Quais as perspectivas futuras do trabalho no contexto pós-pandêmico?
Segundo uma pesquisa realizada e publicada na revista científica britânica The Lancet, no ano de 2018, estima-se que 13,5 milhões de vidas seriam afetadas beneficamente ou poupadas, caso houvesse maiores investimentos na área das políticas públicas e de saúde mental
Desde o início da crise sanitária propiciada pela pandemia de covid-19, as relações de trabalho apresentaram um grande processo de transformação no horizonte. Com as principais recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) que envolvem a adoção do isolamento social, utilização de máscaras faciais e higienização constante das mãos como principais medidas de contenção e de propagação do vírus da covid-19, segundo estudo do professor André Miceli da Fundação Getúlio Vargas, estima-se que mesmo com o final da pandemia, o home office aumentará 30% no contexto pós-pandêmico (Miceli, 2020).
Embora esse prognóstico pareça positivo, em um primeiro momento, é necessário recordarmos que nem todos os setores conseguiram acompanhar as mudanças abruptas requeridas pela rápida adoção da jornada home office. Nesse sentido, afetados de forma direta pela imposição do isolamento social ou pela restrição de circulação de pessoas e de contato humano, no contexto brasileiro, diversos setores tiveram que fechar as portas ou se adaptar radicalmente as medidas adotadas. Entre os principais setores afetados, podemos listar o turismo, hotelaria, companhias aéreas, parques e atividades culturais e artísticas que ocasionem aglomerações, no geral. No caso específico do comércio, estima-se que o e-commerce tenha crescido 40% em vendas on-line durante a pandemia, segundo levantamento da ABComm e Konduto.
Acompanhando o aumento das vendas nas plataformas de e-commerce, os trabalhadores que se encontravam nas categorias de entregas por aplicativos das empresas Ifood, Rappi e Uber-eats, já apresentavam condições precarizadas de trabalho no contexto pré-pandêmico. Com o aprofundamento da crise econômica e do aumento do ritmo de trabalho que não acompanharam as necessidades especiais desse período (acesso a álcool gel, plano de saúde, auxílio trabalhista em casos de quebra de equipamentos), a categoria irrompeu sua primeira greve nacional no dia 1 de julho, com a finalidade de obter condições mínimas de trabalho. Com a adesão de 18 estados brasileiros e de países como Austrália, Argentina, China, México e Inglaterra, a principal pauta do movimento consistia no fim dos bloqueios nos aplicativos, e assistência legal nos casos de adoecimento ou afastamento por covid-19.
No país que ocupa a quarta posição no ranking de acidentes de trabalho, estima-se que em aproximadamente cinco décadas, o Brasil perdeu em torno de 173 mil pessoas em acidentes do trabalho e 645 mil trabalhadores, com doenças derivadas do trabalho, segundo Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes do Trabalho (Diesat). Esses números tendem a ser maiores se consideradas os dados oficiais informados pela Previdência oficial, que registram que entre os anos de 2014 e 2018 tivemos 1,8 milhão de afastamentos por acidentes de trabalho.
Assim, artigos que anunciavam o home office como o melhor dos mundos do trabalho foram publicados com tons promissores nos primeiros meses do isolamento. Afinal, a oferta de tempo em casa aumentaria paulatinamente, com a oportunidade de conciliar as tarefas domésticas, trabalho e lazer. Em diversas plataformas virtuais, como o SEBRAE, cursos como “Aprenda a ser Empreendedor” e dicas em formato de artigos como “9 filmes sobre empreendedorismo para assistir durante a quarentena“, “Como usar o WhatsApp grupos com sua equipe em tempos de Coronavírus?” e “8 blogs brasileiros que todo empreendedor deveria ler”, e entre outros, tornaram-se tema recorrente de abordar o dilema do trabalho home office nos tempos de pandemia.
Apresentando taxas percentuais de 12,2% com 12,9 milhões de desempregados e aumento de 10,5% no primeiro trimestre de 2020, além da informalidade beirando 39,9% da população, sem contabilizar as dificuldades das pequenas e médias empresas que encerraram suas atividades, não é difícil concluir que as expectativas criadas com o home office não foram contempladas em um cenário de disparidades econômicas e sociais como o nosso (Pnad/IBGE). Ilustrando em efeitos práticos, segundo dados levantados pelo Poder 360º, Caged e Portal da Transparência do Governo Federal, em 25 estados brasileiros o número de beneficiários do auxílio emergencial ultrapassou o montante de trabalhadores com carteira de trabalho assinada, com a exceção de apenas dois estados, Distrito Federal e Santa Catarina.
Complementar a esse contexto, ressalta-se o ataque aos postos de trabalho do funcionalismo público. Em 3 de setembro, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, recebeu a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020 da reforma administrativa, que afeta os futuros servidores federativos e no Ministério Público e que restringe juízes, promotores, políticos e militares. Retirando a estabilidade e direitos, a PEC, caso aprovada, possibilita a contratação de servidores temporários, que passariam por novas etapas no momento comprobatório da contratação, além da estabilidade à longo prazo. É notório ainda que a reforma restrinja altos cargos, se o objetivo final da proposta defendida pelo governo seria o enxugamento orçamentário. Em resumo, as contas não fecham.
Com a finalidade de se evitar uma súbita queda de popularidade nas vésperas das eleições municipais, findar o auxílio emergencial tornou-se uma pauta inviável. Nesse sentido, a prorrogação do auxílio emergencial foi proposta pela medida provisória, com seu valor reduzido para 300 R$ e distribuído em quatro parcelas, até o período de 31 de dezembro de 2020. Além do valor reduzido pela metade, a prorrogação do auxílio retorna com novas restrições, aumentando-se os critérios para acolher os beneficiários.
Demonstrando o protagonismo econômico do programa de distribuição de renda em um momento de suspensão de contratos, altos índices de desemprego e informalidade, a pesquisa solapa a imagem empreendedorista do “faça seu próprio negócio”, largamente difundida durante a pandemia, e que coloca o indivíduo como principal responsável por sua subsistência. Após nove meses decorridos do início da pandemia, sabe-se que os impactos psicológicos do isolamento social sob os indivíduos podem ser muito mais devastadores do que supúnhamos, apresentando sintomas como stress, ansiedade, depressão, abuso de álcool e de substâncias diversas, irritabilidade, tristeza e sentimento de luto.
A escassez de profissionais qualificados para lidar com os afetados pelo isolamento social ainda agrava o problema, já que o tema era negligenciado antes mesmo da pandemia. Segundo uma pesquisa realizada e publicada na revista científica britânica The Lancet, no ano de 2018, estima-se que 13,5 milhões de vidas seriam afetadas beneficamente ou poupadas, caso houvesse maiores investimentos na área das políticas públicas e de saúde mental. Na China, primeiro país a aderir ao lockdown, considerada a forma mais restrita de isolamento social, estima-se que 29,3% dos chineses apresentaram alguma manifestação de ansiedade durante ou depois do período pós isolamento social (CISA,2020). Esses números nos dão algumas indicações importantes de como os efeitos da covid-19 estariam presentes mesmo após o período pandêmico, considerando um contexto extenso de privações cotidianas e de interações restritas.
Angelina Moreno é doutoranda pelo programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Unesp-FCLAr e pesquisadora pelo grupo de pesquisa Classes Sociais e Trabalho da Unifesp. Contato: [email protected]
MICELI, André. Tendências de Marketing e tecnologia. Infobase, TEC Institute, 2020.