Quatro romances contra o esquecimento
Setenta anos após a eclosão da guerra civil espanhola, a literatura volta a resgatar a saga dos que foram derrotados por terem cometido “o crime imperdoável de estar adiante”Anne Mathieu
Se os historiadores se empenharam efetivamente na redescoberta da memória da guerra da Espanha, os escritores contribuíram igualmente quanto a esse assunto. Como testemunho disso, podem ser apontados quatro romances publicados recentemente, todos emblemáticos de questões da atualidade, tanto de um lado quanto do outro dos Pirineus. O romance de Javier Cercas, Soldados de Salamina [1], que obteve considerável sucesso, se funda em torno da reconstituição da vida de um dos fundadores da Falange. Reconstituição esta que conduz o narrador para os rastros de um republicano, Miralles, que participou de toda a guerra da Espanha, na divisão Lister [2]. Esse personagem dará todo seu sentido à busca do narrador e ao próprio livro.
O romance de Andrés Trapiello Os Cadernos de Justo García [3] se funda na descoberta dos escritos de um militante da União Geral dos Trabalhadores (UGT, sindicato socialista), que acabam por constituir a própria essência do livro. O homem relata a sua vida e a dos que estavam a sua volta, de janeiro de 1939, início da retirada em direção à França, a junho de 1939, data na qual ele embarca para o México. Já o romancista italiano Bruno Arpaia, em Do Tempo perdido [4], enfoca um republicano igualmente socialista e exilado, justamente, para o México: Laureano. Este responde às questões do narrador que, de início, aparece entrevistando-o a respeito do seu encontro com Walter Benjamin, e evoca a revolução das Astúrias de outubro de 1934. Tal revolução que foi a premissa da guerra civil e que será o tema principal ? paralelamente ao do exílio de Benjamin na França ? do romance seguinte de Arpaia,Última Fronteira [5].
“O que eu não contei pra ninguém foi que escrevi para deixar um vestígio, pois vamos todos morrer, e é triste partir sem deixar ao menos uma sombra”, explicita Justo García. A vontade de conservar intacta a memória da guerra da Espanha é o cerne do romance de Trapiello, assim como também habita os outros três livros, por um viés da palavra transmitida a um terceiro. A aproximação da morte gera tanto a motivação de escrever em Justo, como a eclosão da palavra no Laureano de Do Tempo perdido (“(…) tenho a impressão de que, eu desaparecendo, a revolução das Astúrias desaparecerá”), assim como também no Laureano da Última Fronteira ( “(…) eu vi coisas que sou, sem dúvida, o único que pode contar. Assim, estou pouco ligando, eu conto. Ao menos, o tanto que vivo, eu persevero, passo pra frente (…)”). Laureano, então, encarrega seu interlocutor da missão de fazer perdurar essa memória: “Depois, acabar com todas essas lembranças, decidir o que tirar disso, isso será com você. Eu terei conseguido minha revanche sobre o tempo. Esse, meu caro, para mim, não é nada”.
Entre a gratidão e o esquecimento
Assim, a morte não triunfará sobre os que Franco classificara na categoria dos “vencidos” e que assim permaneceram pelo fato de ficarem submersos no esquecimento: o narrador de Soldados de Salamina tem a firme convicção de que enquanto ele “conta[r] sua história, Miralles continua[rá] de alguma forma vivendo […]”.
A luta contra o esquecimento se impõe ainda mais, uma vez que significa também um justo reavivar da dívida dos homens e das mulheres de hoje para com os republicanos espanhóis. O narrador, partindo para reencontrar Miralles no asilo em Dijon, tem a seguinte reflexão: “não há absolutamente ninguém dentre essas pessoas que conhece esse velho meio caolho e já no fim da vida, que fuma às escondidas e que, neste exato momento, faz suas refeições sem sal, perto daqui; porém, não há uma única pessoa que não tenha uma dívida para com ele”. A essa temática da dívida, opõe-se a do não reconhecimento, particularmente denunciada na obra de Javier Cercas. O escândalo dessa oposição perene encontra em Miralles a veemência necessária da sua denúncia: “(…) vocês sabiam que eu passei três anos combatendo ao longo do território espanhol? E pensam que alguém me agradeceu por isso? (…) Vou responder pra vocês: ninguém. Ninguém nunca me agradeceu por ter desperdiçado minha juventude defendendo seu país de merda. Nem uma só palavra. Nem um único gesto. Nem uma só carta. Nada”. Se essas palavras são um ataque em regra quanto à transição democrática espanhola, trechos do romance responsabilizam também a atitude dos outros países, pelo viés do narrador.
Como por exemplo, quando o narrador evoca “esses momentos inconcebíveis, nos quais toda a civilização depende de um único homem”, para condenar o “tratamento que a civilização lhe reserva”. Ausente dos romances de Bruno Arpaia, a oposição dívida/não reconhecimento pode ser lida nas entrelinhas do livro de André Trapiello, Os Cadernos de Justo García: “vivi momentos de importância capital para a humanidade e lutei pelo que cria ser justo: a Justiça, a Liberdade e o Homem. A cada vez que forem pensar na Justiça, na Liberdade e no Homem, as nações do mundo serão obrigadas a se lembrar de nós”.
O leitor sabe que ele não pode aquiescer a essas palavras, já que o comportamento das “nações do mundo” frente aos republicanos espanhóis não se mostra melhor após a Segunda Guerra Mundial do que antes dela. Ele sabe também que o feito delas foi ainda pior: fizeram de tudo para que eles fossem esquecidos. Comparemos a convicção de Justo em 1939 com o balanço de Miralles em 2001: “você sabia que ninguém se lembra deles? Ninguém. Ninguém se lembra nem mesmo por que eles estão mortos e por que nunca tiveram esposa, nem filhos, nem quarto ensolarado; ninguém, e menos ainda aqueles para quem eles lutaram. Nenhuma rua miserável de nenhum vilarejo miserável de nenhum país de merda não carrega nem nunca carregará o nome de um deles”.
“E que se foda a transição!”, conclui um leitor do jornal no qual trabalha o narrador de Soldados de Salamina, em seguida a um de seus artigos. Mas, o esquecimento é também imputável à França, diante da maneira com a qual ela tratou os republicanos espanhóis e que se procura dissimular. De 1936 até depois de 1945, como mostram Andrés Trapiello e Bruno Arpaia, as razões da ocultação não faltam.
Em relevo, a humilhação sofrida na França
Enquanto homens e mulheres lutavam pela “Justiça, Liberdade, Homem”, outros ? na França e na Inglaterra, em agosto de 1936 ? decidiam pela política criminal da não intervenção: “uma farsa, se ela não se revelou uma tragédia. […] Até mesmo os garotos percebiam que Mussolini e Hitler, com essa sujeira de não intervenção…”, fulmina Laureano. Justo García, por sua vez, desfere categórico: “[…] se perdemos, em parte foi por causa da França e da Inglaterra”.
No início de 1939, veio a “Retirada”. Essa palavra carregada de lágrimas por todos os republicanos espanhóis, esse longo cortejo de milhares de mulheres, homens e crianças se dirigindo em direção à fronteira francesa, que o terror das descrições desses romancistas reaviva em todo seu desespero. Vemos as fotos de Robert Capa. Encontramo-nos em torno do poeta Antonio Machado, notado por Miralles, sombra simbólica dentre essas sombras anônimas. Machado que morrerá em Collioure, em fevereiro de 1939.
Terror da descrição que o leitor quer crer insuperável. Entretanto, desde a chegada na fronteira, os espanhóis terão de suportar humilhação sobre humilhação. Serem obrigados a se separar de suas armas será a primeira. Mas, as humilhações irão se suceder, no mundo onde eles deverão viver a partir de então. E cada uma varrerá a precedente, com uma brutalidade que vai num crescendo em direção ao horror.
Os primeiros rostos da França que Justo descobre são os dos policiais ? “ladrões sem vergonha”, seres humanos destituídos de humanidade: “três anos de guerra revolucionária para que um policial branquelo e perfumado, alimentado de fígado de ganso, te diga: “não é problema nosso”. Inúmeras páginas de seus Cadernos são uma denúncia implacável da acolhida francesa: “O último achado dos franceses é se referirem a nós não como refugiados, mas como invasores”; “muita gente do povo […] tomou nosso partido, mas as autoridades tomaram o dos fascistas”.
A virulência do vocabulário está na mesma medida que a acolhida recebida: “canalhas” para Justo e “filhos da puta” para Laureano que nunca emprega o meio-tom. Este seria, aliás, mal visto diante da indigna atitude da recepção, além de ser também extremamente emblemático do que lhes reservará o futuro memorial.
A humilhação atinge seu ápice, quando os três personagens são internados em campos de concentração [6]. Em Argèles (Miralles, Laureano), em Saint-Cyprien (Justo) ou em Septfonds (Laureano), eles são submetidos a “condições de vida desumanas”, como mostra Soldados de Salamina. A escrita de Justo, conquistada pela veemência desde a sua chegada na França, poderia servir de expressão comum aos três personagens: “Canalhas! Eles haviam cercado uma grande extensão da praia, ao menos um ou dois quilômetros, com uma dupla cerca de arame farpado, e foi lá que eles nos puseram”.
“Um mundo onde não há mais lugar para mim”
A escrita permite a descrição minuciosa da vida no campo de concentração, dessa “espiral de degradação”. Nos casos de Laureano e Miralles, a relação de encarceramento é mais reduzida, mas não sua intensidade. Laureano explica que só havia como horizonte “a lama e a escória, o frio e a fome”. Para todos eles, esses campos de concentração são um objeto de revolta. Para Miralles, “asilos terminais”; para Justo, “gigantesco depósito de cadáveres” que transformavam os vencidos em “sub-homens”, dentre os quais “muitos começaram a deixar de querer viver”. Alguns deles, desesperados, se embrenharão mar adentro, para ser por ele engolidos. Um verdadeiro desgosto se exprime nas palavras de Justo: “um dia, se escancarará a verdadeira história dos franceses, como eles se comportaram com a população refugiada, a maneira com a qual nos enganaram, mentiram, injuriaram, vilipendiaram e maltrataram antes, durante e depois da guerra”.
Outras críticas, assim, vão despontar [7]. A do engajamento nas Companhias de Trabalhadores Estrangeiros [8] e na Legião. Miralles se engaja nesta, já Laureano em um regimento de engenharia, do qual ele logo desertará. Momento este que aparecerá como a ocasião para Laureano relembrar o envio pelos alemães de “milhares de espanhóis para Mathausen”, “recebidos como um pacote já bem embalado por Pétain e companhia, nos campos de concentração disseminados na França […]”. Justo, por sua vez, embarca no Sinaia, primeiro navio que parte em direção ao México [9], terra de acolhida para numerosos republicanos espanhóis ? para onde também vai Laureano, mais tarde.
Miralles guerreará ao lado do general Leclerc. Ele entra na Paris libertada, no dia 24 de agosto de 1944, sobre um dos tanques de guerra que levavam os nomes de Guadalajara ou de Teruel. São os primeiros a penetrar na capital francesa, mas seu esforço só começou a ser reconhecido bem recentemente [10]. Depois, uma vez os combates terminados, Miralles cai no esquecimento, assim como todos os seus compatriotas.
Laureano constata o seguinte: “dizem que falta muito tempo para que o mundo acabe. Mas o nosso se aniquilou de uma só vez. Desde então, não há mais lugar para pessoas como nós”. Não há mais lugar, pois não quisemos a sobrevivência desse mundo, a não ser nas lembranças de seus atores. Andrés Trapiello dá, com efeito, uma explicação suplementar para essa vontade de esquecimento. No barco em direção ao México, Justo compreende que acabarão pedindo para que eles deixem atrás de si a razão pela qual haviam lutado: “dirão que tentavam limpar os resíduos das nossas lembranças. Mas, o que há de mais precioso do que as nossas lembranças? Nunca essa verdade apareceu de forma tão evidente: o passado, seja ele qual for, era melhor. Quantos de nós não desejariam seguidamente nunca ter abandonado a Espanha? A guerra foi uma agonia, mas enquanto ela durou, havia esperança”. Matar essa guerra da Espanha significa também impedir que se sirva dessa magnífica esperança de um outro mundo, dessa esplêndida fraternidade, para outras revoltas.
O século 20, que devorou seus ideais
Em Do Tempo perdido, Laureano brada: “vocês sabem o que penso? Que este é um verdadeiro século de merda: ele devorou todos os ideais, consumindo-os nas tragédias dos primeiros cinqüenta anos, queimando-os como numa fornalha e, em seguida, com essa falsa paz, ele conseguiu fazer com que ninguém mais quisesse buscar outros ideais. O resultado, vocês têm diante dos olhos: nada pra acreditar, nada pra ter esperança…”. Porém, Laureano deseja transmitir a necessidade da luta: “vocês crêem que os livros e os professores serão suficientes para vencer essa doença que assolou todo o mundo, essa estúpida vontade de esquecer? Acreditem em mim […]: eles não serão suficientes… Assim droga, eu conto… Depois, estará na mão de vocês, será com vocês, jovens, e adeus”.
Verdadeiro trecho testemunhal, essas palavras são de uma atualidade exorbitante, no momento em que a Espanha enfrenta, finalmente, sua história recente, verdadeira chaga aberta. Exatamente quando associações se esforçam consideravelmente para a reabertura de valas comuns [11]. Na hora em que, na França, jornalistas fazem falar os últimos republicanos e seus filhos [12], e quando outros publicam testemunhos [13]. Mas, o ardor francês em reconhecer a dívida para com os republicanos espanhóis ainda é bem tímido e bem marginal.
Os romances citados aqui fornecem chaves para compreender as razões dessa ocultação permanente. Em todo caso, eles representam um papel importante na luta contra o esquecimento, na França e na Espanha. Reivindicam assim uma literatura engajada, pouco em voga na França desses últimos anos. E tornam viva a luta desses homens e dessas mulheres para um mundo melhor. No seu epílogo aos Cadernos de Justo García, o narrador conclui: “[…] nossas vidas de hoje, menos heróicas, se elevam ao contato das de pessoas que lutaram pelos ideais que permanecem, a despeito de tudo, justos e belos”. Lamentando chegar à última págin
Anne Mathieu é diretora da revista Aden-Paul Nizan, de Paris.