Quem são os EUA para dizer que Erika Hilton não é mulher?
Regressões autoritárias que hoje se expressam na reorganização internacional das direitas nacionalistas, são mais do que tendências em disputa na arena política do mundo contemporâneo. Erika Hilton, cidadã e parlamentar brasileira em missão oficial, passou por um ultraje. Com ela, o Brasil como nação soberana também foi desrespeitado
Desde seu retorno à Casa Branca, no Dia 1 de mandato, a cruzada de Donald Trump contra imigrantes irregulares e a comunidade LGBT — especialmente pessoas trans — transformou-se em uma guerra contra o direito à cidadania. Já na posse, o presidente assinou uma série de ordens executivas para, em suas palavras, “deter a loucura transgênero”.
Agora, a questão respinga no Brasil e envolve a soberania nacional. A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) recebeu um visto dos Estados Unidos no qual foi identificada com o gênero masculino. Erika viajaria ao país para participar da Brazil Conference, evento organizado pela comunidade brasileira de Harvard e do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). A viagem foi autorizada pela presidência da Câmara dos Deputados como missão oficial da parlamentar.
No mesmo dia, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu que a definição de “sexo” na Lei da Igualdade de 2010, refere-se apenas à categoria de “mulher biológica” e “sexo biológico” — dois conceitos já superados pelas principais associações médicas internacionais, inclusive dos EUA. Tais instituições corroboram pesquisas científicas extensas que apontam que sexo e gênero são mais bem compreendidos como espectros, e não como definições imutáveis. A decisão da Corte atendeu aos interesses de um lobby que estimula a tensão entre “mulheres cis” e “mulheres trans” — transfobia pura, com o claro intuito de reduzir o status político das mulheres como um todo.
Na prática, os EUA contradisseram documentos oficiais emitidos pelo Estado brasileiro, os quais identificam e reconhecem Erika Hilton como mulher. De um lado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 estabelece que a cidadania garante ao indivíduo direitos políticos e sociais conforme as leis nacionais — e, no Brasil, a transfobia é crime. De outro, as ordens de Trump — que incluem desde a proibição de atletas trans em competições femininas até a imposição de um gênero imutável baseado unicamente em características biológicas — resultam em um trauma social indescritível, porque tratam pessoas como se elas não existissem.
Regressões autoritárias que hoje se expressam na reorganização internacional das direitas nacionalistas, são mais do que tendências em disputa na arena política do mundo contemporâneo. Podem ser chamadas, como diria Antonio Gramsci, de fenômenos mórbidos. Eles se manifestam em um mundo de radical indeterminação, onde as forças estabilizadoras estão falidas.
Um outro mundo
Era um outro mundo quando, em 2016, a Casa Branca, durante a administração Barack Obama, enviou para a cidade de São Paulo uma comitiva para conhecer o programa Transcidadania. Foi durante a gestão Fernando Haddad (PT), com Eduardo Suplicy (PT) à frente da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, que a política pública se consolidou como referência nacional e internacional. O programa começou a integrar a agenda de uma das maiores metrópoles do mundo, objetivando reinserção escolar, visando inclusão e capacitação, reintegração social e resgate da cidadania para a população trans e travesti. Depois dos EUA, vieram os governos do México, Nova Zelândia e Países Baixos para conhecer e aprender sobre a experiência brasileira de São Paulo.
Um dos elementos fundamentais para a construção da política pública foi o papel central que pessoas trans tiveram na concepção e na implementação inicial do programa. O desenho da política foi discutido com diversas referências políticas transexuais e lideranças da sociedade civil do Brasil. Assim, a experiência do Transcidadania é um importante exemplo sobre a disputa pela autonomia, cujo poder está em produzir os sentidos sobre o próprio mundo.
Naquele ano de 2016, Trump foi eleito pela primeira vez à presidência dos EUA, indicando que o mundo conhecido desde o fim da Segunda Guerra Mundial estava dando sinais de desintegração. Agora, quando o velho morreu e o novo não nasceu ou ainda não pode nascer, a crise do capitalismo que mais exclui do que inclui, implica na dissolução da vida comum. Essa constelação leva as pessoas a aderirem, clamando por redistribuição, a propostas insurrecionais. Mas elas não apontam para nenhuma direção, a não ser a própria pauperização da democracia. No período entreguerras do século XX, o mundo atravessou um sombrio similar. Movimentos regressivos investiram em reverter o capitalismo à sua forma passada, implicando em modos de viver passados.
Iniciativas desse tipo, sob novas formas de violência, são sintomas de ideias evasivas da realidade e de não enfrentamento dela. Simplesmente porque não é possível “descriar” o que foi criado, desinventar o que foi inventado. Muito menos anular a universalidade do gênero humano, a partir de longos e sofridos processos sociais. A realidade, no entanto, impõe-se, mesmo quando desagrada. A “loucura transgênero”, nas palavras de Trump, demonstra uma orientação para uma sociedade desintegrada, expondo uma psicose política cuja origem está na crise de autoridade contemporânea.
Erika Hilton, cidadã e parlamentar brasileira em missão oficial, passou por um ultraje. Com ela, o Brasil como nação soberana também foi desrespeitado. Contrariando um senso recorrente de subalternidade, as ações de Trump indicam que o Brasil ocupa, sim, um lugar relevante no cenário global. Em meio à escalada militar alimentada pelo sectarismo nacionalista e à disputa por zonas de influência, há oportunidades para o Brasil, como potência regional, negociar os termos da sua inserção internacional sem renunciar à democracia e aos direitos humanos.

Caetano Veloso, no exílio em Londres durante a ditadura militar, fez a música You Don’t Know Me, que está no álbum Transa, de 1972. No embalo pela liberdade e ressignificação das características brasileiras pelo Movimento Tropicalista, está o verso “there ‘s nothing you can show me from behind the wall (não há nada que você possa me mostrar por trás do muro)”. Hoje, Erika poderia dizer a Trump, “there ‘s nothing you can show me from behind the US border wall (não há nada que você possa me mostrar por trás do muro da fronteira dos EUA)”. É um trocadilho, mas pode representar, em alguma medida, o significado da atual dinâmica decadente e desgovernada da maior potência mundial.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito pelo Mackenzie, graduando em Ciências Sociais pela USP e atua no planejamento de políticas públicas no Governo de São Paulo.
NOTAS:
Magri, G. (2021). Políticas públicas para pessoas transexuais em São Paulo: da luta política ao Transcidadania. In Cedec (org.). Transver o mundo: existências e (re)existências de travestis e pessoas trans no 1º mapeamento das pessoas trans no município de São Paulo. Annablume.https://www.cedec.org.br/wpcontent/uploads/2022/05/Transver_O_Mundo_Mapeamento_Pessoas_Trans.pdf