Quando as leis não bastam: o encarceramento de grávidas no Brasil
Em Lírios não nascem da lei, Fabiana Leite retrata uma das maiores brechas do sistema carcerário brasileiro, que apenas ganhou visibilidade nos últimos meses com a repercussão na mídia de casos degradantes e com a decisão do STF de conceder habeas corpus coletivo às mulheres nessa situação
“Eu não sei fazer isso.” Desconcertada, Ana Carolina tenta amamentar pela primeira vez seu bebê recém-nascido. Ninguém da família como acompanhante, são as enfermeiras e o médico que a tranquilizam e dão suporte. Corta para outra câmera: duas agentes penitenciárias, armadas, observam a cena de um canto do quarto.
Ana Carolina é uma das personagens do longa Lírios não nascem da lei, da cineasta mineira Fabiana Leite. O documentário foi um dos destaques da sexta edição da Mostra Tiradentes | SP, norteada pela temática Chamado Realista. Durante dois anos, Fabiana esteve em presídios de Belo Horizonte, Vespasiano e Mariana e conheceu as dificuldades vivenciadas por presidiárias grávidas e mães de crianças de colo encarceradas pelo Estado.
A maior parte das gravações foi feita no Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade (CRGPL), em Vespasiano, e as quatro personagens acompanhadas – Ana Carolina, Liliane, Dayane e Marcela – passaram por lá durante a gestação, antes de serem encaminhadas a presídios regulares. O Centro é um dos mais reconhecidos da América Latina.
Embora à primeira vista o ambiente possa parecer estruturado, ao longo do filme as incoerências vão sendo evidenciadas. Em determinado momento, Liliane se queixa de que a equipe apenas filmava as “partes boas”. Segundo ela, há pouco tempo mais de vinte crianças haviam adoecido no centro e uma chegara a falecer. Conta ainda que a história foi abafada pelas autoridades, e que as presidiárias têm pouca voz para denunciar essa e outras situações vivenciadas lá dentro.
Fabiana revela que, de fato, a equipe sempre era convidada a filmar os momentos festivos e que havia diversas outras restrições impostas pelos presídios quanto aos lugares e pessoas autorizadas a aparecer. Foi nas pequenas brechas, como as palavras das próprias mulheres, que a diretora conseguiu lançar luz sobre a maior parte dos problemas.
O silenciamento denunciado por Liliane é latente no filme. Segundo Fabiana, este é especialmente evidente no processo de separação de mãe e filho, quando a opinião das detentas é desconsiderada e cabe ao juiz, por discricionariedade, determinar se a família tem condições de tomar a guarda provisória ou se a criança deve ser encaminhada para um abrigo.
Diversas entidades que defendem o fim da prisão de mulheres grávidas apontam o papel fundamental que elas desempenham nos núcleos familiares e na criação das crianças. No documentário Nascer nas prisões, produzido pela Fiocruz, a psicóloga Vilma Diuana aponta para o diferente impacto que representa nas famílias a prisão do pai ou da mãe. Segundo ela, enquanto na prisão dos homens as mulheres continuam zelando pela manutenção da casa, o contrário não acontece. O mesmo estudo da Fiocruz que deu origem ao documentário também aponta que cerca de 31% das mulheres presas no Brasil são chefes de família. Algumas outras semelhanças que não podem ser mensuradas em dados estatísticos foram captadas pelas lentes de Fabiana.
Entre os fatores mais subjetivos que influenciaram direta ou indiretamente na prisão das mulheres entrevistadas, a presença da figura masculina em suas trajetórias – que se deu quase sempre com recortes violentos ou de iniciação ao crime – evidencia-se ao longo do filme como um dos mais principais elementos.
O relato sobre as regalias que teve na infância e os cuidados que recebia dos pais de repente é interrompido. “Eu não quero falar sobre isso”, declara Liliane, para logo em seguida voltar atrás e emendar na história do trauma vivenciado logo quando completara 13 anos. Ela conta que foi estuprada pelo tio, irmão de sua mãe, e a violência resultou na sua primeira gestação. As fotos da filha, agora com 14 anos, enfeitam a parede ao lado da cama.
Já na vida de Ana Carolina, a violência apareceu na figura do pai, que, segundo ela, espancava a mãe e ensinou as filhas desde cedo a se drogarem. “É culpa dele a gente estar assim hoje”, conta ao lado da irmã, também presa.
Em determinado momento, quando conversam em roda, as detentas relembram do status conferido às mulheres dos traficantes. “É como se fosse a primeira-dama.” Dentro do tráfico, ocupavam posições coadjuvantes, faziam apenas pequenas entregas porque, segundo elas, dificilmente a polícia abordava mulheres. Nunca realizavam as tarefas de comando. Não porque não tinham capacidade de fazer o que os homens faziam, mas porque “ficava feio e as pessoas comentavam”. Todas concordam quando alguma delas diz que na cadeia, hoje, só tem “laranja e forjado”.
Consta no último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) que mais da metade da população feminina carcerária do país (62%) foi enquadrada em crimes ligados ao tráfico de drogas. Uma das maiores problemáticas envolvendo prisões dessa natureza é que não há, no Brasil, uma distinção clara entre traficantes e usuários e esta fica à mercê de interpretação judicial. Um dos casos de maior repercussão neste ano foi a prisão de Jessica Monteiro, grávida de nove meses e acusada de tráfico de drogas após ser presa com 90 gramas de maconha. De acordo com ela, a droga era para consumo próprio.
Um dia depois de ser apreendida, Jéssica entrou em trabalho de parto, e no mesmo dia, o juiz decretou sua prisão preventiva até o julgamento. Ela foi levada para um hospital e mesmo depois de dar à luz, retornou com o filho para a cela de 2 metros quadrados, com apenas um colchão de espuma no chão e algumas mantas. Sua história ecoa a de grande parte das presas grávidas no Brasil: pouca ou nenhuma assistência, expostas a situações emocionais e físicas degradantes.
Acredita-se que o alcance deste episódio tenha influenciado na decisão da Segunda Turma do STF, em fevereiro deste ano, de conceder habeas corpus coletivo a todas as grávidas e mães de crianças de até 12 anos presas provisoriamente. Na prática, desde o Marco Legal da Primeira Infância, aprovado em 2016, existe a possibilidade de substituir a prisão preventiva por domiciliar nestes casos, mas raramente o recurso era aplicado. Em março do ano passado, foi concedido um habeas corpus para a ex-primeira dama do Rio, Adriana Ancelmo, presa provisoriamente e mãe de dois filhos, um de 14 e outro de 11 anos, para que cumprisse prisão domiciliar. Segundo Fabiana, “há nestas decisões judiciais um recorte classista e racista”. O relatório do Infopen mostra que 64% da população carcerária brasileira é negra e, entre as mães entrevistadas pela Fiocruz, as negras e pardas somam 70%.
Embora a decisão do STF represente um avanço, para a diretora de Lírios não nascem da lei é preciso mais do que isso. Ela, que atua em uma linha reformista, acredita que as penas alternativas representam um resultado muito mais eficaz que o encarceramento, embora o ideário brasileiro ainda as associe com impunidade, reflexo de uma cultura do encarceramento. Cultura essa que, segundo ela, perpassa inclusive diversos movimentos sociais – como o feminista, por exemplo, quando o assunto é violência contra a mulher. “Não podemos fazer do preso uma vítima do sistema carcerário, tem que trabalhar na responsabilização pelo crime”.
* Taís Ilhéu é jornalista