Quando os Estados Unidos provocam um confronto
Barrar as ambições nucleares de Teerã aparece como o objetivo imediato de Washington, mas a principal intenção da estratégia regional dos Estados Unidos permanece, a longo prazo, o mesmo de1979: derrubar a República Islâmica do IrãWalid Charara
O balanço do desastre da ocupação americana do Iraque não parece afetar, por enquanto, a determinação da administração Bush em perseguir seu grande desígnio: a remodelagem do Oriente Médio1. Nesse quadro, a palavra de ordem atual consiste em apontar o Irã como a “nova ameaça”. Os “atos de acusação” dirigidos contra Teerã são praticamente os mesmos formulados há dois anos contra o regime de Saddan Hussein: fabricação de armas de destruição em massa, apoio ao terrorismo, laços com a Al Qaida.
Diferentemente do antigo regime iraquiano, o Irã desenvolveu efetivamente um programa nuclear, que é evocado, tanto quanto o seu eventual uso para fins militares, como provas das intenções belicosas de Teerã. A conselheira de Bush para a segurança e nova secretária de Estado dos Estados Unidos, Condolezza Rice previra, há muito tempo, que Washington faria tudo para forçar o Irã a abandonar seu programa nuclear. Os dirigentes israelenses também combatem esse programa, qualificado por Meïr Dagan, o chefe do Mossad, como a “maior ameaça à existência de Israel desde sua criação”. O Estado-maior israelense insistiu inclusive, no início de 2003, antes da invasão do Iraque, para que o Irã fosse designado alvo prioritário. Desde junho de 2002, a revista britânica Jane?s, especializada sobre as questões militares, havia anunciado que Israel elaborara um plano de ataque “preventivo” contra as infra-estruturas de pesquisa e de desenvolvimento nuclear no Irã. Sua execução depende de um sinal verde Washington ainda não concedido.
Hoje, o contexto mudou. Se barrar as ambições nucleares de Teerã aparece como o objetivo imediato de Washington, a principal intenção da estratégia regional dos Estados Unidos permanece a longo prazo, o mesmo de1979: derrubar a República Islâmica do Irã.
A hostilidade em relação a Teerã é mais ou menos exacerbada segundo o contexto da época. É uma das constantes da política estrangeira de Washington, há um quarto de século, apesar da modificação sensível da atitude iraniana. Efetivamente, desde o início da década de 1990, o Irã acelerou a normalização das suas relações na região – especialmente com a Arábia Saudita – e reforçou seus laços políticos, econômicos e comerciais com a União Européia, a Rússia, a China e a Índia. Vários especialistas constataram esses avanços: um deles, por exemplo, escreveu: “O Irã, outro alvo obsessivo, é um país estrategicamente importante porém claramente engajado em um processo de pacificação interior e exterior2”
Isolamento de Teerã
Diferente do antigo regime iraquiano, o Irã desenvolveu um programa nuclear, que é evocado como provas de suas intenções belicosas
É insólito que a República Islâmica do Irã, em algumas questões de política externa, se aproximasse das posições defendidas pelos Estado Unidos e não hesitasse em transgredir as linhas vermelhas outrora consideradas intransponíveis. Assim, em 2001, Teerã apoiou Washington durante a guerra americana contra o Afeganistão. Além disso, o Irã teve, em 2003, uma atitude que poderia ser qualificada de “cooperativa” ao ativar algumas organizações xiitas iraquianas para apoiar o projeto americano de invasão ao Iraque. Essas aberturas, contudo, não modificaram de maneira significativa a hostilidade anti-iraniana dos Estados Unidos. As principais personalidades da corrente neo-conservadora e o secretário de defesa, Donald Rumsfeld, multiplicaram suas declarações, durante e após a invasão ao Iraque, assegurando que o “contágio democrático” rapidamente ganharia o Irã e provocaria a queda do regime.
Para acelerar a realização desse cenário, os Estados Unidos trabalham, atualmente, para completar o cerco ao Irã através da presença militar nos Estados vizinhos. Eles também se esforçam para conter a influência da República islâmica além de suas fronteiras, trabalham para o seu isolamento político e diplomático e mantêm contra Teerã uma estratégia de desestabilização direta e indireta.
Além da roupagem ideológica que constitui o novo “messianismo democrático” duas razões maiores explicam o acirramento da administração Bush. A primeira diz respeito à posição estratégica do Irã que, graças a suas potencialidades humanas (70 milhões de habitantes) e econômicas, a sua independência e a sua cooperação militar com a Rússia e a China, reforça seu status de potência regional média e aparece como a última defesa contra o duradouro domínio dos Estados Unidos sobre o Oriente Médio. Se o Irã chegar a ser potência nuclear, se tornará parceiro cortejado pelos futuros “concorrentes do mesmo nível” que o dos Estados Unidos, segundo expressão em vigor nos relatórios do Pentágono, ou seja, a Europa, a China, a Índia ou a Rússia.
Último aliado anti-israelense
Na década de 1990, o Irã acelerou a normalização das suas relações na região e reforçou laços políticos, econômicos e comerciais com a União Européia, a Rússia, a China e a Índia
Além disso, Teerã continua a ser o último aliado regional de atores estatais e não estatais em constante conflito com Israel, como o Líbano, a Síria, o Hezbollah e alguns organizações militares palestinas. Sem apoio iraniano, esses atores, privados de qualquer outro apoio regional ou internacional, estariam enfraquecidos diante da superioridade militar de Israel.
O atual contexto de escalada do perigo, assim como a vontade de “santuarizar” seu território contra eventuais ataques americanos ou israelenses, encoraja o Irã a ter a arma atômica. Segundo alguns analistas ela teria apenas uma função dissuasiva: “Tais armas, escreve Michael Mann, não são ofensivas. Qualquer um que ousar lançar suas ogivas sobre os Estados Unidos provocará sua própria destruição. Por isso é impossível que essas [armas] constituam uma ameaça para a América. Também não é possível justificar sua utilização contra um Estado vizinho invocando motivos que causam, comumente, as guerras uma vez que as conseqüências radioativas afetam igualmente as duas partes presentes. Contudo, qualquer país que tema os Estados Unidos, ou algum vizinho mais poderoso, deseja ardentemente adquirir armas nucleares em nome da legítima defesa3.”
Uma convergência estratégica entre os Estados Unidos e a União Européia contra a entrada de Teerã no clube nuclear delineou-se de modo a fazer lembrar a que foi realizada contra o Iraque depois da invasão do Kuait, em 1990. Em ambos os casos, tratava-se de evitar a ascensão de um pólo de potência muçulmana, implicado no conflito com Israel e capaz de reequilibrar parcialmente uma co-relação de forças regional, muito favorável a essa última.
Apesar dessa convergência, nítidas divergências persistem entre a Europa e a América a respeito dos objetivos a serem atingidos.Os europeus se satisfariam com a renúncia às ambições nucleares de caráter militar e, em troca, estariam dispostos a normalizar suas relações com Teerã; já os Estados Unidos consideram que tal recuo deveria reforçar a determinação da “comunidade internacional” em agir para acelerar a queda do regime iraniano.
Três frentes estratégicas
O atual contexto de perigo, assim como a vontade de “santuarizar” seu território contra eventuais ataques americanos ou israelenses, encoraja o Irã a ter a arma atômica
Delineiam-se duas opções diante das ambições nucleares do Irã: ou o uso da força para destruir as instalações nucleares, ou a intensificação de pressões diplomáticas que levem ao recuo de Teerã. No que concerne à primeira opção, Tel-Aviv e Washington não hesitariam em destruir instalações nucleares iranianas (do mesmo modo que a aviação israelense bombardeou o reator nuclear Osirak, em 1980), caso essa iniciativa não comportasse graves riscos. Dois obstáculos, de ordem técnica e político-militar tornam pouco provável o recurso à força.
O obstáculo técnico deve-se ao fato de que os iranianos dispersaram suas instalações, o que diminui as chances de sucesso de qualquer ação que vise a destruí-los em sua totalidade. No plano político-militar, o Irã não hesitará, sem dúvida, em responder a uma agressão israelense ou americana. Seja a partir de seu território, com seus mísseis de longo alcance que visarão o território israelense, seja incitando seu aliado libanês, o Hezbollah, a fazer o mesmo a partir do sul do Líbano, o que abriria o caminho da regionalização do confronto implicando, no mínimo, o Líbano e a Síria. Além de tudo, Teerã responderia por intermédio de seus inúmeros aliados xiitas no Iraque e no Afeganistão contra as tropas americanas presentes nos dois países.
Essas considerações impõem a preferência pela via das pressões político-diplomáticas e econômicas. No entanto, consumar o isolamento de Teerã privando-o de aliados regionais é uma condição indispensável para torná-lo mais vulnerável às pressões e para poder, eventualmente, recorrer à opção militar. Os Estados Unidos desenvolveram, para isso, uma estratégia em três frentes. Inicialmente, a frente sírio-libanesa onde, em concordância com a França, multiplicam as pressões sobre Damasco. Elas foram renovadas com a votação da resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU pedindo a retirada do exército sírio do Líbano, o desarmamento dos Hezbollah libaneses e palestinos, e a instalação do exército libanês ao longo de toda a fronteira com Israel.
Consumar o isolamento de Teerã privando-o de aliados regionais é condição indispensável para torná-lo mais vulnerável às pressões e para poder recorrer à opção militar
Essa resolução é como uma mensagem codificada ordenando a Síria a desfazer sua aliança com o Irã e distanciar-se dos Hezbollah, aliados de Teerã, sob pena de Damasco ser obrigada a deixar o Líbano. A resolução 1559 tem, a princípio, uma função regional que permite compreender melhor o posicionamento inesperado da França nesse caso.
A intensidade das divergências franco-sírias sobre a questão libanesa, as relações especiais entre o presidente Jacques Chirac e o ex-primeiro ministro libanês Rafic Hariri (atualmente hostil à Síria) ou as disputas comerciais entre Damasco e Paris não podem, por si só, justificar a posição atual de Paris, que não tem coerência alguma com a política da França no Oriente Médio. Apenas sua comunhão com o ponto de vista de Washington sobre a necessidade de desfazer a aliança sírio-iraniana permite dar um sentido ao que se pode chamar de reviravolta.
Remodelação incendiária
A outra frente sobre a qual os Estados Unidos agem para conter a influência iraniana é o Iraque. A guerra conduzida desde abril de 2004, por forças anglo-americanas, contra os partidários do imã Maktada Al-Dadr não se deveu apenas à recusa desses últimos de acomodarem-se com a ocupação. Ela também foi motivada pela vontade dos Estados Unidos em neutralizar uma corrente fortemente ligada a Teerã. A atitude americana em relação a outras formações xiitas iraquianas, a Assembléia superior da revolução islâmica e o partido Daawa, ambos participantes do governo provisório de Iyad Alaoui, aliam uma política de cooptação de alguns setores e pressão contra elementos considerados como sendo pró-iranianos irredutíveis.
Se os Estados Unidos se obstinarem em procurar um confronto com Teerã, eles detonarão um conflito regional que pode incendiar todo o Oriente Médio
Além do mais, o estatuto de refugiado político no Iraque, que foi concedido aos 4000 membros dos moudjahidins do povo iraniano – classificados pelos Estados Unidos como uma organização “terrorista” – e as “revelações” desses últimos sobre os programas nucleares “secretos” de Teerã testemunham uma aproximação entre Washington e essa organização, e sua provável instrumentalização contra a revolução islâmica (como havia sido, antes da invasão do Iraque, o Congresso nacional iraquiano de Ahmed Chalabi).
A última frente é o Afeganistão. Com o pretexto de restaurar a autoridade do Estado diante dos senhores da guerra, os Estados Unidos encorajaram seu aliado Hamid Karzaï a tentar afastar o chefe histórico dos moudjahidins da região de Herat, Ismaïl Khan, um homem muito próximo do Irã. Teerã, contudo, dispõe de uma vasta rede de aliados entre as formações políticas afegãs que compõem a Aliança do Norte e será muito difícil para os Estados Unidos reduzir sua influência.
Ainda que o confronto direto entre Teerã e Washington tenha sido, até agora, evitado, o projeto de remodelação do Oriente Médio que a administração Bush pretende perseguir vai se chocar com os interesses dos Estados pivôs dessa região e, acabará por atingir o Irã