Radiografia de uma “revolução colorida”
Quatro anos após a Revolução Rosa, a Geórgia comemora crescimento acelerado e forte entrada de capital externo. Mas avançam também desigualdade, desemprego, concentração de poder e nacionalismos xenófobosVicken Cheterian
Durante uma visita de rotina à alfândega de Opiza, perto de Tbilisi, capital da Geórgia, o presidente do país, Mikhail Saakachvili viu-se diante de cidadãos descontentes com as práticas governamentais. Decidiu demitir imediatamente o chefe e deu as seguintes diretrizes ao seu primeiro-ministro Zurab Nogaideli: demita todo o pessoal deste setor. Contrate gente nova, dê-lhes um salário de mil gel [1] e instruções precisas. Não quero mais ver pessoas atormentadas por aqui. Se estamos mesmo construindo uma economia livre, se quisermos que se desenvolva rapidamente e de modo dinâmico, devemos agir de modo que essas estruturas preocupem-se mais com os cidadãos [2]. No mesmo dia, o presidente ordenou o fechamento de outro setor, a Comissão Nacional Geórgia de Regulamentação dos Transportes, a qual qualificou de parasita. Tais fatos resumem o que se passa na Geórgia: uma rápida transformação social de cima para baixo.
Entre todas as revoluções coloridas não-violentas [3], a Geórgia é uma exceção. Enquanto as da Sérvia, Ucrânia, Líbano ou Quirguízia provocaram uma paralisia política — com um presidente e um primeiro-ministro que representam um, o antigo regime e outro, o campo reformista — os dirigentes georgianos da “revolução” ocorrida em 2003 [4] crêem-se autorizados pelo povo a mudar as coisas. Saídos do movimento, o presidente Mikhail Saakachvili e sua equipe dispõem, ao mesmo tempo, do poder e da vontade de reformar a sociedade.
Para compreender os objetivos da “revolução”, é preciso relembrar as razões que a provocaram e, portanto, o estado do país no fim do regime anterior. Com o ex-presidente Eduardo Shevanardze, a Geórgia desejava aproximar-se das nações ocidentais. Foi nessa época que Tblisi declarou sua intenção de integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O país gozava de liberdades políticas e pluralismo. No entanto, a democracia baseava-se, segundo Shevardnadze, num Estado fraco, o que não inspirou o respeito do Ocidente e não permitiu pôr em prática as reformas econômicas. Grupos criminosos e corruptos estavam no comando. Os “revolucionários” de hoje vieram da ala mais reformista e mais ocidentalizada do partido de Shevardnadze. No fim do ano de 2001, tinham decidido romper com o que se chamava a “raposa branca” para construir um Estado forte, capaz de modernizar o país.
Por trás das mudanças, um objetivo: romper com a Rússia, ocidentalizar-se
A transformação foi guiada por um objetivo: a ocidentalização. A Geórgia quer não apenas parecer-se com os países do Ocidente, mas também desempenhar um papel central nesse grupo de nações. “Para os ocidentais, somos um parceiro em potencial, não um paizinho que pede a proteção deles” [5], declarou o presidente Sakaachvili. O desejo de fazer parte do Ocidente é político, mas também ideológico e afetivo. Significa juntar-se a um mundo tido como moderno e deixar para trás um passado soviético visto como arcaico. É uma reação do imaginário a todos os males dos quais sofre a nação, sendo o primeiro entre eles a Rússia, vista ainda como soviética.
Por muito tempo, Moscou representou o caminho da modernidade – para o nacionalismo geórgio do século 19, para os mencheviques social-democratas do começo do século 20, para os comunistas geórgios comandados por seus compatriotas Stálin e Béria. Tal imagem desapareceu em 1989, quando o exército soviético abriu fogo contra manifestantes desarmados em Tbilisi, matando 19 pessoas. Desde então, a Rússia tornou-se o símbolo de todos os fracassos vividos pelo país. O sentimento anti-russo, aliás, permitiu unificar uma elite dilacerada por divisões profundas. Muitas conseqüências políticas decorrem dessas considerações emocionais e mesmo ideológicas.
Em alguns anos, a jovem Revolução Rosa impôs verdadeiras mudanças. O Estado afirmou seu poder tanto dentro do país quanto no cenário internacional. Conseguiu cobrar impostos, pagar regularmente o salário dos funcionários e pôr em prática projetos de infra-estrutura. Empreendeu uma luta enérgica contra a corrupção — um dos piores fracassos do antigo regime. Setores inteiros foram desmontados e reformados. O exército e a polícia, antes os símbolos mais visíveis da corrupção e da incúria do Estado, foram dissolvidos e novos oficiais foram recrutados.
As maiores transformações deram-se na educação. “A finalidade de nossas reformas é elevar o nível de nosso sistema”, declarou Gigi Tevzadze, reitor da Universidade Ilia Chavchavadze e um dos arquitetos das medidas adotadas. Durante qunze anos, não houve reforma alguma e as conquistas do período soviético não resistiram. Gigi acrescenta:” A degradação do ensino favoreceu a corrupção nesse setor”. Segundo ele, há alguns anos os estudantes tinham que pagar propinas de 500 a 15 mil dólares para ter acesso às universidades, que aliás tinham se tornado conservadoras. Muitos professores pensavam que seu papel se limitava a inculcar uma identidade nacional nos estudantes e não a dar-lhes conhecimentos básicos.
Educação e Saúde privatizadas. Direitos trabalhistas reduzidos
Agora, o Estado concede, segundo o modelo inventado por Milton Friedman, bolsas de estudos aos alunos, os quais influenciam diretamente, por meio de suas escolhas, a distribuição dos subsídios públicos às escolas e universidades. Os antigos professores – cerca de 90% do corpo docente da Universidade Shavarnadze – foram afastados e novos docentes, geralmente mais jovens, foram recrutados. Os salários foram multiplicados por quatro ou cinco. E a instauração de um exame vestibular em todas as faculdades reduziu a corrupção de maneira espetacular.
O novo poder prevê a privatização maciça das universidades até 2010 e a criação de vínculos mais estreitos com as empresas e doadores privados desejosos de financiar tais estabelecimentos. O setor da saúde também deve passar para as mãos dos capitais privados. Segundo fontes oficiais, 70 hospitais, num total de 108, já saíram do domínio público. O governo espera que os fundos de investidores privados permitam construir 100 novos estabelecimentos [6].
As reformas inspiram-se, portanto, no modelo neoliberal e, mais particularmente, no norte-americano. As leis trabalhistas foram flexibilizadas, permitindo ao empregador contratar e despedir à sua vontade. Os impostos sobre importações foram suprimidos, exceto para os produtos agrícolas. A administração, freqüentemente burocrática, foi reduzida e uma nova lei permitirá baixar o imposto sobre o lucro de 20% para 15%. Todas essas medidas procuram encorajar os investidores.
Para apressar as mudanças, concentração de poder e nacionalismo
A tomada do Estado pelo partido no poder, o Movimento Nacional Democrático permitiu essa recomposição maciça da sociedade. As condições nas quais se desenvolveu a Revolução Rosa levaram a uma forte concentração dos poderes. Para começar, a União dos Cidadãos, de Shevarnadze, desapareceu do cenário político no fim de 2003. Com ela, sumiu a possibilidade de um verdadeiro movimento de oposição. Os partidos “revolucionários”— o Movimento Nacional de Sakaachvili e o bloco dos Democratas — dirigido pelo ex-primeiro ministro Zurab Jvania – uniram-se para constituir a nova coalizão no poder: o Movimento Nacional-Democrata (MND). Soldadinhos da revolução, os estudantes de Kmara (Assez) juntaram-se a esse bloco, e seu movimento desapareceu. Mais ainda, as reformas constitucionais apressadas de janeiro de 2004 – alguns dias depois da revolução – reforçaram os poderes do presidente.
Nas eleições legislativas seguintes, em 28 de março, o MND obteve 66% dos votos. A despeito das críticas internacionais, eliminou as forças da oposição no Parlamento, aumentando para 7% o limite abaixo do qual um partido não pode ter representantes [7]. Assim o MND controla o poder legislativo e pode aprovar todos os seus projetos de lei. A morte do ex-primeiro-ministro e mentor de Sakaachvili, Zurab Jvania, em 2005, fez desaparecer o último obstáculo à criação de um poder piramidal. Simbolicamente, a bandeira do MND – cinco cruzes vermelhas sobre fundo branco – tornou-se a bandeira nacional, como se fundisse o partido dirigente e o Estado.
Aos olhos dos defensores do poder, a hegemonia do Movimento Nacional garante a realização de reformas rápidas: e ela é, portanto, indispensável, se Tbilisi não quiser cair na mesma armadilha em que sucumbiram Belgrado ou Kiev. Saakachvili foi abalado tanto pelo assassinato de Zoran Djindjic, o reformador sérvio, por adeptos do antigo regime, quanto pelas lutas internas do campo orangista em Kiev. David Darchiachvili, representante na Geórgia da Open Society Foundation — a fundação do bilionário norte-americano George Soros — avalia que a revolução foi realizada por uma elite, com apoio popular. Isso mostra a fraqueza de um processo que precisa ser, permanentemente, estimulado de cima. Paralelamente aos discursos sobre a democracia, assiste-se a uma recrudescência tanto do autoritarismo quanto do nacionalismo. Desde a Revolução Rosa, as violações dos direitos humanos — inclusive a tortura nas prisões — multiplicaram-se, enquanto a liberdade de imprensa viu-se reduzida [8].
Os conflitos etno-territoriais, que haviam contaminado o país no começo dos anos 1990, são de novo manchete nos jornais. A questão do estatuto das repúblicas separatistas da Abcásia e da Ossécia do Sul esteve ausente do debate político durante os acontecimentos revolucionários, mas a unificação territorial da Geórgia tornou-se prioritária logo em seguida. Em maio de 2004, a primeira tentativa de levar a Adjária — uma rica região costeira do Mar Negro perto da fronteira turca — para o regaço do Estado foi um sucesso. Por outro lado, a mesma operação para a Ossécia do Sul provocou violentos incidentes e agravou as tensões com a Rússia [9].
Em nome do “Estado forte”, autoritarismo e sacrifícios sociais
Essa não é a opinião da ex-diplomata francesa Salomé Zurabshvili, ministra de Relações Exteriores da Geórgia de março de 2004 a outubro de 2005. Segundo ela, não são os combates na Ossécia do Sul que explicam as tensões entre Moscou e Tbilissi. Pelo contrário: logo depois desses acontecimentos, as negociações sobre o fechamento das bases russas foram retomadas e Moscou aceitou evacuar completamente suas bases de Batumi e Akalkalaki até 2008. Tudo mudou quando, em setembro de 2006, quatro oficiais russos acusados de espionagem foram presos.
Tbilisi quis com isso atrair a atenção dos países ocidentais, a fim de acelerar sua entrada na OTAN. O resultado foi contrário, explica Salomé Zurabishvili. “Se se quer entrar para a Aliança, não é necessário se opor à Rússia; isso pode até esfriar o entusiasmo de alguns países quanto à adesão da Geórgia”. A diplomata chega a qualificar certos atos do regime de “neobolcheviques”. “A maneira como o MND concebe seu papel na sociedade, a educação da juventude nos campos patrióticos, a instrumentalização ideológica, tudo isso parece com um regime totalitário mais do que com um democrático. Por que esse regime recorre a tais instrumentos?” Um desses acampamentos de jovens deve levar, nesse verão, jovens patriotas até perto da Abcásia, república independente autoproclamada que nunca obteve o reconhecimento da comunidade internacional. Muitos temem que esses militantes tentem ultrapassar a linha de separação e provoquem violências numa região já bastante tensa.
O presidente Saakachvili tomou medidas para reabilitar o ex-presidente Zviad Gamsakhurdia, um líder bem controvertido, considerado até então responsável pelo caos que imperou na Geórgia no começo dos anos 1990. Em abril passado, o corpo do ex-chefe de Estado foi transferido por Tbilisi durante uma cerimônia oficial, sem o mínimo debate sobre seu legado político e os conflitos engendrados por seu nacionalismo. É verdade que o fervor patriótico dos dirigentes geórgios parece contraditório com seu compromisso a favor do neoliberalismo e da globalização. Mas essa distância permite ao Movimento Nacional concluir seu domínio sobre o país e impedir a emergência de uma forte oposição nacionalista.
“Os objetivos da revolução são simultaneamente o fortalecimento do Estado e da democracia, declarou Levan Ramishvili, diretor do Liberty Institute, associação que desempenhou um papel-chave na Revolução Rosa. É a chave da modernização da Geórgia. Insistindo nessa missão modernizadora, as autoridades justificam, ao mesmo tempo, as deficiências temporárias, a suspensão de algumas liberdades ou ainda os sacrifícios sociais, apresentados como uma etapa transitória rumo à realização do objetivo final.
Economia cresce rapidamente; desemprego e desigualdade, também
Se a Revolução Rosa não levou a uma democratização, terá permitido ao menos a modernização anunciada? A socióloga Marina Muskhelishvili é cética. Para ela, o que se passa é “uma verdadeira revolução, mas não se trata de democracia. Os revolucionários são yuppies globalizados que cresceram nesses últimos quinze anos, são neoliberais que dominam a informática e praticam o inglês”. Apenas de 5 a 6% da população conhecem essa língua, enquanto a parcela russófona, mais velha, da sociedade, que recebeu educação soviética, se vê marginalizada. Disso resulta uma forte estratificação das populações. Muitos têm a impressão de ser cidadãos de segunda classe, acrescentou Marina Muskhelishvili.
A Geórgia tem mesmo necessidade de sacrificar as liberdades adquiridas no fim do governo de Chevardnadze para construir um Estado e se modernizar? A socióloga acha que não. “É um projeto neoliberal, e não sei em quê se possa qualificá-lo de modernizador.” As políticas postas em prática não respondem aos principais desafios que a sociedade geórgia enfrenta — isto é, a desigualdade e o desemprego. Há 15 anos, a integração ao mundo ocidental passava pela privatização e o pluralismo político. Hoje, o caminho para a Europa deveria passar pela justiça social e pela luta contra a pobreza”, conclui.
Os dados econômicos fornecem, também, um balanço de contrastes. O Produto Interno Bruto (PIB) aumentou em 9%, em 2005 e 8% em 2006, enquanto as receitas fiscais reais aumentavam em 46%, em 2004, e em 15%, em 2005 [10]. No mesmo período, a porcentagem de pobres cresceu de 35,7%, em 2004, a 40% em 2006 [11], e o índice de desemprego subiu de 12,7%, em 2004, para 13,8%, em 2005. O salário médio mensal é de 45 euros, e a aposentadoria de 22 euros [12]. Se as receitas orçamentárias aumentaram graças aos impostos e às privatizações, um quarto do orçamento é destinado à defesa (ler nessa edição, Corrida às armas no Cáucaso).
Por trás da estabilidade aparente, o espectro de uma nova revolta
Na história de uma sociedade, o que se chama “revolução” representa, geralmente, um momento de ruptura radical. Mas pode-se também considerá-la, como Moshe Levin demonstrou em seus trabalhos sobre história russa e soviética, um prolongamento dos mesmos esquemas sócio-políticos sob formas diferentes [13]. Apesar da virada pró-ocidental e da retórica democrática, o quadro antigo se reproduz sob uma forma institucional renovada. Saakachvili é o terceiro presidente da Geórgia independente e, apesar do discurso sobre a mudança revolucionária, pode-se facilmente identificar a permanência de modelos antigos.
O primeiro presidente Zviad Gamsakhurdia foi eleito em 1991 com 86% dos votos, Eduardo Shevardnadze sucedeu-o em 1992 com 91%, e Saakachvili obteve, em 2004, 96% dos votos. Quando Gamsakhurdia e Shevardnadze afastaram-se do poder, não deixaram nenhum partido em condições de fazer o papel de oposição parlamentar. Se Gamsakhurdia foi derrubado por uma revolta armada, foi uma revolução de veludo que pôs fim ao reinado de seu sucessor, mas os dois foram obrigados a demitir-se por meios não-constitucionais.
Pode-se estabelecer muitos outros paralelos entre Saakachvili e aquele a quem ele substituiu. Quando Shevardnadze chegou ao poder no contexto soviético de 1972, tomou como tarefa principal a luta contra a corrupção, que levou à prisão de 25 mil pes
Vicken Cheterian é jornalista, autor de War and peace in the caucasus, Russia´s trouble 3d frontier, Nova York, Hurst/Columbia University Press, 2008.