Quando as palavras incineram a verdade
Se a floresta continua sendo destruída, segundo os dados do Instituto de Pesquisas Espaciais, quem está comprando os produtos das regiões destruídas depois de todos esses anos?
Enquanto um discurso abre a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o fogo consome a vida em parte do território brasileiro. Tal qual a engrenagem de um moinho que ignora o que está sendo fragmentado, as palavras de Jair Bolsonaro têm a missão de deslizar na funcionalidade ideológica.
Seu estilo é capaz de insuflar a violência, a censura e a discriminação, mas ele acredita estar certo e aquilo que o atrapalha são as adversidades interatuantes oriundas das mídias contrárias ao seu governo. Para seus seguidores, a verdade e a mentira estão nas concepções e não nos fatos; acredita-se e desacredita-se conforme os princípios vigentes.
Por qual razão a mentira prevalece diante da evidência?
Sem a intensão de esgotar as respostas, algumas perspectivas podem aguçar essa realidade.
Uma simples aferição nas redes sociais comprova que o delírio toma conta e se ramifica. Porém, entrar isoladamente nesse cenário e digladiar possui um efeito muito reduzido, é uma bobagem inserir coerência numa zona de ação onde os aduladores navegam com relativa facilidade, ademais, isso não tem impedido o governo de tomar decisões inconsequentes.

Contudo, a ação coletiva de produzir muita informação coerente e contestar os delírios pode vencer a retórica hostil das redes sociais. Também é incontestável que as informações discordantes e consistentes podem debilitar a mentira, seja nas redes ou fora delas. Mas a simetria entre ser e agir tem sido um desafio adicional, especialmente para muitos políticos. Se levarmos em conta os que apoiaram Bolsonaro e que agora se colocam como opositores, é possível observar bem mais as reações de traídos do que os avanços cognitivos que os levariam a compreender e a resolver os problemas que se multiplicam; meramente lamuriam.
Nessa rivalidade dicotômica sobre verdade e mentira, basta analisar o que o presidente disse sobre os incêndios e comparar com os inúmeros dados disponíveis sobre as áreas devastadas. Depois, para identificar o poder de cada mensagem, tente observar qual prevalecerá na população: se a mentira vencer, ela será denominada como verdade; talvez até tentem ensinar nas escolas.
Do mesmo modo, é preciso refletir sobre as quietudes, pois, ao mesmo tempo em que os governistas ignoram as queimadas, uma grande parte das empresas e dos países consumidores do agronegócio dessas regiões nada manifesta ou, quando fazem, medem ‘cirurgicamente’ qualquer declaração.
Para ilustrar, vamos recordar a matéria da Folha de S. Paulo, de julho de 2009, que na ocasião destacava as decisões de ‘algumas empresas em suspender a compra de carnes de onze frigoríficos apontados pelo Ministério Público Federal do Pará como comercializadores de gado criado em área de devastação da Amazônia’.
Então, se a floresta continua sendo destruída, segundo os dados do Instituto de Pesquisas Espaciais, quem está comprando os produtos das regiões destruídas depois de todos esses anos? Para onde vai tudo o que é produzido, seja da ofensiva do agronegócio em terras “protegidas” ou da mineração ilegal?
As empresas e países consumidores são protagonistas nesse labirinto, e deveriam expressar suas opiniões e decisões de maneira efetiva, sobretudo quando inserem os termos ‘defensores do meio ambiente’ em seus websites ou apregoam a responsabilidade socioambiental como algo determinante em sua cultura. Aqueles que propagam valores e nada fazem são os grandes contribuintes do presidente e de sua equipe.
Por fim, a mídia que Bolsonaro tanto critica é a mesma que deve ser apoiada a manter a missão de publicar dados e fatos. Nunca é tarde para lembrar que o deleite da tirania é ver a população ‘apenas esperar’ por tempos melhores.
Renato Dias Baptista é doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor associado da Universidade Estadual Paulista, UNESP.