Realidade e sobrenatural assustam na mesma proporção em ‘O dia escuro’
Coletânea de terror lançada pela Companhia das Letras reúne contos de grandes autoras brasileiras contemporâneas
Nos últimos anos, o terror tem recebido olhares renovados de artistas que se propõem a mergulhar nas nuances daquilo que assusta e causa desconforto. Não por acaso, a produtora A24 – responsável por filmes como A Bruxa (Robert Eggers) e Hereditário (Ari Aster) – passou de cult a mainstream, ao passo que o cineasta Jordan Peele se consagrou como um dos nomes mais criativos da indústria, ao dirigir Corra, Nós e Não! Não olhe!.
Na literatura, as escritoras argentinas, Mariana Enriquez e Samanta Schweblin ganharam notoriedade com tramas em que o terror psicológico divide espaço com acontecimentos sobrenaturais. Já a sul-coreana Bora Chung apostou no realismo fantástico, no folclore e até na ficção científica para escrever um dos livros de terror mais criativos dos últimos anos: Coelho maldito, finalista do International Booker Prize e publicado no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Hyo Jeong Sung.
Também não faltam exemplos de bons livros brasileiros do gênero publicados recentemente, como Gótico Nordestino (Alfaguara), de Cristhiano Aguiar, e Porco de Raça (DarkSide Books), de Bruno Ribeiro. Bruno, aliás, também aparece na boa coletânea O novo horror (O Grifo), organizada por Daniel Gruber e Irka Barrios, com 20 contos fortemente influenciados por filmes como O Babadook (Jennifer Kent) e Midsommar (Ari Aster).
Agora, nesse Dia das Bruxas, chegam às livrarias a nova aposta do terror nacional: O dia escuro (Companhia das Letras), organizado por Fabiane Secches e Socorro Acioli, com 20 contos escritos por autoras brasileiras.
A história que abre a coletânea é aquela que provocou as escritoras para que escrevessem suas próprias narrativas de terror: O dedo, de Lygia Fagundes Telles, conto publicado originalmente em 1981, no livro Mistérios (Nova Fronteira). No enredo, o personagem-narrador encontra um dedo humano na praia e passa a imaginar as possíveis histórias por trás desse acontecimento sinistro.
Ao longo do livro, as histórias exploram com originalidade e sensibilidade o horror em suas variadas formas. O terror social, por exemplo, aparece em narrativas como Profundeza, de Eliana Alves Cruz, que conta a história de um herdeiro escravocrata que recebe a visita de espíritos em busca de justiça. Cidinha da Silva e Andréa Del Fuego – em A água me contou um segredo e Roma, respectivamente – também seguem por esse caminho e apresentam histórias de assassinos que têm certeza da impunidade. A transfobia e a xenofobia aparecem como plano de fundo nos contos Ginecomastos, de Amara Moira, e São Paulo é como um mundo todo, de Socorro Acioli.
O terror mais convencional, com criaturas ou assombrações, também dá as caras – e na maioria das vezes vem acompanhado de críticas sociais. O reino lá de fora, de Micheliny Verunschk, é uma das narrativas mais aterrorizantes, com direito a uma reviravolta fantasmagórica capaz de provocar arrepios. Em Cão dos infernos, de Laís Romero, a protagonista recebe uma visita do demônio (tão real quanto metafórico), enquanto em Melhor nada saber, de Maria Valéria Rezende, uma menina percebe que seu corpo está ganhando nova forma. Já em Paixão de santidade, de Dia Nobre, a personagem central se encontra com um anjo mal-intencionado.
Natércia Pontes, Fabiane Guimarães e Marcela Dantés – em Chorona, A troca e Gilda, respectivamente – exploram situações aterrorizantes envolvendo mães e filhas, ao passo que Natalia Borges Polesso reforça que até mesmo pássaros podem ser sinistros.
O terror psicológico e repleto de alegorias ganha destaque em contos como Coração da aurora, de Ana Rüsche, e Época de milagres, de Mariana Salomão Carrara. A violência explícita aparece em Pintinho verde, de Jarid Arraes, conto que traz uma das personagens mais assustadoras de todo o livro.
Carola Saavedra apresenta, em Neon, uma narrativa repleta de metalinguagem e Trudruá Dorrico recorre ao terror futurista em Aonde tem vento eu vou. Flavia Stefani, por sua vez, trabalha o suspense crescente numa história que se passa durante um jantar em Coma antes que esfrie.
Assim, O dia escuro não é apenas uma excelente coletânea de contos de terror, mas um inventário dos horrores enfrentados diariamente por mulheres, além de um registro do grande momento vivenciado pela literatura brasileira. Aqui, os contos assustam não apenas porque apresentam situações inusitadas, violentas e claustrofóbicas, mas também porque se parecem muito com a realidade. Não por acaso, no melhor estilo Jordan Peele, muitas das narrativas contam mais de uma história ao mesmo tempo. E, na maioria delas, as alusões ao dia a dia perturbam mais que a fantasia.
A obra tem apresentação de Fabiane Secches e reúne contos de Amara Moira, Ana Rüsche, Andréa del Fuego, Carola Saavedra, Cidinha da Silva, Dia Nobre, Eliana Alves Cruz, Fabiane Guimarães, Flavia Stefani, Jarid Arraes, Laís Romero, Lygia Fagundes Telles, Marcela Dantés, Maria Valéria Rezende, Mariana Salomão Carrara, Micheliny Verunschk, Natalia Borges Polesso, Natércia Pontes, Socorro Acioli e Trudruá Dorrico.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá), “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros) e “De repente nenhum som” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.