Quem tem medo da diversidade cultural
Uma nova convenção da Unesco pode estabelecer o direito das sociedades a defender suas culturas – inclusive contra as ameaças da homogenização e do mercado. Como seria de se esperar, os EUA são contra…Armand Mattelart
A 33a. sessão da Conferência Geral da Unesco deve, neste mês de outubro de 2005, submeter à aprovação dos Estados membros o anteprojeto de Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. O objetivo é conferir força de lei à Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, adotada por unanimidade logo em seguida aos acontecimentos de 11 de setembro de 20051 . Elevando a diversidade à categoria de “patrimônio da humanidade”, esta declaração se opôs aos “enclausuramentos fundamentalistas ante a perspectiva de um mundo mais aberto, mais criativo e mais democrático2 “. O paradigma ético da “diversidade em diálogo” seria o oposto da tese de Samuel Huntington sobre a fatalidade do “choque das culturas e das civilizações”
Embora em 2001 todos os Estados tenham aprovado, no plano dos princípios, a pluralidade de alteridades como instrumento capaz de “humanizar a globalização”, isso não aconteceria novamente, dois anos mais tarde, no momento da decisão que abriu caminho à redação do anteprojeto de Convenção. Entre o pequeno número de países que se abstiveram figuravam os Estados Unidos. Não haviam esquecido o duplo fracasso de sua diplomacia, uma década antes, fervorosamente contrária ao princípio de proteção da “exceção cultural” — reformulado posteriormente em proteção da “diversidade cultural”: Primeiro em 1993, frente à União Européia, durante a fase final do Ciclo do Uruguai do Acordo Geral sobre as Tarifas e o Comércio (GATT), que deu à luz a Organização Mundial do Comércio (OMC); e depois frente ao Canadá, durante a assinatura do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (NAFTA), que entrou em vigor em 1994. Duas negociações que, reconhecendo o estatuto particular dos “produtos do espírito”, haviam ao mesmo tempo legitimado políticas públicas, mais especificamente no campo do audiovisual.
Entre o pequeno número de países que se abstiveram figuravam os Estados Unidos, escaldados por dois fracassos anteriores
O Canadá e a França – que desempenhou um papel central na formulação da doutrina da “exceção” – são os maiores responsáveis pela implementação do anteprojeto de Convenção. A França mobilizou os países de língua francesa. O Canadá, por sua vez, estabeleceu uma Rede Internacional pela Política Cultural (RIPC) e conseguiu agregar cerca de sessenta ministros da Cultura para discutir de maneira informal os meios para reforçar a diversidade, em acordo com diversas associações e outras organizações culturais. Além disso, Ottawa garante desde setembro de 2001, em conjunto com o governo do Quebec, apoio financeiro a uma coalizão internacional de organizações profissionais da cultura pela diversidade cultural, formada por uma rede de coletivos nacionais.
Muito além do audiovisual
O campo de aplicação do projeto de Convenção ultrapassa os limites do audiovisual e das indústrias culturais, uma vez que se destina à “multiplicidade de formas pelas quais as culturas de grupos e de sociedades encontram sua expressão”. Formas que concernem tanto às políticas da língua quanto à valorização dos sistemas de conhecimento dos povos autóctones. Isso não impede que, para a crítica, sejam exemplos emprestados às indústrias da imagem que ilustram os riscos que a diversidade cultural corre por conta da globalização neoliberal. O departamento de Estado dos EUA e a Motion Picture Export Association of América (MPEA) – criada em 1945 e rebatizada Motion Picture Association (MPA) em1994, porta-voz dos interesses das majors – pressionaram governos como os do Chile, da Coréia do Sul, do Marrocos ou dos antigos países comunistas para forçá-los, em acordos comerciais bilaterais, a renunciar a seu direito de implementar políticas na área de cinema, em troca de compensações em outros setores.
Três sessões de reuniões governamentais, a última em junho de 2005, foram necessárias para finalizar o texto submetido à Conferência geral. Os redatores tentaram a mediação entre duas posições. Uma, majoritária e que incluía a União Européia, defendia o princípio de um direito internacional que ratifique o tratamento especial dos bens e serviços culturais, porque “portadores de identidade, de valores e de sentidos”. A outra, sustentada por governos como os dos Estados Unidos, da Austrália e do Japão, propensos a enxergar nesse texto apenas uma expressão de protecionismo a um setor que deveria supostamente, como todos os outros serviços, seguir a regra única do livre-comércio. Entre os dois, um conjunto disparatado de argumentos, alguns formulados por Estados que temiam ver desaparecer a coesão nacional, contaminada pelo princípio de diversidade. Deste ponto de vista, o texto também é resultado de uma produção intercultural.
Resultado: um conjunto de regras gerais relativas aos direitos e às obrigações dos Estados: “As partes”, diz o artigo 5, “reafirmam (…) seu direito soberano de formular e colocar em prática suas políticas culturais e de adotar medidas para proteger e promover a diversidade de expressões culturais, bem como para reforçar a cooperação internacional a fim de atingir os objetivos da presente Convenção.” Pilar do edifício jurídico, o princípio da soberania: um Estado pode recuperar o direito à editar políticas culturais que tenha alienado anteriormente.
OMC, ameaça onipresente
No pilar do edifício jurídico, o princípio da soberania: um Estado pode recuperar o direito à editar políticas culturais que tenha alienado anteriormente
Para que a Convenção adquira caráter normativo em caso de litígio, é crucial definir sua relação com outros instrumentos internacionais. Aí reside toda a problemática do artigo 20, que confirma que as relações da Convenção com os outros tratados deverão ser guiados pela idéia de “apoio mútuo, de complementaridade e de insubordinação.” Quando às Partes, lê-se, “interpretam e aplicam outros tratados dos quais fazem parte, ou quando se comprometem com outras obrigações internacionais, levam em conta as disposições pertinentes da presente Convenção.” O artigo 21, por sua vez, faz do acordo e da coordenação com “outros circuitos internacionais” (não identificados) uma das premissas de aplicação do precedente.
Estes “outros circuitos” são aqueles onde se joga igualmente a sorte da diversidade cultural. É o caso da OMC e, em particular, do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS, em inglês), onde os serviços audiovisuais e culturais estão na ordem do dia das liberalizações, na perspectiva da conferência ministerial da OMC prevista para este dezembro em Hong Kong. É também o caso da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), ligada à privatização crescente de bens públicos e comuns, como testemunha a apropriação privada dos saberes e conhecimentos, estes também fonte de criatividade.
O calcanhar de Aquiles da Convenção continua sendo, entretanto, o que se segue à ela: a questão das sanções no caso de infração e a fragilidade dos mecanismos de resolução dos litígios.
O princípio de soberania está envolto por um conjunto de outros princípios diretores: respeito aos diretos humanos, igual dignidade e respeito à todas as culturas, solidariedade e cooperação internacionais, complementaridade de aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento, desenvolvimento sustentável, acesso eqüitativo, abertura e equilíbrio. Para colocar em prática o princípio de acesso eqüitativo e de solidariedade e cooperação internacionais, os artigos 14 a 19 prevêem, entre outra coisas, um “tratamento preferencial para os países em desenvolvimento” e o estabelecimento de um fundo internacional para a diversidade cultural financiada por contribuições voluntárias públicas ou privadas.
Seria interessante investigar a experiência de projetos semelhantes. Principalmente o da Cúpula Internacional sobre a Sociedade de Informação, organizada por outra agência das Nações Unidas, a União Internacional das Telecomunicações (UIT). A primeira fase ocorreu em Genebra, em dezembro de 2003. A segunda está prevista para novembro de 2005, na Tunísia. Há dificuldade de mobilizar recursos públicos nos grandes países industriais, a fim de financiar um “fundo de solidariedade digital” que permitiria lutar contra a desigualdade de acesso ao ciberespaço. Sente-se o interesse das fundações filantrópicas das multinacionais da indústria de informação em preencher o vazio.
Diversidade sem Comunicação?
A Unesco criou sua própria censura sobre os anos 70, quando a reflexão sobre as políticas culturais acontecia junto com o debate sobre o papel da comunicação
A construção de políticas culturais é dificilmente concebível sem passar pela questão das políticas da comunicação. Porém, a Convenção e, mais fundamentalmente, a própria filosofia de ação da Unesco em relação à diversidade cultural, tendem não somente a dissociar as duas problemáticas, como também a ignorar a segunda. Na versão final do anteprojeto aparecem duas alusões à diversidade das mídias. Uma, no tópico 12 do prefácio, lembra que “a liberdade de pensamento, de expressão e informação, assim como a diversidade das mídias, permitem a manifestação das expressões culturais no seio das sociedades”. A segunda, no artigo 6, enumera, no final da lista de medidas a tomar (ponto h) “aquelas que visam promover a diversidade das mídias, inclusive por meio do serviço público de radiodifusão”.
O que seria esta “diversidade das mídias” não se sabe. Nem adianta procurar a palavra “concentração”, por exemplo: o conceito se altera. Medo de espantar os Estados Unidos, que contribuem em 20% para o orçamento da Unesco e voltaram a participar ativamente em 2003, após a haver abandonado em 1984 para marcar seu desacordo com as demandas do movimento dos países não-alinhados em favor de um reequilíbrio de fluxos através de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (Nomic)? Certamente. Compartimentação das tarefas entre divisões de uma grande máquina burocrática? Também. Mas ainda há mais.
A instituição criou sua própria censura sobre esse período dos anos 1970, onde a reflexão sobre as políticas culturais acontecia junto com o debate sobre as políticas de comunicação. A reflexão sócio-econômica sobre as indústrias culturais situava-se então, na categoria das questões fundamentais, os fenômenos de concentração econômica e financeira acentuados pela internacionalização3 . Os temas do “diálogo das culturas” e do “desenvolvimento harmonioso dentro da diversidade e do respeito mútuo” inspiravam os trabalhos da comissão internacional para o estudo dos problemas de comunicação, nomeada pelo diretor geral da Unesco na época, o senegalês Mohtar M?Bow, e presidida pelo irlandês Sean MacBride, prêmio Nobel da Paz. Comissão plural que comportava personalidades como Hubert Beuve-Méry, fundador do jornal Le Monde, ou o romancista Gabriel Garcia Márquez. Primeiro documento originário de uma instituição internacional sobre a desigualdade das trocas culturais e informacionais, o relatório MacBride, ratificado pela conferência geral da Unesco de 1980 e publicado sob o título simbólico de Vozes múltiplas. Um só mundo, mostrava porque se tornava urgente pensar o direito à comunicação como expressão de novos direitos sociais4.
Sociedade civil, papel ativo
Antes e durante a elaboração do anteprojeto, a sociedade civil provocou a tomada de consciência das autoridades, e as incitou a tomar posição
Se a Convenção for aprovada, apesar da hostilidade surda dos Estados Unidos, ela vai se impor como referência com a qual os interventores públicos e privados deverão inevitavelmente se alinhar. Daí a necessidade, para os novos atores sociais, de se apropriar dela. Não somente para colocá-la em prática, mas também para alargar seus limites.
No curso do processo de elaboração do anteprojeto e antes da própria aprovação da idéia de um instrumento jurídico, estes atores efetivamente provocaram, em vários pontos do planeta, a tomada de consciência das autoridades públicas, e as incitaram a tomar posição. É uma grande lição de mobilização, em plano nacional e internacional, de dois tipos de redes: as que estão ligadas ao movimento social e a que reúne coletivos nacionais de organizações profissionais da cultura.
As primeiras teceram um fio vermelho ligando os debates sobre a Convenção e os que se desenrolaram durante a Cúpula Mundial sobre a Sociedade de Informação. Fizeram o discurso de defesa dos direitos à comunicação convergir com as problemáticas da diversidade cultural e midiática. Diversidade das fontes de informação, da propriedade das mídias e dos modos de acesso à estas, apoio ao serviço público e às mídias livres e independentes. A segunda, constituída por cerca de trinta coletivos nacionais construídos em menos de quatro anos, mostrou que é possível conjugar os assuntos da cultura com a cidadania, sem se fechar em defesa de interesses corporativos.
Na declaração final da assembléia, ocorrida em Madri, em maio de 2005 – véspera dos últimos retoques dados ao anteprojeto, os Estados membros da Unesco foram chamados a “resistir às pressões que tentam diluir o conteúdo da Convenção” e “àqueles que buscam adiar sua adoção até a conferência geral da Unesco em 2007, ou mesmo depois, o que comprometeria de maneira significativa seu impacto”. Nada está definido. A bola, por enquanto, está com os Estados.
(Trad.: Patrícia Andrade)
1 – Ler Bernard Cassen, “Une norme culturelle contre le droit de commerce?”, Le Monde Diplomatique, ed. francesa, setembro de 2003.
2 – Koïchiro Matsuura, diretor geral da Unesco, “La diversité cu
Armand Mattelart é professor emérito da Université Paris-VIII, autor de La globalisation de la surveillance: genèse de l’ordre sécuritaire (Paris, La Découverte, 2007).