Quando a música é utilizada para o horror
Os militares eram sádicos, e daqueles porões onde ecoavam gritos desesperados pela própria vida, também podiam-se ouvir as canções do gosto popular, as chamadas músicas de protesto
O papel que a música desempenhou em diferentes momentos da história brasileira – lembremos, em um país com mais períodos ditatoriais do que democráticos – sempre representou um modo de saber o que o conjunto da sociedade estava pensando em determinado momento, ou o que pensava sobre si mesma, haja vista as diversas músicas nas quais o Brasil encarnava o símbolo pitoresco do atraso ou o quixotesco país do futuro.
A sociedade sentiu na pele as consequências do exílio e da censura sobre a cultura musical nos 21 anos de ditadura militar e respondeu às violências sofridas com vozes rasgadas de verdade no seu canto, nas letras e em estilos que prescindiam de ambas para expressar toda a veracidade de seu tempo. Acontece que os nossos militares eram sádicos, e daqueles porões onde ecoavam gritos desesperados pela própria vida, também podia-se ouvir gemidos misturados a canções que faziam parte do gosto popular: músicas compostas sob o signo da esperança e da humanidade foram transformadas em trilha sonora de longas sessões de tortura, horror e mortes.
Lançado no ano de 2015, o livro Ainda Estou Aqui, do escritor Marcelo Rubens Paiva, vem reacendendo as discussões sobre as violações contra os direitos humanos nas delegacias de polícia atreladas ao regime militar. Toda a movimentação feita ao longo dos anos pela família Paiva em busca de respostas contribuiu para que fossem um pouco dissipadas as nuvens de fumaça que escondiam os nomes e os rostos dos torturadores e suas barbaridades.

Créditos: Creative Commons/Wikimedia
Sob a condição de depoentes no quartel do 1° Batalhão de Polícia, onde funcionava o DOI-CODI do I Exército no Rio de Janeiro, pessoas interrogadas declararam, muito tempo depois, que, durante a permanência no local, além de constatarem que eram verídicas as sessões de tortura tantas vezes desmentidas pelos meios de comunicação do governo, duas músicas eram constantemente ouvidas junto aos gritos dos “interrogados”: Apesar de Você, de Chico Buarque, e Jesus Cristo, de Roberto Carlos.
A desculpa dada por Chico Buarque aos censores à época era a de que a música se tratava de um galo que acreditava que o sol nascia unicamente por causa do seu canto, até o dia em que perdeu a hora e viu o sol nascer “apesar de você”, convencendo-se do contrário. Não sabemos se os censores acreditaram nessa história, mas, ao usarem a música como mais um instrumento de violência, ela soou como uma resposta sádica e fatal para todas as vozes contrárias àquele sistema.
A primeira vez que a música apareceu foi em 1970, lançada em um compacto simples de 45 rpm, contendo, de um lado, Apesar de Você e, do outro, Desalento. Propositadamente ou não, seus títulos expressavam bem os lados A e B vividos pelo país. Quando compôs a canção, uma crítica direta a tudo o que estava acontecendo naquele momento, Chico nunca poderia imaginar que sua música seria usada nas sessões de tortura infligidas a pessoas como o ex-deputado federal Rubens Paiva e outros ‘interrogados’ pelos militares. Depoimentos de pessoas que passaram horas sob o terror psicológico e físico do DOI-CODI narraram sessões de tortura ao som de Apesar de Você e Jesus Cristo, ecoando alto por todo o prédio. Foi uma forma de usarem nossa própria força contra nós.
Composta em 1969 por Roberto e Erasmo Carlos, mas só lançada no ano seguinte, no álbum Roberto Carlos (1970), Jesus Cristo é sucesso de rádio em todo o Brasil até os dias de hoje. No ano de seu lançamento, a música foi rapidamente aceita pelo povo latino-americano de países como Argentina, Uruguai e Chile, inclusive fazendo-se ouvir por todo o país, em pleno ápice da crise do governo de Salvador Allende.
A música foi a primeira canção explicitamente religiosa de Roberto, inspirada em outras homenagens e na música gospel negra americana, além de pertencer ao ambiente de movimentação em prol das liberdades de expressão que permeavam o mundo. O apego popular pela música foi imediato. E talvez nunca saibamos realmente por qual motivo funcionários do DOI-CODI utilizavam essa música como trilha de longas sessões de tortura. Será que era uma maneira de colocar na cabeça da pessoa ‘interrogada’ uma esperança de sair daquela situação? Causar algum tipo de ilusão de que tudo iria ficar bem? Ou será que desejavam ver as vítimas pedirem em orações a Deus por suas vidas?
Ambas as canções estiveram nas bocas daqueles que gritaram alto nas ruas por liberdade nos anos finais da ditadura, assim como marcaram presença onde milhares de pessoas cantavam juntas contra a ilegalidade e iniquidade daquele sistema em seu tempo áureo. Estejamos atentos para resolver os problemas que permanecem, da ditadura que ‘ainda está aqui’, manifesta nas mortes ocorridas nos bailes funk e nas balas perdidas que insistem em encontrar corpos negros que gingam e se vestem de acordo com a cultura musical periférica à qual pertencem.
Diego Jandira é violonista, cientista social graduado pela Unifesp e criador do projeto Violão Negro Brasileiro.