sentido e os limites de todo direito penal que dá garantias: nullum crimen sine lege; nulla poena sine lege – não há crime sem lei; não há pena sem lei. Esse princípio básico pretende que a infração seja definida com a máxima precisão, de modo que as autoridades não tenham senão uma margem muito estreita de interpretação. Sem isso, ele seria esvaziado de qualquer sentido: se fosse possível uma interpretação ampla do enunciado da lei, ações de qualquer outra natureza poderiam ser assimiladas a ações criminosas no interesse das autoridades, ou de alguns aparelhos de Estado. Quem rouba um tostão, rouba um milhão…, diz o velho ditado reacionário. Essa exigência do direito penal clássico se expressa no princípio da não-analogia.
Rumo à perseguição ideológica?
Sem excluir a eventualidade de incriminar os Estados, deve-se estabelecer para o terrorismo uma diferença específica que o distinga do crime de guerra
Numa interpretação analógica, qualquer ação é assimilada a uma ação passível de punição, em virtude de uma certa propriedade comum a ambas. O risco de desvios existe7
. Com freqüência cada vez maior, em nossas sociedades, a polícia extrapola sua função de auxiliar da justiça e se arroga um papel judiciário ou legislativo. A própria Europa, por exemplo, avança a passos gigantescos em sua unificação policial (Europol), enquanto a harmonização do direito e a criação de instâncias judiciárias comuns, que teriam por objetivo garantir direitos dos indivíduos, se arrastam (leia, nesta edição, o artigo de Jean-Claude Paye). O dia 11 de setembro deu uma espécie de justificativa à extensão dos poderes policiais que, de outro modo, teria sido vista como um perigo para a democracia.
No caso da legislação antiterrorista proposta em âmbito europeu, a finalidade permite definir a ação terrorista. Segundo esse raciocínio, todos os que querem subverter a ordem estabelecida, todos os que querem “atingir gravemente ou […] destruir as estruturas políticas, econômicas ou sociais de um país” seriam, mediante certas ações cuja definição permanece imprecisa, terroristas. Em boa lógica policial, o elemento fundamental da incriminação em delitos de terrorismo não é a ação, mas a intenção, isto é, o próprio sujeito é considerado um indivíduo “perigoso”.
A incriminação do terrorismo em escala da União Européia, convidada a pronunciar-se pela Comissão, pode ter conseqüências nefastas para a democracia. Pessoas ou grupos que aspiram legitimamente a uma transformação radical das estruturas políticas, econômicas ou sociais de nossos países, seriam visadas por essa legislação antiterrorista. Não seriam perseguidas pelas ações que tivessem praticado e, sim, porque
seriam suscetíveis de tê-los cometido em razão de sua ideologia.
(Trad. : Iraci D. Poleti)
1 – Proposta de decisão conjunta do Conselho, relativa à luta contra o terrorismo – Com 2001-521. J.O. C 332 E, 27 de novembro de 2001. http://europa.eu.int/eur-lex/fr
2 – Ver, na exposição de motivos da Comissão Européia, o item 2.
3 – Que belo exemplo de aplicação do princípio – fundamental em direito penal – do caráter não retroativo das normas!
4 – Convenção sobre o financiamento do terrorismo (artigo 2, 1, b).
5 – Code of Federal Regulations, Title 28, Volume I [CITE: 28FRO.85].
6 – O Sindicato O Sindicato da Magistratura, em sua entrevista coletiva à imprensa sobre a legislação promulgada na França, no dia 12 de outubro de 2001, está indignado: “Esses textos relativos às liberdades mais fundamentais são apresentados e defendidos pelo ministro do Interior. Coisa inédita. Normalmente, não é o Ministério da polícia qu