Quo vadis capitalismus?
A crise não vai dar lugar a um novo sistema monetário e financeiro internacional, mas a algumas reformas parciais. É preciso inventar novas fórmulas mediante as quais a gigantesca dinheirama para salvar o sistema se converta, mesmo que parcialmente, no seu contrário: na diminuição do poder impune do dinheiro
Como socialista, eu deveria estar exultante com a talvez mortífera crise que o sistema atravessa; mas eu sou socialista ao estilo de Marx: o sistema somente será superado (a língua alemã tem um vocábulo mais apropriado, que quer dizer simultaneamente superação por compreensão e absorção, mas eu não sei alemão e fico por aqui) quando os explorados já não suportarem a exploração e os exploradores já não tiverem força para o impor; e quando os primeiros tiverem construído a alternativa. Nada de rogar aos céus pela catástrofe, porque sempre, nessas condições, ela pode regredir à barbárie, como o nazi-fascismo nos avisou faz tempo.
Esta é uma crise da globalização, e não apenas global. Pois ela nasceu nas periferias, China e Índia, que já nem são periferias, senão parte do centro. É uma crise clássica de realização do valor, com a diferença de que desta vez a produção do valor se dá nas agora importantes periferias citadas, enquanto sua realização depende do consumo das classes sociais nos paises mais desenvolvidos. Que ela tome logo o aspecto de uma crise financeira, ça va sans dire, pois o dinheiro é o equivalente geral e toda produção de valor tende imediatamente a transformar-se em dinheiro, pois como sabíamos desde Marx, dinheiro não é mais do que a circulação de mercadorias, incluindo o chamado “capital fictício” cujo delirante desenvolvimento escondeu por muito tempo as raízes materiais da crise em gestação. Daí que nos paises centrais, sobretudo nos Estados Unidos, ela tenha imediatamente se convertido em crise financeira com a inadimplência das hipotecas, mas, no caminhar da carruagem, o setor produtivo nos países centrais logo acusou o golpe financeiro e entrou em recessão, com o risco de transformar-se na primeira grande Depressão, com D maiúsculo, depois de Trinta.
Está-se apelando a Keynes, mas o teórico de Cambridge elaborou uma teoria para uma moeda nacional, com poder regulatório decidido por Estados nacionais, e já não é o caso; e mais, a economia norte-americana sempre teve um baixíssimo coeficiente de exportações/importações sobre o PIB, o que fazia com que a política monetária do FED cobrisse o amplo espectro da circulação e imediata repercussão sobre o setor produtivo, sem escapes pela tangente do setor externo.
Acordo global
A reunião do G20 apontou saídas: uma deliberação global para uma crise global, já que o poder monetário nacional, mesmo da potência maior, não é suficiente. Vai-se caminhar não para uma moeda global, mas para acordos políticos; longe, portanto, tanto da fórmula de Keynes, derrotada em Bretton Woods há 70 anos, quanto do padrão-dólar da hegemonia monetária total dos EUA no longo período pós-Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, após 1971, quando Dick Dirty (o sujo Nixon) decretou a não paridade entre o dólar e o ouro. Mas o sistema não sairá igual: tem razão José Luis Fiori, de que este não é, outra vez, o “canto do cisne” da hegemonia norte-americana, mas são evidentes os sinais de que os EUA já não têm poder para exercer uma hegemonia à custa dos outros. Até porque as maiores aplicações em letras do tesouro norte-americano são chinesas e qualquer nova política monetária em escala global tem de levar isso mui em conta.
Em que consistiriam remédios keynesianos para uma crise global? Em primeiro lugar, para repor as moedas, nacionais ainda e por muito tempo, pois o sistema não é de escambo; tampouco existe um poder que substitua os Estados nacionais e, portanto, suas moedas. Nessa direção estão indo os acordos. Repor também a credibilidade nos títulos, pois jamais o sistema voltará a ser o que nunca foi – isto é, a total equivalência entre produção e circulação. Em que pese nosso desprezo moral pelos especuladores, eles são parte do sistema. Em terceiro lugar, reativar o crédito, sem o qual o sistema não funciona; em quarto e decisivo lugar, voltar ao emprego rápida e maciçamente, pois a liquidez que interessa ao sistema é a de dinheiro no bolso dos trabalhadores e consumidores e no caixa dos investidores reais e não apenas dos especuladores.
Isso para que a equação keynesiana de produto = consumo + investimento volte a funcionar. Fora disso, a alta liquidez apenas no bolso dos investidores financeiros voltará a tentá-los ao cassino.
Deficiência teórica
É preciso dizer também que a indigência teórica tem alguma responsabilidade pelo tratamento tímido da crise, daí o recurso ao lorde que dorme o sono eterno em Cambridge. Apesar das boas descrições da crise, em que Stiglitz, do lado do establishment, e Chesnais pelo lado marxista, se destacam, descrições não são suficientes. A teoria mais promissora ficou nos prolegômenos do Marx de o “capital fictício”, mas nunca foi desenvolvida porque os marxistas creem, no que têm razão, que a moeda é a ferramenta maior da dominação de classe (volto a André Orléans e Robert Boyer com o insuperável La violence de la monnaie) e, portanto, tem de ser destruída. É aqui que se revela que Keynes leu Lênin, embora tivesse desprezo por Marx enquanto teórico. Ele abre seu clássico Treatise on money com a afirmação de que Lênin tinha razão: para destruir o capitalismo, a primeira coisa a fazer é destruir a moeda capitalista.
Não há uma teoria sobre a crise: do lado dos economistas do establishment, não é de esperar grande coisa; não há nos registros dos últimos 50 anos, com prêmios Nobel e tudo, nenhum aporte importante sobre o sistema capitalista e, muito menos, sobre suas moedas. Os desenvolvimentos mais premiados referem-se sempre a tecnicalidades dos processos financeiros. Do lado marxista, fora a contribuição de Chesnais, também há um grande vazio. Não sabemos, até hoje, qual a necessidade que o capitalismo tem da especulação financeira: ficamos sempre na condenação moral, mas esta não é suficiente. Um dos problemas centrais da deficiência teórica é que faltam os sujeitos da história, para dizer em jargão marxista.
O documento preparado pela
Comission of Experts, nomeada pela Organização das Nações Unidas, e publicado em 19 de março, lista uma série de medidas que, mesmo sem serem platitudes, repetem muito do que já se disse sobre a crise e de como sair dela. Ao lado, como sempre, de reafirmar as virtudes do sistema de livre empresa e de um comércio internacional sem protecionismo, tentação que está na esquina desta crise. Mas não há nenhuma alusão, por leve que seja, à instabilidade intrínseca do sistema, às suas tendências à crise, ao arrepio de lorde Keynes que, mesmo sendo aristocrata, ousou contrariar seus pares e, ao contrário da louvação, como bom probabilista, apostou que o sistema que repousa em bilhões de decisões privadas tem um componente de instabilidade e de irracionalidade global não desprezível. O que a teoria de sua época, como a agora dominante, tratou sempre como “desvios”. Ninguém foi nomeado para fazer a revolução do capitalismo, mas basta de conformismo e bom mocismo teórico.
Entre nós, a gabolice brasileira expressada pelo governo não tem muito a ver com a realidade que se desenrolará daqui por diante: o Brasil foi chamado a aportar dinheiro porque dele será a responsabilidade de dar socorro aos países da América do Sul que estão, mais ou menos, na sua “área de influência”. É a consequência da tremenda disparidade de poder econômico entre o Brasil e o que a imprensa e o próprio governo brasileiro gostam de chamar de “parceiros”. Afinal, quem tem 15% do PIB da Bolívia, como a Petrobras, ganha não apenas os bônus, mas os ônus desse subimperialismo.
Há que reconhecer que o governo brasileiro está na direção certa em matéria de emprego e de não se assustar regredindo a uma política hooveriana de corte dos gastos: o anunciado programa nacional de habitação, se posto realmente em ação, é o melhor remédio anticrise; mas, depressa, que a corda tá apertando no pescoço.
O sistema terá de ser muito refeito; não totalmente, porque não se trata de uma revolução, mas da confirmação de uma mudança estrutural cujo espelho financeiro ainda não refletia a mudança real. Portanto, mais espaço para China e Índia, e esta última deveria ganhar lugar até no Conselho de Segurança da ONU, não fosse o provável veto chinês. Essa confirmação dirá que o eixo dominante agora é Pequim-Nova Délhi-Washington, com Bruxelas em papel secundário, mas importante. Chega até para o Brasil, nos termos já definidos acima.
Paz armada
Na verdade, a crise não vai dar lugar a um novo sistema monetário e financeiro internacional, senão que a algumas reformas parciais. E o acordo entre países, com o Brasil comparecendo, não é sequer um novo Bretton Woods: é de uma paz armada que se trata. Lembra mais Ialta, com o estabelecimento de “zonas de influência”.
Quem diria que os EUA nacionalizariam, isto é, estatizariam financiadoras de hipotecas, a principal seguradora mundial e alguns dos bancos mais importantes, como já o fizeram a Alemanha e a Inglaterra? Está chegando a hora das grandes empresas, e a GM já está pedindo água com urgência. Mas não se trata de socialismo, como a mídia conservadora está alardeando: é outro ciclo de intensa socialização, tão comum no capitalismo. É a nova versão da cavalaria norte-americana abrindo o Oeste às grandes ferrovias e “limpando” o território dos seus antigos proprietários, os que nossos filmes favoritos chamavam de “peles vermelhas”. É a nova versão do Estado do Bem-Estar, em que os fundos públicos alavancam – oh, horrorosa palavra, Machado de Assis que me perdoe – a produção do valor.
Vai faltar o troco: se toda a história do capitalismo, muito ao contrário da lenda do “mercado livre”, é a história da formação do capital pela violência da moeda – obrigado, outra vez, André Orléans e Robert Boyer – e pela violência da usurpação sans ambages, o Estado do Bem-Estar foi uma construção possível pela força dos sindicatos e dos partidos de base operária, que reduziu a desigualdade aos níveis mais decentes que o capitalismo experimentou. O ciclo neoliberal fez explodir novamente as desigualdades, e a força dos elementos “socialistas no útero” foi pro espaço. É preciso inventar novas fórmulas mediante as quais a gigantesca dinheirama para salvar o sistema se converta, mesmo que parcialmente, no seu contrário: na diminuição do poder impune do dinheiro.
*Francisco de Oliveira é professor emérito da FFLCH-USP; membro do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania; ex-presidente do Cebrap (1993-1995). Publicou, entre outros: Crítica à razão dualista/ Ornitorrinco (Boitempo, 2003), Classes e identidade de classe na Bahia (Perseu Abramo, 2003), A noiva da Revolução/ Elegia para uma re(li)gião, (Boitempo, 2008).