Refazenda e o autodescobrir pessoal e artístico de Gilberto Gil: 50 anos de um álbum clássico
Ao completar meio século, o álbum Refazenda continua sendo exemplo de uma construção pública em forma de arte reflexiva, onírica, libertária e lisérgica.
Poucos artistas possuem uma trajetória pessoal e profissional tão originais e revolucionárias como a de Gilberto Gil. Um autor sempre em prontidão para implodir velhas ordens e cânones, na perspectiva de cantar e poetar novas possibilidades, novas experiências de vida, de mundo. Sendo Refazenda, o álbum que ocupa lugar primordial na construção de seu arcabouço artístico.

Obra fonográfica que, neste mês, completou 50 anos, exemplo da expressão musical de um autor da época, ainda em readaptação aos cotidianos da sociedade brasileira, após sua volta do exílio em Londres. Um artista ávido em redescobrir as coisas do Brasil, nossas brasilidades, assim como a si mesmo, nesse processo de voltar às raízes.
Ainda em uma sociedade em plena vigência ditatorial, sendo constantemente vigiado e artisticamente cobrado pelos rumos que daria à sua carreira. Um artista não necessariamente interessado em desenvolver uma áurea de engajamento político tradicional, porém mais preocupado em dialogar com os silêncios que permeavam suas inquietações e inseguranças nesse processo de se reencontrar com a sua essência. No infinito do seu sertão baiano, onde se criou e aprendeu a usar régua e compasso para criar suas próprias paisagens e nunca se perder pelo mundo!
Abre o disco cantando o samba de festa Ela, o seu amor por sua musa única, a música. Revalidando seus votos de amor e fidelidade: “Ela/Eu vivo o tempo todo com ela/Ela/Eu vivo o tempo todo pra ela” (Gil, 1975: faixa 01). Como se tornasse público o seu único e mais importante compromisso enquanto artista.
Para, em seguida, discorrer no lamento sonoro de “Tenho sede, exacerbando a inquietude que lhe consome, esperando a chuva lhe banhar, para saciar a sede – de água e afeto – que lhe aflige: “Traga-me um copo d’água/tenho sede/E essa sede pode me matar/Minha garganta pede um pouco d’água/E os meus olhos pedem teu olhar” (Anastácia & Dominguinhos, 1975: faixa 02). Gravação em que Gil se reencontra e encarna a figura do sertanejo, exercendo essa dualidade entre artista e obra, no decorrer do álbum Nos situando diante da alegria incontida do samba de abertura até uma introspecção de melancolia tão profunda, como que avisando aos ouvintes de que não estavam diante de uma obra usual e tradicional…
Do encontro entre a alegria inconteste e a melancolia sem fim, surge o espaço de congruências que nos revela Refazenda, canção que dá título ao álbum e que representa a busca de Gil por se encontrar com sua paz interior. Colocando-se enquanto alguém consciente da existência de algo maior, que escapa às lógicas de se virar em meio a uma sociedade moderna. Reafirmando seu papel de eterno aprendiz, aquele que nunca saberá tudo, mas que sempre buscará saber de tudo, nunca esquecendo de valorizar e aprender a cada momento dessa trajetória! Tendo a fazenda como a representação desse espaço de sapiência que existe e reexiste a todo momento: ‘Abacateiro, acataremos teu ato/Nós também somos do mato como o pato e o leão/Aguardaremos, brincaremos no regato/Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração’ (Gil, 1975: faixa 03). Que se constrói em um árduo e constante trabalho artesanal, quase sacro, de reinventar as possibilidades de viver em plenitude e satisfação, ao seu bel prazer. Sem medos, pudores ou temores. A sombra, e se alimentando, do eterno abacateiro de diferentes gostos, cores, tamanhos e frutas. Do seu eterno companheiro de aprendizagem, ao qual promete ensinar a namorar. Semeador de eternas amizades que aprendeu a ser.
Mas as inquietações persistem; o processo de expurgo de suas inseguranças ainda não terminou. Irrompe a pungência de Pai e Mãe, singela ao descrever o ‘novo eu’ que descobriu em suas andanças pelo mundo, cheio de receio de como se dará a acolhida por seus genitores. Implodindo os conceitos de Édipo ou de paixão paterna, e de toda ou qualquer vergonha sobre os seus afetos, ao reafirmar seus caminhos e suas escolhas. Sempre a encontrar nos outros o amor puro e incondicional que sempre terá de seus pais: ‘Eu passei muito tempo/Aprendendo a beijar outros homens/Como beijo o meu pai/Eu passei muito tempo/Pra saber que a mulher que eu amei/Que amo, que amarei/Será sempre a mulher/Como é minha mãe’ (Gil, 1975: faixa 04).
Momento de afirmação de sua maturidade, de sua própria condição humana diante das pessoas a quem mais amava e respeitava no mundo! Dissipação de qualquer mal-entendido ou conflito que possa ter havido durante a construção dessa relação dialética de pais-filho/filho-pais. Gerando uma situação de alívio que resulta na gravação de Jeca Total, que, em sua aparente simplicidade, louva a vida do homem comum, do matuto, falso bobo, o mais sábio de todos.
Que vive em paz consigo mesmo e com aqueles que o cercam. Em uma utopia por ele cantada, em que Jeca Total, versão moderna e contemporânea do Jeca Tatu, não mais anêmico ou doente pelas mazelas do nosso fracasso civilizacional. Mas enquanto a personificação de nosso benfeitor e protetor. Promulgador e defensor de nossos direitos cidadãos, de uma vindoura mitologia brasileira: “Jeca Total deve ser Jeca Tatu/Um ente querido/Representante da gente no olimpo/Da imaginação/Imaginacionando o que seria a criação/De um ditado/Dito poplural/Mito da mitologia brasileira/Jeca Tota” (Gil, 1975: faixa 05). Sem procurar fazer mal a ninguém. Sem mais nada a se preocupar, a não ser o de se perder durante o seu correr no decorrer da História.
Após entoar os versos celebratórios ao ideal de um Jeca Tatu redivivo, Gil apresenta a sua preocupação em realizar uma canção para tocar no rádio. Somos apresentados para Essa é pra tocar no rádio, de certa forma, uma forma de remédio sonoro capaz de vencer qualquer tédio: “Essa é pra tocar no rádio/Essa é pra tocar no rádio/Essa é pra vencer o tédio/Quando pintar/Essa é um santo remédio/Pro mau humor/Essa é pro chofer de táxi/Não cochilar/Essa é pro querido ouvinte/Do interior” (Gil, 1975: faixa 06).
Se dá como um mimo tanto ao ouvinte do interior, quanto ao trabalhador comum, que precisam de um animo para superar sua rotina de labuta. Até para a moça dengosa, para que todos possam amar mais e melhor. Take oriundo das gravações canceladas do que teria sido o seu disco de estúdio de 1973, mas que foi reaproveitada ao conceito de Refazenda, tendo inserida o acordeão de Dominguinhos. Que acabou por enfatizar o uso do lúdico enquanto poder transformador de realidade.
Não deixando com isso, de reafirmar publicamente a sua condição de músico popular. Na sua busca em acabar por tocar no rádio… Sempre em sentido de buscar alegrar o povo, mesmo em meio a tempos nem sempre fáceis. Um artista no sentido pleno de buscar cantar para o povo, o seu povo.
Em especial por épocas em que “a alegria estava então, tão longe… Assim se dá Ê, povo, ê, canção em que Gil parece reconfortar o seu público, como que a dizer que dias melhores ainda virão: “Tão longe/A alegria estava então/Tão longe/O seu sorriso de verão/Eu sei/Quanto custou ter que esperar/Até/Seu precioso bom humor voltar/Ê, povo, ê, povo, ê/Desabafa o coração/Ê, povo, ê, povo, ê” (Gil, 1975: faixa 07). Que um dia todos haveriam de voar, em um grande balão azul, livres, pelo céu! Uma das mais belas canções de Gil, notável em sua construção poética e narrativa de falar tanto, aparentemente não falando nada!
Mas em uma obra artística baseada na busca pelo equilíbrio, temos a seguir Retiros Espirituais, faixa sonora em que Gil assume a sua maluquice em estar em silêncio, por vezes vacilantes, vivenciando coisas simples e mundanas, junto da pessoa amada, em paz espiritual: “Nos meus retiros espirituais/Descubro certas coisas anormais/Como alguns instantes vacilantes e só/Só com você e comigo/Pouco faltando, devendo chegar/Um momento novo, vento devastando como um sonho/Sobre a destruição de tudo/Que gente maluca gosta de sonhar/Eu diria sonhar com você jaz nos espirituais sinais iniciais desta canção/Retirar tudo o que eu disse, reticenciar que eu juro” (Gil, 1975: faixa 08). Indo para locais em que sonhos se tornam realidades e não podem – por ninguém – ser censurado. Como se ela e Ê, povo, ê fossem faces diferentes, mas complementares, de uma mesma moeda. Ao qual Gilberto Gil exerce, através de sua arte, exaltação das maravilhas excepcionais que se escondem nas miudezas de nossos cotidianos.
Um artista em busca de se despojar de suas ansiedades e receios, que encontra tempo – e não se culpabiliza ou se deixa culpabilizar – para brincar. De caçar passarinhos, como um rouxinol, depois de jogar o seu anzol no céu para pescar o céu. Temos O Rouxinol, parceria com Jorge Mautner, o Gil lisérgico. Aquele que canta o seu desbunde – em plena época de “sobriedade e seriedade artística” – como forma de preservar a sua sanidade em tempos tão loucos de irracionalidade e desumanidade ditatorial. Entoando: “Cantando um rock com um toque diferente/Dizendo que era um rock do oriente pra mim/Cantando um rock com um toque diferente/Dizendo que era um rock do oriente pra mim” (Gil & Maunter, 1975: faixa 09). Como forma de não se perder, ou desaparecer, em meio a loucura da vida real. Sua forma de fazer constar a especificidade de seu protestar artístico ante a barbárie que se fazia vigente ao seu redor.
Um artista em busca de se encontrar, de se equilibrar, fisicamente, emocionalmente e espiritualmente. Que nos apresenta toda essa trajetória na concepção e realização de Refazenda se desnudando perante o público, se revelando como é de fato. Com suas imperfeições, inseguranças, dores, sonhos e perspectivas. Deixando ao seu final, a impressão de que o seu processo de redescoberta ainda estava em aberto… Apesar das experiencias e vivências das quais emergiu revigorado e renovado em continuar o seu processo de saber quem é e qual o seu lugar no mundo!
Realidade de incompletude que se manifesta com a execução de Lamento Sertanejo, em que Gil enquanto nova pessoa, desenvolve um duplo “eu lírico”. Tendo um o enfoque de retrabalhar o poético acerca do êxodo que se deu da população do sertão nordestino – desde o período de industrialização nacional, pós “Segunda Guerra Mundial”, mas também, durante o “milagre econômico” entre os anos 1960 e 1970 na ditadura militar – em direção ao chamado “sul maravilha”. Relatando todas as dores, anseios, inseguranças e saudades que marcaram esse processo tão definidor e característico do que somos hoje – para o bem ou para o mal – enquanto sociedade. Da solidão que marca corpo e alma desses tantos milhões que saíram a esmo, por desbravar em busca de novas vidas e outras possibilidades de existências.
O que nos permite elencar com o outro “eu lírico” trabalhado subjetivamente em sua letra, que é o de Gil enquanto o sertanejo por ele cantado. Perdido, isolado, machucado e desesperado em meio a uma sociedade ao qual não mais reconhece. A qual não se vislumbra inserido ou contextualizado: “Por ser de lá/Do sertão, lá do cerrado/Lá do interior do mato/Da caatinga do roçado/Eu quase não saio/Eu quase não tenho amigos/Eu quase que não consigo/Ficar na cidade sem viver contrariado” (Dominguinhos & Gil, 1975: faixa 10). Por isso, caminhando a esmo, sem rumo ou destino, simplesmente e amargamente, sobrevivendo…
Necessidade de se (re)encontrar, perante o mundo e diante de si, que melancolicamente antecede o debate basilar que permeia todo o disco, que é a busca pelo equilíbrio entre aquilo que ele foi, aquilo que ele estava sendo e aquilo que ele poderia vir a ser. Com Meditação, a canção que encerra o trabalho fonográfico, como uma simbolização acerca de como agora ele iria almejar se encontrar no mundo. Para a partir daí, constituir os seus lugares de vivências e interações: “Dentro de si mesmo/Mesmo que lá fora/Fora de si mesmo/Mesmo que distante/E assim por diante/De si mesmo, ad infinitum/Tudo de si mesmo/Mesmo que pra nada/Nada pra si mesmo/Mesmo porque tudo/Sempre acaba sendo/O que era de se esperar” (Gil, 1975: faixa 11). Não necessariamente, visando responder a todas as suas dúvidas ou inquietações, mas olhar e compreender essas contradições e incompletudes, que lhe constituem enquanto ser humano em constante construção e em eterna imperfeição.
Refazenda é um álbum que pode ser entendido, enquanto um registro do momento de redescoberta acerca de um artista sobre si e o seu mundo. A procura[1] de seu lugar, de se (re)descobrir quem era de fato em meio as turbulências que a tudo e a todos modificava, transformava. Em uma época de incertezas, mas ao mesmo tempo de esperanças que pareciam infinitas. Buscando aprender e a lidar com os silêncios da ignorância e do medo, que habitavam seu ser.
Por isso, sendo uma obra de escape ante as normativas arcaicas que se buscavam perpetuar sobre as pessoas. Mas não de fuga ante seu compromisso artístico de enfrentar e procurar alternativas a essa mediocridade de vida. Não é obra alienante ou desprovida de consciência social ou política, mas sim manifestação de arte popular que se dá para fora e além do que dela se espera. É o exemplo de uma construção pública em forma de arte reflexiva, onírica, libertária e lisérgica. Sem deixar de ser compromissada ante os desafios e as demandas de seu tempo histórico.
Um artista buscando edificar as suas próprias formas de luta e resistência contra o sistema opressor e ditatorial vigente, ao mesmo tempo em que se reinventava não só artisticamente, mas – principalmente – enquanto pessoa. Tendo Jeca Total, Ê, povo, ê, Retiros Espirituais e Lamento Sertanejo, enquanto exemplos basilares dessa práxis artística política não usual, em negação ao nosso tradicionalismo político militante. Com Gilberto Gil, inserido ao período ápice de seu esplendor criativo, buscando se encontrar, e se localizar, num mundo cada vez mais repleto de novos desafios e possibilidades. Em que Refazenda representa o primeiro passo dessa sua caminhada artística-pessoal, do que viria ser chamado de Trilogia Ré.
Agora reconectado ao mundo, após redescobrir o sertão real e lúdico, que sempre viveu em seu interior. Gil, podia partir pela busca de sua completude, no sentido de compreender com a dicotomia entre ancestralidade e modernidade, que o seu descobrir em ser negro e de sua negritude durante seu exílio lhe causou. A lhe instigar a entender o seu lugar enquanto um homem negro dentro da sociedade brasileira e sua discursiva mítica de democracia racial.
Refazenda ressoaria em “Refavela”, como forma de referencial teórico e artístico, de um autor em sua busca libertária de identidade pessoal e exercício político não tradicional. Mas isso é outra história, dessa linda trajetória de vida e obra, desse gigante chamado Gilberto Gil! Que será contada em outro momento!
Pois agora é hora de festejar os 50 anos de uma das obras mais corajosas – e belas – da discografia nacional. Ainda tão atual e sofisticada, sem deixar de ser radicalmente popular, em seu conceito e poesia.
O que só atesta a atemporalidade artística e política de sua obra! E a isso, damos o nome de clássico!
Christian Ribeiro é doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. Membro do grupo de pesquisa “Pensamento social: contextos, instituições, intelectuais e movimentos” do IFCH/UNICAMP.
Referência fonográfica:
GIL, Gilberto. Refazenda. Gravadora: PHILIPS, 1975.
[1] Processo que também se evidencia pela sua composição enquanto uma miscelânea sonora composta pela miscelânia de ritmos nacionais como forró, coco, xaxado, choro, samba, samba canção, com ritmos internacionais blues, rock and roll, rock, reggae, free jazz, psicodelia. Sem deixar de produzir uma expressão artística de brasilidade, mas de caráter universal. Não compactuando dessa forma com a visão elitista e depreciativa, de associar tudo aquilo relacionado ao sertão, enquanto expressão folclórica regional de valor artístico e estético restrito. Por isso, limitado em seu alcance e influência.