Quando teremos nosso luto?
Se nossa tarefa atual consiste em pensar um outro país possível, poderíamos começar analisando como o luto foi tratado durante o governo atual
Após a retomada exponencial das atividades presenciais, também o interesse teórico para com a pandemia caiu com a mesma velocidade. Se vimos em 2020 brotarem as mais diversas tentativas de apreender criticamente o que se passava conosco, parece-nos terem se esgotado os diagnósticos capazes de extrair força propulsora das contradições imanentes ao presente. Passados quase três anos, gostaria de retornar ao caso da pandemia para insistir na função política do luto para a mobilização de uma sociedade mais justa. Como veremos, a primeira figura do enlutamento consiste em não deixar esquecidos nossos traumas. Antes, trata-se de trazê-los à esfera pública para, através da elaboração de suas contradições, construirmos experiências coletivas que permitam a circulação de novos afetos.
A pandemia pode não ter nos fornecido a reinvenção do comunismo – no qual, gostaria de pensar, nem mesmo o ingênuo Žižek talvez tenha sido capaz de acreditar –, ou mesmo o solapamento estrutural da espoliação de nossas vidas. Vê-las ceifadas sob o capital continuará como ditame até mesmo durante estes anos, e isso parece ter-nos feito esquecer qualquer interesse teórico produtivo que sua experiência nos teria legado. Gostaria de insistir justamente no erro em esquecer à pandemia como experiência coletiva de sofrimento. Pois talvez estejamos por demais acostumados ao esquecimento. Talvez o preço a ser pago por não enfrentar aos traumas coletivos que nos constituíram enquanto sociedade seja muito caro, e não possam ser parcelados em eternas falsas conciliações.
Se nossa tarefa atual consiste em pensar um outro país possível, poderíamos começar analisando como o luto foi tratado durante o governo atual. Lembremos de início uma das poucas ocasiões nestes quatro anos nas quais fora decretado luto nacional, quando da morte de Olavo de Carvalho[1]. Talvez nem mesmo fosse necessário justapor exemplos — que fizéssemos menção ao até hoje não decretado estado de luto pelas perdas da pandemia na qual ainda nos encontramos, e que infelizmente ainda se proliferam por nosso território, tratadas pelo executivo com a mesma insipidez com a qual a elas antes reagira. Às vidas perdidas pelo absoluto descaso com a qual fora regida nossa lânguida reação ao cenário pandêmico, não nos espantaria ter sido reservada somente a troça do presidente e daqueles que o cercam; este teria sido o posicionamento esperado por uma forma de governamentalidade que nunca titubeara em expor seus requintes de desprezo pela vida do outro, e não seria agora que deveríamos esperar mudanças. Ainda assim, a pergunta permanece.
Vale lembrar como esta não seria uma estratégia nova, nem mesmo para o próprio governo Bolsonaro. Para nos mantermos em exemplos recentes, basta nos voltarmos ao pouco caso que até hoje se faz da memória das vítimas da ditadura militar, cujo imaginário poderia se sintetizar no mesmo presidente — então deputado federal — comparando aqueles que buscavam pelos ossos de militantes mortos à época com cachorros[2]. Pouco após assumir a presidência, Bolsonaro extinguiu os grupos de trabalho responsáveis por identificá-los[3]. Uma das estratégias basilares de governamentalidade ao entreguismo militar do qual ascende a fala do presidente seria seu caráter intervencionista nos processos nacionais de memória; o traje olavista que tomara nos últimos anos sendo uma das feições recentes de tais gestões da morte. Nos termos dessas, os brasileiros vitimados pela Covid-19 assemelham-se aos militantes responsáveis pela resistência à Ditadura. Parafraseando o presidente, nosso “mimimi” por enlutamento soaria tal qual o ressoo contemporâneo dos latidos dos que outrora teimaram em não esquecer as marcas da barbárie; e não nos espanta que sejam os mesmos os tratos para com suas mortes, uma busca incansável por fazer-lhes esquecidos e inelutáveis.
Este que sempre fora por muitos considerado um dos mais solitários processos afetivos; fruto dum acerto de contas cujos termos se dariam de forma tanto mais íntima e individual, e cuja elaboração seria puramente pessoal, o luto quase sempre fora tratado como o mais universal dos sofrimentos, e, portanto, pouco seria o interesse político que o circundaria. Seus rituais seriam tomados quase como que naturalizados. Da Tebas de Antígona à Nova Iorque do 11 de Setembro, presentes nas mais diversas culturas, com presumidas poucas modificações, eles uniriam ambos os lados de batalhas travadas, através de apelos à naturalização de processos familiares e fraternais de reconhecimento da dor do outro[4]. Suas imagens nos reuniriam num fluxo linear de elaboração afetiva que pouco ou nada teriam que ver com sua “oficialização”, por exemplo. Política e sofrimento psíquico teriam como que substâncias diferentes, seriam forjados em campos de luta díspares e alheios entre si.
Ainda assim — por que então o interesse em nossos lutos? Por que tomar-se com a pretensão de esconder corpos, de interditar nomes, de reatualizar processos de elaboração que seriam puramente individuais? Em sua forma mais curta, a boa resposta passa por insistirmos em como a interdição do reconhecimento do sofrimento sempre será uma das mais violentas e bem-acabadas formas de perpetuá-lo. Silenciar a dor do outro será como o duplo tácito da troça, na qual uma se alimentaria da outra, ambas estas vicissitudes da promoção da indiferença como afeto privilegiado da vida social. De forma um pouco mais elaborada, trata-se de percebermos como o luto não só nunca é um processo puramente individual, e sim tecido por redes de reconhecimento que os legitima, mas sobretudo uma das formas limítrofes de elaboração do sofrimento que até hoje resistira à inscrição patológica.
Se o luto nos une, não seria por sua disposição natural ao funcionamento psíquico, como se este inscrevesse-se como um dado cognitivo indiferente aos meios nos quais se exerce. Em verdade, ele representa a nós a força produtiva que pulsa na assunção de nossas fragilidades, na potência que se expressa como contraponto a todo sofrimento que resista à resignação patologizada[5]. Dito doutra maneira, alterar nossos processos de luto — reconhecê-los ou interditá-los, prescrevê-los ou proscrevê-los — seria como que tentar docilizar seu caráter produtivo, transformador, reduzindo-o à sua “má-infinitude” melancólica, à suposta fraqueza dos que não ousam dizerem-se livres às custas da morte do outro.
Mais ainda, como bem notara Judith Butler[6], a capacidade de nos enlutarmos inscreve no tecido social quais vidas serão reconhecidas como dignas de se viver, de quais corpos deveríamos sentir saudades e quais deverão ser renegados, quais dentre nós poderão portar predicações humanizadas e quais serão objetos de indiferença. Ao mobilizar o luto de seu ideólogo maior em detrimento aos mais de 627 mil brasileiros que se foram desde o início de 2020, Bolsonaro deixa muito claro como o luto nunca fora um processo unicamente individual, e sim entretecido por condições afetivas de quais vidas devem ser reconhecidas e quais devem cair no esquecimento. A maior homenagem do presidente à obra de Olavo de Carvalho não seria em verdade a oficialização de seu luto, mas o completo esquecimento e desdém com o qual foram e são tratados os vitimados pela pandemia e o sofrimento dos que deles se despediram. Essa seria a lição maior de Olavo em ato: a institucionalização da indiferença e da interdição do sofrimento alheio.
Trata-se agora de percebermos como imaginar um Brasil pós-Bolsonaro, e pós-olavista, não pode se findar na digna missão de vencê-lo nas urnas, mas sobretudo em reconfigurar as formações afetivas das quais seu discurso se precipita. Formações essas cujas bases deverão ser identificadas numa defesa intransigente duma liberdade estereotipadamente individualizada, numa foraclusão do rosto do Outro mobilizada por uma máxima indiferença, num rechaço às verdadeiras forças afetivas que nos unem, a saber, a fragilidade e o desamparo produtivos duma experiência transformadora de elaboração de nossas perdas. Agora, numa tentativa malograda de atualizar quais deveriam ser os nomes dignos de enlutamento, torna-se evidente como derrotá-lo deverá ser somente o primeiro passo em direção à inscrição e reconhecimento públicos de nosso sofrimento como pauta política fundamental. Dentre os dispositivos profiláticos para um país onde a indiferença já não mais possa se inscrever, encontra-se a necessidade de refazermos as relações com nossa memória coletiva, de assumirmos sua função na reconstrução da solidariedade diante da nossa e da dor dos outros.
Ao menos no caso brasileiro, uma das principais lições a serem extraídas deve ser insistir na força política da mobilização afetiva e memorial da vida. Em um país movido pela falsa conciliação, o esquecimento é mais uma das figuras que sustenta uma forma de vida falseada. Construir um Brasil diferente deve passar por erigir uma sociedade onde o sofrimento possa ser elaborado, e não somente recalcado. Nestes anos que se seguem, e com a aproximação de eleições que novamente nos permitem sonhar com o novo, a pandemia pode ser uma experiência na qual nossa dor possa tecer também outra relação para com a memória social. Que jamais esqueçamos, por exemplo, de Bolsonaro e do esquecimento que o nutre, e da importância dos afetos que a todo custo eles tentaram silenciar — eis a tarefa inicial de recolocação da função política da memória e do luto.
Pedro Pennycook é mestrando em filosofia pela UFPE.
[2] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cartaz-contra-desaparecidos-irrita-deputados,378159
[3] https://www.brasildefato.com.br/2019/04/22/bolsonaro-encerra-grupos-responsaveis-por-identificar-ossadas-de-vitimas-da-ditadura
[4] Recomendo o ensaio de Susan Sontag sobre o tema, Diante da dor dos outros, publicado em português pela Companhia das Letras (2003)
[5]https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/11/luto-prolongado-passa-ser-doenca-psiquiatrica-a-partir-de-2022.shtml
[6] Judith Butler, Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?, pela Civilização Brasileira (2015) e Vida precária: os poderes do luto e da violência, Editora Autêntica (2019).