Qual Espanha?
Rumor de botas na caserna: eis o novo resultado da campanha ultra-conservadora contra as reformas de Zapatero. Apesar disso, a Catalunha conquistará mais autonomiaIgnacio Ramonet
O debate sobre o novo estatuto de autonomia da Catalunha [1] atingiu nas últimas semanas, na Espanha, um grau de intensidade preocupante. Especialmente depois da declaração, no último dia 6 de janeiro, em Sevilha, do general José Mena Aguado: “É nosso dever”, afirmou ele, “alertar sobre as graves conseqüências que poderiam provocar a aprovação do Estatuto da Catalunha, nos termos de sua redação atual, no seio das Forças Armadas enquanto instituição, assim como junto a todo os seus integrantes”. O general acrescentou ainda que, segundo ele, o artigo 8 da Constituição confiava às Forças Armadas a missão de velar pela unidade da Espanha e de se opor a seu desmembramento [2].
Esta intervenção de um oficial de alta patente no debate político já tenso trouxe incômodas lembranças aos democratas. Porque ela se produz num ambiente perturbador: acabam de ser comemorados, no dia 20 de novembro de 2005, os 30 anos da morte do general Franco. Dentro de algumas semanas, será o 25º aniversário da tentativa de golpe de Estado do coronel Tejero, no dia 23 de fevereiro de 1981; e dentro de alguns meses, o 70º aniversário do levante de 18 de julho de 1936 contra a República, que mergulhou o país numa guerra civil. A Espanha pensava ter acabado com a tradição do pronunciamiento, que caracterizou sua vida política ao longo de todo o século XIX e parte do século XX – até 1978, data da adoção da Constituição atual.
É evidente, no entanto, que os tempos mudaram, a democracia se enraizou e é agora impensável que um punhado de oficiais cheguem sequer a ameaçá-la. A declaração do general Mena mostra simplesmente que um resíduo de tradição intervencionista subsiste entre um pequeno número de oficiais. Mas esta tradição foi fortemente reavivada nestes últimos meses pela campanha de hostilidade sistemática conduzida pelo Partido Popular (direita) contra o governo socialista de José Luís Rodríguez Zapatero. Este último tomou um certo número de iniciativas que levantaram a fúria da Espanha mais conservadora.
O novo Estatuto não anuncia separação em relação à Espanha. Inscreve-se na tradição federalista, reivindica o caráter de nação para a Catalunha e foi aprovado por 90% dos deputados catalães em setembro de 2005
O que incomoda a direita
Primeiro, foi a decisão – adotada logo após sua eleição em março de 2004 e depois dos atentados de Madri – de retirar as tropas do Iraque, para onde as havia enviado imprudentemente (contrariando a opinião de 80% dos espanhóis) o ex-presidente José María Aznar. Outras medidas foram ainda mais polêmicas, em particular a de restituir à Catalunha os arquivos pilhados pelos exércitos de Franco em 1938 e armazenados em Salamanca. Durante semanas, as mídias controladas pela direita bombardearam a opinião pública com informações alarmistas sobre o “perigo” que esta restituição representava para a unidade da Espanha… O Partido Popular não hesitou em convocar imensas manifestações para protestar contra este “despojamento”.
Veio em seguida a legalização do casamento homossexual. Aceita pela maioria dos espanhóis, esta medida levantou, nos meios mais retrógrados, uma indignação anacrônica. A Igreja católica chegou a ameaçar de excomunhão os prefeitos que permitirem tais uniões.
Houve, enfim, a questão do novo estatuto da Catalunha. Como o País Basco e a Galícia, este território possui sua própria língua e uma cultura singular. Ele já constituía, desde 1932, uma “região autônoma no interior do Estado espanhol”. E reencontrou sua autonomia em 1979, quando 17 “comunidades autônomas” foram criadas na Espanha. Em virtude de um Estatuto reconhecido pela Constituição, o governo catalão – a Generalitat – pôde criar uma polícia autônoma e recebeu competências em matéria de educação, saúde, assistência social, política cultural e linguística e manutenção do território.
Nação autônoma na Espanha
Quase 30 anos se passaram. Desde novembro de 2003, a Catalunha – pela primeira vez desde o fim do franquismo – é governada por uma coalizão de esquerda (socialistas, nacionalistas de esquerda, verdes) que prometeu adotar um novo Estatuto. Este último não anuncia nenhuma “separação” em relação à Espanha. Inscreve-se numa tradição “federalizante”, reivindica o caráter de “nação” para a Catalunha e foi aprovado por 90% dos deputados catalães em setembro de 2005. Está em discussão no Parlamento de Madri.
A direita e a Igreja orientaram todas as suas mídias, ainda muito influentes, a desencadear uma campanha para esquentar os espíritos e assustar os corações. O primeiro resultado está aí: barulho de botas nas casernas. Mas, depois de algumas modificações para que fique em conformidade com a Constituição da Espanha – no dia 21 de janeiro, o primeiro ministro e o líder do Partido Nacional
Ignacio Ramonet é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.