Quadra 36 e a incansável batalha de poder ser e permanecer
Eu converso com a oficial de justiça que executa a reintegração. Ela me diz que cumpre ordens. As casas devem sair para dar lugar a um hospital que, à época, sequer tinha projeto aprovado. Dois anos depois, o hospital continua uma ideia, e as casas, que eram fatos, foram demolidas. Fatos amparados pela legislação municipal, é bom dizer.
Campos Elíseos, 14hs. 18 de abril de 2018.
Caminho pela Av. Rio Branco, no centro de São Paulo, avistando ao fundo a cavalaria da Polícia Militar. Ninguém sabia, mas aquele dia era dia de reintegração de posse.
Ela havia sido marcada com as famílias para dali a dois dias. Mas a eficiência do Estado, quem diria, antecipou a mudança e pegou todo mundo da ocupação de surpresa.
Chego à porta do edifício e o vejo praticamente vazio. No chão sobram alguns móveis, pedaços de madeira, fios e fotos que ficaram pelo caminho. Quantas histórias moravam ali?
Por de trás da porta surge uma criança com um boneco de herói. Eu a sigo e me deparo com um corredor de paredes demolidas e um microondas no chão. A criança se agacha, coloca gravemente o boneco e diz: é hora de fazer comida, papai.
Subo as escadas e chego ao andar de cima. Mais escombros e outra criança tentando entender pra onde estão indo os móveis de sua casa. Ela se debruça na janela e vê homens vestidos de azul levando suas memórias transportáveis para o caminhão baú.
Tento entender o que aquela cena significa pra ela mas não consigo. Saio da ocupação e converso com outras famílias que estão revoltadas. Pra onde ir? Por que elas têm que sair?
Todos têm manifestações físicas de angústia: a pressão sobe, as pernas bambeiam, a boca seca. Outros emudecem e ficam com o olhar distante tentando encontrar uma solução em meio ao caos. Por que eles são sempre removidos? Para muitas este não foi o primeiro e nem o último despejo. Uma delas procurou morada no edifício Wilton Paes de Almeida que, menos de 20 dias depois, pegou fogo e ela, novamente, perdeu tudo.
Elas estão em permanente transitoriedade, como nos alerta Raquel Rolnik.
Eu converso com a oficial de justiça que executa a reintegração. Ela me diz que cumpre ordens. As casas devem sair para dar lugar a um hospital que, à época, sequer tinha projeto aprovado. Dois anos depois, o hospital continua uma ideia, e as casas, que eram fatos, foram demolidas. Fatos amparados pela legislação municipal, é bom dizer.
Ali, a Lei do Plano Diretor definiu como uma Zona Especial de Interesse Social, uma ZEIS, como dizem os urbanistas. Um local onde a prioridade é produzir, manter e/ou regularizar moradias populares de forma participativa, a partir de um conselho gestor e um plano de urbanização.
Mas a justiça brasileira, de herança colonialista e escravocrata, conserva em sua linguagem fortes traços patrimonialista e elitistas, e entendeu que, entre um futuro hospital ilegal e o direito fundamental à moradia de 200 famílias, era melhor ser a favor da ilegalidade.
Mas gente não é folha que vai com o vento. Gente é gente e tem direitos. Gente é gente e se organiza, se mobiliza, propõe alternativas. E essa gente é gente que re-existe há muito tempo. É que, no sangue, na pele e no olhinhos às vezes puxados, às vezes engrandecidos, corre uma longa linhagem de povos da diáspora africana e/ou originários desta terra chamada Brasil.
Há muito tempo que tentam condicionar os descendentes destes povos apenas a este lugar de dor e subalternidade. Mas elas se sabem maiores do que isso. E reeditam a própria história, controlam suas narrativas e constroem futuros quando só os querem no passado. Constroem desejos mesmo quando só lhes oferecem dor.
Tinha a comerciante que, removida, perdeu a casa, a renda, o trabalho. A vida quase perdeu sentido – as remoções geram um forte impacto psicológico que dificilmente é considerado pelas consultorias “especializadas” em remoções – mas ela voltou. E quase todo dia manda mensagem em nosso grupo de whatsapp apostando num futuro que teima em chegar.
Havia uma certa mulher que cresceu na favela do moinho. Quando a favela pegou fogo, ela perdeu quase tudo e foi para uma das ocupações ali perto, na quadra 36. Hoje, cria seus filhos trabalhando como terceirizada numa empresa de limpeza. Ela luta, reivindica e não se cala, nem mesmo quando todas as famílias, inclusive a dela, forem atendidas
Nesta mesma quadra havia outra que trabalhava com telemarketing. É mãe solteira e com um salário mínimo sustenta a casa, a escola particular do filho e a própria faculdade. Ela comparece a todas as reuniões dos moradores, e traz ideias e relatos das outras famílias.
Tem também a que se engaja em conselhos participativos, que se articula, que se mobiliza, que trabalha como técnica na área da saúde e, apesar disso tudo, foi recentemente despejada porque a CDHU, sem aviso prévio, e desde janeiro de 2020, cortou seu auxílio aluguel e demais 41 famílias da mesma quadra. Essas pessoas não desistem. Denunciam essas violências nas mídias, no Ministério Público e insistem em existir e reivindicar seus direitos.
Às vezes suas vozes ganham um pequeno eco.
Após a remoção, por pressão das famílias, dos Conselho Gestores e do Fórum Mundaréu da Luz, 170 famílias foram cadastradas, sendo 144 habilitadas para receber um auxílio aluguel de 400 reais, até que uma solução habitacional definitiva fosse encontrada.
Destas 144, 58 conseguiram comprar imóveis via carta de crédito oferecida pela CDHU, sendo 26 em regiões que chegam a até 600 km de distância da quadra e as demais em locais mais próximos da quadra.
A aquisição por Carta de Crédito não foi acompanhada do trabalho técnico social, como demanda a lei, e não se sabe se os imóveis adquiridos são adequados ao tamanho das famílias, nem se a mudança de bairro/ região ou cidade comprometeu outros direitos como o da educação, por exemplo.
Esse conjunto de violações fez com que o Ministério Público entrasse com uma Ação Civil Pública (ACP) contra o Governo do Estado, a CDHU e a prefeitura municipal cobrando a reparação e indenização a estas famílias, em especial às 42 que estão sem auxílio aluguel desde janeiro de 2020.
Apesar disso, até o momento, não houve um posicionamento oficial dos entes federativos em relação à ACP. O que sabemos é que as famílias ficaram meses sem o benefício e com despejo iminente, se é que já não ocorreu.
Com a coronacrise, estar na rua é estar em risco, e a situação destas famílias ganha contornos ainda mais críticos. Por que o auxílio foi cortado? Por que as famílias não foram avisadas com antecedência? Quando os valores atrasados serão regularizados? Será que eles correm o risco de serem cortados novamente? E, talvez, a pergunta mais importante: por que a demora em encontrar uma solução habitacional adequada e definitiva para estas famílias? Ainda mais quando na quadra em frente há inúmeros apartamentos vazios construídos via Parceria Público Privada em um terreno que era do Governo do Estado e quando, segundo o projeto Campos Elíseos Vivo, há mais de 20 imóveis vazios naquela região que poderiam facilmente ser convertidos em até 2.500 novas moradias se aplicados os instrumentos urbanísticos já vigentes em nossa legislação?
Sabemos que situação da quadra 36 não é exclusiva, há pelo menos 808 famílias que foram removidas ou ameaçadas de remoção entre 2017 e 2018 só na Região Metropolitana de São Paulo.
Mais importante do que olhar para os números, é refletir que atrás deles há sujeitos(as) que lutam pelo protagonismo de suas próprias histórias, mesmo quando o mundo só quer apagá-las.
Felipe Moreira é membro do Conselho Gestor da Quadra 36 pelo Instituto Polis.