Quem tem medo da livre difusão cultural
Um debate na Assembléia Nacional francesa revela: em defesa de seus lucros, as transnacionais do “showbusiness” e do “software” propõem impedir a circulação não-mercantil de obras artísticas pela internetPhilippe Aigrain
“Uma espécie de comunistas, atualizados, quer suprimir os estímulos materiais destinados aos músicos, aos cineastas e aos programadores”, adverte Bill Gates em uma entrevista, em janeiro de 2005 [1]. Desde então, esta opinião vem sendo retomada pelos exércitos de lobistas que reclamam a ampliação do campo de aplicação da propriedade intelectual.
Nada haveria meio-termo algum entre uma visão expansionista da propriedade intelectual e o “comunismo”? Deve a cultura escolher entre a vigilância implacável de suas utilizações, (por meio de tecnologia e polícias privadas) e um regime burocrático de economia administrada? Ou entre uma gratuidade que destruiria a criação e a maximização do lucro, retirado de cada utilização de cada obra? É o que se poderia crer, lendo a maioria dos comentários que invadiram as páginas de debate e os editoriais dos jornais diários franceses depois da votação-surpresa do 21 de dezembro de 2005 na Assembléia Nacional.
Nesse dia, uma coalizão inusitada, formada pela esquerda socialista e comunista, os Verdes e uma parte da União para um Movimento Popular (UMP) dirigida por Bernard Carayon e Christine Boutin, aprovou, contra a vontade do governo, uma emenda propondo um mecanismo de licença legal para o acesso às obras na Internet.
Os deputados debateram a lei “Direitos Autorais e Direitos Fronteiriços na Sociedade da Informação” – Dadvsi. Este texto supõe transpor para o direito francês a diretriz européia homônima (2001/29/CE) [2]. Um dos pontos em jogo é a definição do quadro jurídico no qual se inserem os programas e os chips especiais para o controle do acesso às obras. Seria proibido contornar estas “medidas técnicas de proteção” (MTP), que podem, por exemplo, proibir a leitura de um DVD em uma plataforma não autorizada – ou até mesmo analisar seu funcionamento. O Dadvsi também deve determinar as exceções suplementares dos direitos autorais reconhecidos para diversos usos (pesquisa, educação, crítica, deficiência, etc) e especificar como o exercício desses direitos de uso será efetivo, no caso em que medidas técnicas impeçam beneficiar-se diretamente de seu uso. Os que leram o texto da emenda aprovada de surpresa a 21 de dezembro terão dificuldade em compreender por que ela desencadeou a invocação das alternativas maniqueístas listadas mais acima.
Felizmente, diante dos lobbies, uma vasta rede de cidadãos e de atores culturais defende uma visão mais ambiciosa para a cultura
As alternativas que se quer ocultar
E se estiver em jogo algo que nata tem a ver com estas oposições? E se, ao contrário, existir um enorme leque de alternativas para remuneração dos criadores, liberdade de acesso e relação com as obras e garantia da diversidade cultural, que só começam a se desenhar precisamente quando nos recusamos a pensar a partir dos preconceitos? Talvez seja exatamente isso o que dá medo. Em todo caso, os 145 mil cidadãos que subscreveram a iniciativa da EUCF.info [3], e os 14 mil artistas signatários da moção da Spedidam [4], tiveram motivos para pedir o adiamento da votação para depois de uma discussão aprofundada. E de protestar contra a imposição, pelo governo, de um procedimento de urgência.
Que alcance político pode guiar as escolhas que devem ser feitas? Nesse plano, há uma incompreensão absoluta entre os gestores do processo no ministério francês da Cultura e a surpreendente reunião de inovadores, criadores, atores das políticas culturais de base e “cidadãos comuns”, que sugerem uma orientação diferente para o projeto de lei. De um lado, a ortodoxia incestuosa construída há vinte anos entre os grupos de interesse dos detentores de estoques de direitos [5] e uma pequena casta de juristas especializados — ortodoxia sistematicamente conduzida pelos altos funcionários encarregados desse tema no Ministério. Esta orientação pode contar com uma sólida maioria no Conselho Superior da Propriedade Literária e Artística (CSPLA), a comissão que desde 2000, tem a atribuição de aconselhar o governo sobre as questões de propriedade literária e artística.
Pena que as orientações propostas por esse grupo se oponham radicalmente à realização das missões do Ministério. O ministro, Renaud Donnedieu de Vabres, recusa a criação de exceções para a pesquisa e o ensino ou para as bibliotecas e condena os programas de digitalização de arquivos educativos e culturais – nos quais investem-se milhões de euros, há vinte anos. O Parlamento o acompanhou, rejeitando as emendas que previam essas exceções, ainda que elas sejam devidamente autorizadas pela diretriz que está sendo transposta. Aí está a votação que deveria suscitar editoriais indignados dos tenores da cultura… mas há silêncio. Felizmente, diante dos lobbies [6], um tecido bem rico de cidadãos e de atores culturais defende uma visão mais ambiciosa para a cultura.
Há coisa mais grave. O ministro francês da Cultura também se opôs, com um sucesso que se espera provisório, à votação de uma emenda que esclareceria que o direito de citação se aplica a todos os tipos de obras, especialmente audiovisuais. Um dispositivo desse tipo foi adotado na transposição alemã da mesma diretriz européia. Ora, trata-se de uma questão essencial: os cidadãos têm o direito, por exemplo, de divulgar em seu blog, trechos em vídeo de um programa de televisão, ainda que para apoiar a afirmação de que a apresentação repetida de casos de polícia e a ordem dos assuntos nos jornais influenciam a opinião?
Tornar a priori impossíveis o intercâmbio e o tratamento da informação é tentar para um rio com as mãos, chamar um policial tecnológico para cada gota de água
A polícia eletrônica das transnacionais
Quando o Estado se transforma em oficina de prevenção da cessação de lucros, a inquietação não vem tanto do fato de que ele patrocina as preferências das indústrias culturais ou tecnológicas, mas sim, de não ter mais política para a cultura. Há meses, o ministro Donnedieu de Vabres declara alto e bom som que não quer de modo algum prejudicar os softwares livres, nem atrapalhar a expressão deles na Internet, nem atentar contra a proteção de dados. Isto não o impediu de deixar a CSPLA patrocinar uma emenda redigida pela Vivendi-Universal [7] que prevê a ilegalidade da Internet, da Web e de todos os outros instrumentos de troca de arquivos não possuidores de medidas técnicas de proteção que garantam as restrições previstas de acesso e de uso das obras.
Esta emenda parlamentar foi apresentada pela UMP e pela UDF. Por seu lado, o Ministro da Cultura propôs, durante o debate diante da Assembléia, uma série de medidas que instituem uma “reação graduada” no caso de compartilhamento de arquivos que os detentores de direitos julguem ilícitos. Estes dispositivos visam empregar polícias (de vigilância dos usos dos internautas) e uma “justiça” (sob forma de sanções automáticas sem processo), as duas privadas. É provável que a emenda Vivendi-Universal/CSPLA e a “reação graduada” (certamente inconstitucional) sejam sacrificadas no altar da “moderação”. Mas pode-se temer que a filosofia que tornou essas aberrações possíveis dê à luz novas emendas do mesmo tipo.
Os modelos comerciais baseados na organização tecnológia de uma raridade artificial só podem sobreviver se destróem todo o potencial social e cultural das técnicas da informação. Querer definir e controlar, por meio da tecnologia, aquilo que é ou não legítimo; tornar ilegal o que permitiria outras utilizações; tornar a priori impossíveis o intercâmbio e o tratamento da informação é tentar para um rio com as mãos, chamar um policial tecnológico para cada gota de água. Não será suficiente tornar ilegais os softwares livres. Será preciso, como prevê um recente projeto de lei norte-americano [8], proibir qualquer sistema capaz de digitalizar imagens e sons (da fotocopiadora ao gravador…) que não contenha dispositivos que reconheçam e apliquem as restrições previstas em favor dos potenciais detentores de direitos destas imagens e destes sons.
Em outras palavras, todos os que entrarem no jogo do intercâmbio livre e da confiança entre usuários e criadores deverão curvar-se às restrições e trabalhar com instrumentos concebidos por inquisidores, que igualam todo cidadão a um ladrão herético. Aceitar esta filosofia traz o risco de nos relegar, por décadas, em matéria de informações e mídia temporal (som e imagem animada), ao tempo dos escribas. Seria estranho o fato de tal perspectiva não entusiasmar a parcela cada vez maior da população francesa [9] que experimenta a extraordinária liberdade de se expressar para o público em geral — e todos aqueles que já se beneficiam das idéias e criações de tantos autores novos?
Diferença fundamental entre as duas propostas: o exame da legitimidade da utilização não se transfere da Justiça para aparelhos controlados por um punhado de multinacionais
Proteger os criadores sem impedir que a criação circule
Isto quer dizer que tudo deve ser permitido e gratuito? Nem uma coisa nem outra: a forma de receber os direitos e a maneira de remunerar os criadores não devem destruir o potencial de um mundo de abundância de fontes de expressão e criação. O que disparou o furor, na emenda que cria parte de uma licença legal, é que ela ressaltava a existência de soluções alternativas, ao mesmo tempo simples e capazes de garantir ao conjunto dos criadores rendimentos pelo menos equivalentes aos que eles auferem hoje. Essas alternativas repousam na socialização do financiamento da remuneração dos criadores, sem contradizer um princípio fundamental do direito autoral — isto é, que o grau da remuneração depende das escolhas do público de ouvir ou ver uma coisa e não outra.
Diferença fundamental entre as medidas técnicas de proteção (MTP) e sistema de gestão de direitos numéricos (DRM): o exame da legitimidade da utilização não se transfere dos juízes para aparelhos controlados por um punhado de multinacionais. De resto, nenhuma necessidade de vigiar a utilização individual: uma análise do tráfego de rede permitiria medi-la. Soluções desse tipo já existem em vários campos (cópia privada, rádio), ainda que de modo injusto e limitado, já que os criadores de obras de livre acesso não se beneficiam delas e elas só se aplicam a atividades sem impacto positivo de trocas por Internet. A rede deveria, mais tarde, permitir às comunidades de criação e de compartilhamento, elaborar mecanismos mais justos que exprimissem a nova qualidade de relação entre o público e os artistas. A licença global escapará da armadilha dessa vez? Seria apenas adiar a disputa, pois seja qual for a decisão da Assembléia Nacional francesa, o projeto subjacente à emenda contestada não desaparecerá. É a proposta de um mundo onde muitos se dirigem a muitos, criam, atingem um grande público e beneficiam-se das criações de uma multidão de fontes. Nesse mundo, os títulos de impacto subsistirão, mas será mais difícil para os majors fazerem deles uma engenharia prévia.
Produziremos s