Quando a TV quer sangrar a Rússia
A anexação da Crimeia, a guerra na Ucrânia e a difusão de notícias falsas transformaram Moscou em alvo regular, por vezes obsessivo, da mídia ocidental. Uma emissora pública voltada ao conhecimento e à cultura poderia ter resistido a isso. Porém, por meio de séries e documentários, o canal francês Arte parece obstinado a fazer a escolha inversa
Vinte episódios da série norueguesa Occupied já foram exibidos pelo canal público franco-alemão Arte. Ficção ou advertência? Moscou ocupa a Noruega (com a anuência da União Europeia) para garantir a entrega de gás e petróleo desse país. A União Europeia não tem um bom papel na série, mas é a Rússia que invade, manipula, ameaça, mata. Não se trata, no entanto, nos dizem, de “designar um vilão”. A embaixada russa em Oslo inclusive foi informada do projeto.
É duvidoso que o resultado lhe agrade. A série é angustiante, o paralelo entre russos e nazistas (que, eles sim, ocuparam a Noruega) é fortemente sugerido, já que o primeiro-ministro norueguês, que colabora com Moscou, é comparado a Vidkun Quisling e a Philippe Pétain (que governaram noruegueses e franceses sob ocupação nazista). Quando a segunda temporada, que acabou de ser difundida, foi concebida, a anexação da Crimeia tinha acabado de acontecer. “Estávamos em paralelo com a realidade”, triunfavam as produtoras.
A Arte também poderia ter desenvolvido um “paralelo com a realidade” colocando em cena a China e uma ilha do Pacífico, os Estados Unidos e Cuba, a França e a República Centro-Africana, Israel e a Palestina. Mas os tempos que correm, de uma nova guerra fria entre Washington e Moscou, sugerem que isso seria menos cômodo e que a Rússia constitui o culpado ideal para esse tipo de divertimento.
Uma suspeita confirmada pela edição do programa Thema de 16 de janeiro de 2018. E não na ficção, mas na história recente e flamejante. Um ano depois da eleição de Donald Trump, a Arte exibiu um documentário norte-americano intitulado, em francês, Poutine contre les USA [Putin contra os EUA] (nos Estados Unidos, ele se chamava A vingança de Putin). Ele daria “pela primeira vez a palavra a antigos membros da equipe de Barack Obama, a membros da CIA”, conforme anunciado triunfalmente pela apresentadora da Arte, encantada com tal esforço de equilíbrio e exaustividade. A trama se resumia a uma ideia. Em 2016, no momento da eleição norte-americana, “Putin teve finalmente sua vingança, que deve apagar os enfrentamentos de toda uma vida”. Uma “luta épica” aconteceu então “entre o dirigente russo e a democracia norte-americana”. O canal público russo RT foi reprovado por seu maniqueísmo e sua tendência à manipulação. Mas nessa noite, sobre esses dois planos, a Arte ganhou da RT…
“Nossa história começa em 31 de dezembro de 1999”, dia em que Boris Iéltsin transmitiu seus poderes a Putin, “seu obscuro primeiro-ministro, um antigo oficial da KGB”. As coisas se degeneraram bem rápido entre o “antigo espião” e o “homem político progressista que tenta instaurar a democracia na Rússia”: a imprensa ficou de fora; os oponentes, na prisão; o Ocidente voltou a ser o inimigo. “Pouco antes de sua morte, Iéltsin disse a seus próximos que cometera um grave erro ao escolher Putin como sucessor.”
Omissões chocantes
Ousemos aqui alguns pequenos retoques. O essencial do desmantelamento da economia soviética foi imposto por decreto presidencial, não pelos deputados eleitos pelo povo russo. Quando eles se opuseram à “terapia de choque” de Iéltsin, este disparou um canhão sobre o Parlamento. Ele modificou em seguida a Constituição por meio de um plebiscito (manipulado) e foi reeleito depois de ter monopolizado a mídia, fraudado as urnas e apelado para conselheiros norte-americanos. Todas essas façanhas democráticas o tornaram muito popular em Washington, Berlim e Paris, mas um pouco menos em seu próprio país.
Foi então que Putin se impôs, sobre quem o documentário estampa um retrato sem nuances: “Um oficial de contraespionagem [da KGB] é alguém que se banha nas teorias do complô, para quem o inimigo está em toda parte e deve ser eliminado”. Desde junho de 2000, quando recebeu o presidente Bill Clinton em Moscou, “Putin quis mostrar que era o macho dominante na sala, sentado com as pernas abertas, bem afundado na sua poltrona”. A imagem de arquivo confirma que Putin está de fato com as pernas abertas, mas somente um pouco mais que Clinton, que por sua vez tem a reputação de não controlar sua libido…
Putin, um valentão de escola
“Revoluções de cor” na Geórgia e na Ucrânia, revoltas árabes: “Putin entende que, de um momento para o outro, vai chegar sua vez. Virão para tirá-lo do poder também. Esta angústia se torna a força motriz de seu regime”. O presidente russo, inclusive, não deixaria de rever as imagens do linchamento de seu “aliado” Muamar Kadafi. As mesmas que provocaram gargalhadas de Hillary Clinton, então secretária de Estado, pontuadas por um famoso “Viemos, vimos, está morto”. Putin, cujas meditações não comportam nenhum mistério para a Arte, se pergunta sem cessar desde então: “Será que isso poderia acontecer comigo? Não somente perder um cargo que eu aprecio, mas também minha liberdade, minha vida?”.
Daí vem seu desejo de vingança… A ocasião apareceu na eleição em 2016 nos Estados Unidos, quando “a Rússia de Putin vai atingir a democracia norte-americana em pleno coração”. Pena, Moscou só enfrentou então machos dominados que, assim como Obama, temiam a Rússia a ponto de recusarem entregar armas para a Ucrânia. Ficou a cargo de John Brennan, antigo diretor da CIA, tirar lições de toda essa história: “Eu repensei meus anos de juventude nos cursos da escola em New Jersey. Sempre havia os pequenos valentões que queriam nos intimidar, e eles não paravam enquanto a gente não fizesse o nariz deles sangrar. Eu me disse que uma pequena hemorragia das fossas nasais faria bem a Putin. Ele recuaria, pois, como a maioria dos brutamontes, ele teria entendido que não poderia mais bancar o fortão”.
Em 18 de abril de 1985, cinco semanas depois da chegada ao poder de Mikhail Gorbachev, a rede pública francesa FR3 exibiu um documento de ficção política, La guerre en face [A guerra em frente], que anunciava a invasão da Europa ocidental pelo Exército Vermelho.1 Na época, a Noruega não teria sido o suficiente. Trinta e três anos se passaram; a maioria dos antigos Estados do Pacto de Varsóvia pendeu para o campo norte-americano; a União Soviética se deslocou; a renda nacional anual da Rússia caiu para menos que a da Itália. O orçamento militar russo representa um décimo daquele dos Estados Unidos. Mas, como a Arte nos lembra, quando temos um inimigo, é para a vida inteira.
*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
1 Ler Paul-Marie de la Gorce, “‘La guerre en face’: fantasmes et manipulations” [“A guerra em frente”: fantasias e manipulações], Le Monde Diplomatique, maio 1985.