Quando estudantes e operários confraternizavam
O que resta de Maio de 68? Pelas lembranças difusas desta geração é possível encontrar o extraordinário e prazeroso encontro de operários e estudantes que o tornou possível, contagiando o resto do mundoKristin Ross
Os relatos que enfatizam a austeridade da vida de militância apagam totalmente um aspecto que, entretanto, surge nitidamente como uma das lembranças mais marcantes na maioria das narrativas de ativistas de maio de 68: o prazer que, às vezes, podia emergir da simples abolição das fronteiras sociais numa sociedade profundamente compartimentalizada, como a francesa, em que a comunicação – e, a fortiori, a comunicação subversiva – não transcorria facilmente entre um setor e outro. Durante as semanas da insurreição de 68, ocorreram mudanças, entre as quais a multiplicação do que Jean-Franklin Narot1 chama o “encontro”; não se tratava de uma reunião de alguma sociedade secreta reservada aos iniciados e, sim, do resultado de contatos e relações entre pessoas que, devido às diferenças do status social, cultural ou profissional, eram levadas a nunca se encontrar. Pequenos pormenores, à primeira vista anódinos, mas que davam a impressão de que os intermediários e a compartimentalização social tinham simplesmente ido para o espaço.
A narrativa de Martine Storti2 não deixa de mencionar o lado monótono da vida militante que, para ela, se cristaliza na técnica, atualmente obsoleta, de mimeografar; muito mais tarde (ela também escreveu no final da década de 80), a recordação dessa experiência traz à tona toda a riqueza sensorial e emocional do dia em que ela descobre um estêncil não usado: “E, dobrada no meio dos panfletos, uma relíquia, um estêncil virgem que deve ter uns trinta anos. Conservou o cheiro, aquele cheiro de tinta, de papel carbono, um cheiro muito particular, ácido e adocicado, apimentado e açucarado, o cheiro das horas, dos dias, das noites passadas a rodar panfletos no mimeógrafo, com aquela obsessão pela catástrofe, aquele medo de chegar a hora em que o estêncil se rasgaria porque se colocara tinta demais ou porque o mimeógrafo rodava muito rápido. Depois tentávamos, muitas vezes sem sucesso, tornar a colar os pedaços rasgados e rodar o mimeógrafo bem devagar, manualmente, torcíamos para que o estêncil agüentasse firme até o fim e tínhamos que nos resignar a redatilografar o texto num novo estêncil, com dois dedos, numa daquelas velhas máquinas.”
Se tratava do resultado de contatos e relações entre pessoas que, devido às diferenças do status social, cultural ou profissional, eram levadas a nunca se encontrar
Seu texto e os de outros militantes revelam múltiplos prazeres, relacionados com a transgressão física e social, mas também com a possibilidade de novas amizades ou cumplicidades. É um prazer, explica Storti, muito diferente da reivindicação ou do slogan revolucionário de maio (“Ter prazer sem restrições”), do qual ela desconfia, aliás – e muito particularmente – que tampouco seja um fim em si e que, no momento, nem aparece necessariamente como tal. O prazer de transgredir a compartimentalização, física ou social, é proporcional à duração da segregação social urbana daquela época; os diálogos que se estabeleciam, apesar dessa segregação, transmitiam um sentimento de transformação urgente, imediata, vivida não como uma recompensa futura, mas naquele instante.
Barreiras sociais superadas
Em suas recordações, de 1978, Robert Linhart3 escreve: “Há cerca de quinze anos, as fábricas eram um mundo fechado e tínhamos que caçar depoimentos”; outra militante, que trabalhou na linha de montagem numa fábrica, conta que antes de sua chegada e da de outros intelectuais, “os operários trabalhavam no centro de Paris e as fábricas pareciam ser muito longínquas, tão difíceis de atingir como a Argélia ou o Vietnã4 “. O próprio Jean-Pierre Thorn, que realizou o documentário Oser lutter, oser vaincre (Ousar lutar, ousar vencer), dedicado à violenta greve da fábrica de Flins, lembra-se de uma infância e adolescência marcadas por uma autêntica segregação social: “Até 1968, eu não tinha consciência do que eram as fábricas ou a classe operária. Naquela época, comecei a perceber um mundo impressionante que existia à nossa volta e que tinha o poder de levar o país à paralisia, suspendendo o trabalho. Nas portas das fábricas, havia bandeiras vermelhas. Eu tinha vinte anos de idade e aquilo foi um choque. 5 ” Claire, que lecionava num colégio parisiense em 1968, expressaria, dez anos depois, a emoção que sentira ao ver as barreiras sociais, na época consideradas intransponíveis, finalmente superadas. “Foi a primeira vez que me encontrei com operários. Nunca tinha visto um. Não é gozação, nem no metrô. […] Nunca tinha visto uma fábrica. […] E, de repente, eu vivia com operários, só trabalhava com operários – tantos os caras mais velhos, do partido, quanto imigrantes, mais jovens. As recordações, as únicas verdadeiras recordações que tenho de maio de 68 não são as manifestações, mas entre outras, são as reuniões, duas vezes por semana, nas casas dos operários. As fábricas estavam em greve, ocupadas, e nos reuníamos para ?estudar teoria?. E estudávamos teoria, como era possível fazê-lo em 68. […] Sentia-me muito bem. E acreditava que a coisa iria durar. Não passava por minha cabeça aquilo que hoje sou obrigada a constatar, que nunca mais irei ver operários outra vez […]. Os piquetes de greve da fábrica sempre nos recebiam sem problemas, convidavam-nos a entrar e visitar as salas de trabalho6 …”
O prazer de deixar tudo para trás, de se livrar de esperanças vãs e do peso morto dos costumes que amarram as pessoas a um determinado lugar e a um determinado papel
Outro militante lembra encontros semelhantes: “Nos tempos da militância, eu entrava em contato com um monte de pessoas socialmente diferentes […], existia um calor humano entre nós. Quando você é militante, há uma coisa que faz esquecer todo o resto, que é você estar ali, às 4 horas da madrugada, um lindo dia nascendo, por um motivo desconhecido das outras pessoas, a felicidade de estar num lugar em que não se devia estar, aquela espécie de cumplicidade7.”
Movimentos de transgressão
Outro prazer, talvez mais secundário mas também muito verdadeiro, acompanha esses movimentos de transgressão que passam para o outro lado do “muro” das fronteiras sociais: o de deixar tudo para trás, de se livrar de esperanças vãs e do peso morto dos costumes que amarram as pessoas a um determinado lugar e a um determinado papel. Como salientam Jacques e Danielle Rancière8 , trata-se de um prazer freqüentemente vivido em silêncio, segundo as descrições da vida de pobreza dos militantes pós-68 que “se misturavam com os trabalhadores”: “O intelectual tinha que extirpar de sua personalidade tudo o que, por suas palavras ou por seu comportamento, pudesse lembrar suas origens, tudo o que, em seus hábitos, o separava do povo. Era um ideal contraditório que um olhar retrospectivo demasiado simplista assimilava às figuras do escotismo e da ascese. Naquela época, a avaliação dos prazeres e dos castigos não era deficitária. Deixar aos velhos partidos e aos jovens carreiristas a tarefa de co-gerir as universidades e retomar o marxismo em suas últimas cores epistemológicas ou semiológicas para penetrar na realidade da fábrica ou na amizade dos cafés ou albergues de imigrantes nada tinha de muito lúgubre (isso se sentiria na hora da readaptação). Servir o povo não passava, de certa maneira, de outro nome para a aversão concreta pelo prosseguimento, tanto do lado dos estudantes quanto dos professores, dos exercícios universitários. Portanto, a transformação do intelectual podia ser vivida como uma autêntica libertação.”
Em alguns casos, como ocorreu no início de maio de 68, até se descobria que a distância que separava os operários dos estudantes não era assim tão grande
Se o prazer foi saboreado a posteriori, sentido de maneira indireta e, principalmente, no momento difícil da retomada e da volta a seus próprios costumes, ou a seu próprio meio, nem por isso foi menos intenso. Entre os depoimentos de ativistas integrados à produção, intelectuais ou militantes que, às vezes, passaram anos trabalhando nas fábricas, encontram-se pouquíssimos elementos que sustentem o clichê miserabilista que descreve os militantes adotando o modo de vida dos operários – e até sofrendo de uma espécie de necessidade patológica de se tornarem, realmente, um deles. Também não se encontram vestígios do discurso mais utopista de Gilles Deleuze sobre o devir – o devir-animal, o devir-máquina, o devir-operário – concebido como um desejo de metamorfose. Pelo contrário, pois um desses militantes integrados salienta: “A única coisa que me interessava era encontrar operários que garantissem a continuidade do trabalho político. Definitivamente, não queria ocupar o lugar deles9 .” “Para nós, a integração à produção jamais foi uma medida de purificação; era uma medida política10 .” “Eu me sentia bem na fábrica; não tinha ido para lá para esquecer minha condição de intelectual, mas para fazer com que se conhecessem pessoas diferentes. Queria trabalhar a partir de dentro e, principalmente, não queria queimar a possibilidade de deixar a fábrica assim que chegasse11 .”
Em alguns casos, como ocorreu no início de maio, até se descobria que a distância que separava os operários dos estudantes não era assim tão grande: “Era maio de 68. O mundo estudantil voava, após alguns meses passados na fábrica. Depois da manifestação de 13 de maio, a Renault entrou em greve; no dia 15 ou 16, foi decidida a ocupação de nossa fábrica. […] Foi uma pequena guerra interna que durou seis semanas… Sentia-me perfeitamente à vontade porque naquela época os operários se ?intelectualizavam?; encontrávamo-nos a meio-caminho de nossos respectivos trajetos. Os jovens da fábrica iam para as barricadas e para a Sorbonne12.”
Comunicação entre dois mundos
Os estudantes aceleravam o processo, empurrando-o até o extremo. Mas também convocavam os trabalhadores, que ainda estavam ausentes
Talvez Daniel Bensaïd13 tenha razão quando sugere que toda aquela parafernália simbólica do início de maio (manifestações pseudo-insurrecionais, florestas de bandeiras negras, barricadas, ocupações de campi universitários), claramente inspirada na tradição da luta operária, deve ser compreendida como um conjunto semântico, uma linguagem pela qual o movimento estudantil procurava se dirigir aos operários sem passar pelo intermediário das lideranças burocráticas, criar uma comunicação entre dois mundos até então isolados um do outro e alcançar a classe operária por meio de um longo processo de círculos concêntricos. Até uma palavra de ordem como “CRS=SS14 ” – repetidamente gritada pelos estudantes desde o dia 3 de maio, quando apenas simples policiais haviam sido convocados a ir para a Sorbonne e não havia sombra de qualquer agente da CRS – poderia ser interpretada como uma ação conspiratória. De certa maneira, os estudantes pintavam um quadro mais sombrio, já que a CRS ainda não se encontrava ali, e aceleravam o processo, empurrando-o até o extremo. Mas também convocavam os trabalhadores, que ainda estavam ausentes, e para fazê-lo, tomavam emprestada sua linguagem específica. Na realidade, aquela palavra de ordem não fora inventada pelos estudantes. Fora utilizada pela primeira vez em 1947-1948 pelos mineiros em greve, logo após a criação da CRS pelo ministro do Interior – que era socialista – que apelara para novas forças de segurança para pôr fim à greve.
Em Censier, o movimento se fazia em sentido contrário: não eram os estudantes que procuravam os operários e, sim, o oposto
No início da greve geral, em meados de maio, o Comitê de Ação Trabalhadores-Estudantes da região de Censier assumiu a tarefa específica de criar vínculos entre a universidade e as fábricas. Censier ficava um pouco fora de foco dos objetivos mais comuns dos jornalistas, que se interessavam mais pelo que ocorria na Sorbonne e no teatro Odéon, os grandes anfiteatros do delírio verbal. Os documentos elaborados pelo Comitê de Ação nos meses de maio e junho confirmam a existência de uma cooperação entre jovens estudantes e operários durante a greve. Em Censier, entretanto, o movimento se fazia em sentido contrário: não eram os estudantes que procuravam os operários e, sim, o oposto. Na realidade, eles se sentiam atraídos pelas enormes possibilidades materiais oferecidas pelos locais: salas permanentemente abertas, mimeógrafos, voluntários constantemente disponíveis para contatos, trabalhos de gráfica, debates etc. Era um espaço diferente daquele da vida sindical nas fábricas – em que os operários enfrentavam proibições inexplicáveis, reservas, controle, vigilância e todo tipo de manobras. Devido às tarefas de redação de relatórios, escolha dos porta-vozes e fornecimento de ajuda material aos grevistas, Censier tornou-se um centro de coordenação e de comunicação cuja eficiência chegou a ser concreta. Sua existência desabona qualquer tentativa de denegação irônica da mitologia operária – freqüentemente atribuída a maio de 68 -, assim como desmente a opinião segundo a qual a greve se desenvolveu de maneira autônoma, sem qualquer vínculo com o movimento estudantil, e que sustenta que sua simultaneidade foi mera coincidência.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Psicanalista, autor de “Mai 68 raconté aux enfants. Contribution à la critique de l?inintelligence organisée”, Le Débat nº 51, setembro-novembro de 1988.
2 – Militante em 1968 e, posteriormente, jornalista do Libération, Martine Storti é autora de Un chagrin politique: de Mai 68 aux années 80, ed. L?Harmattan, Paris, 1996, p. 52.
3 – “Evolution du procès de travail et lutte de classe”, Critique communiste, 1978. A partir de sua experiência de integração à produção numa fábrica, Robert Linhart, dirigente maoísta, escreveu o livro L?Etabli (O Integrado), Editions de Minuit, Paris, 1978.
4 – Lenny Chomienne, citada por Virginie Linhart em Volontaires pour l?usine, Vies d?établis, 1967-1977, ed. Seuil, Paris, 1994, p. 102.
5 – Jean-Pierre Thorn, citado por Virginie Linhart em Volontaires pour l?usine, Vies d?établis, 1967-1977, p. 190-191.
6 – Claire, professora, citada pelo jornal Libération, 19 de maio de 1978.
7 – Militante anônimo citado por Bruno Giorgini em Que sont mes amis devenus? (Mai 68-été 78, dix ans après), ed. Savelli, Paris, 1978, p. 50.
8 – Ler, de Danielle e Jacques Rancière (militantes maoístas e, posteriormente, filósofos), “La légende des philosophes (les intellectuels de la traversée du gauchisme)”, Révoltes logiques, 1978.
9 – Nicole Linhart, citada por Virginie Linhart em Volontaires pour l?usine, Vies d?établis, 1967-1977, p. 119.
10 – Georges, operário-engenheiro, citado por Michèle Manceaux em Les Maos de France, ed. Gallimard, Paris, 1972, p.63.
11 – Yves Cohen, citado por Virginie Linhart em Volontaires pour l?usine, Vies d?éta
Kristin Ross é professora de literatura comparada na Universidade de Nova York. Autora do livro L´Imaginaire de la Comuna, La Fabrique, Paris, 2015.