Reflexões sobre o bolsonarismo
Bolsonarismo é adoração cega por um mito que promete o novo mundo, o paraíso na terra. É histeria coletiva (ou delírio coletivo) decorrente de hipnose coletiva. É passividade diante da conjuntura histórica. É, mais facilmente, e na prática, irresponsabilidade política
Venho insistentemente tentando compreender o fenômeno do bolsonarismo que se exasperou neste ano eleitoral e que penetrou nas mais variadas camadas socioeconômicas do Brasil. É deveras reducionista responder a esse movimento como simples antítese à generalizada corrupção desencadeada pelo PT nos governos Lula e Dilma. Por essa razão, ou seja, por não aceitar resposta óbvia e incompleta, procurando então uma conclusão mais elaborada, pesquisei noutros argumentos: na teoria política, na história, na sociologia, na psicologia comportamental e na psicanálise. Esse texto é, portanto, um exercício pessoal de reflexão sobre o bolsonarismo, que ao público aqui compartilho. Apenas exercito, muito respeitosamente, o meu direito constitucional de opinião.
Gostaria de pontuar algum marco temporal para esse fenômeno. Arrisco dizer que o afastamento da Presidenta Dilma, em agosto de 2016, ainda não configura essa referência de tempo. Naquele período, Bolsonaro era deputado federal de menor atuação no movimento do impeachment. Recordemos que o afastamento foi processado pelo Congresso Nacional em duas votações (Câmara dos Deputados e Senado Federal), a partir de denúncia encaminhada à mesa da Câmara (por Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaina Paschoal) e movimentado por Eduardo Cunha, então Presidente daquela Casa. O Supremo Tribunal Federal foi acionado diversas vezes, por todos os lados, e manteve o processo, dando-lhe rito competente. Instigadas pela FIESP e seu pato amarelo, as ruas foram tomadas pela classe média, verdadeiro sustentáculo da economia nacional. Ao fim e ao cabo, Dilma teve o mandato cassado pelo Senado. Michel Temer assumiria a Presidência da República. No rito de afastamento, de dezembro de 2015 a agosto de 2016, Bolsonaro apenas discursou e votou na Câmara, como os demais deputados favoráveis ao impeachment. Nada mais.
Nessa mesma época a operação Lava-Jato assumia relevante papel na estrutura política brasileira. Há dois anos de sua primeira fase, deflagrada em março de 2014 com as primeiras dentre centenas de prisões e apreensões, atingia uma espécie de clímax com as delações premiadas de altos executivos das maiores empreiteiras do país, capazes de alcançar especialmente o ex-Presidente Lula – e que culminou com sua notória prisão executória (sem que, no entanto, a ação penal tivesse transitado em julgado).
Como antes dito, afastada a Presidenta, tomou posse o até então vice-Presidente Michel Temer, cujo governo – que agora chega ao fim com o menor índice de popularidade da história do Brasil e com pouquíssimos avanços senão a verdadeiros retrocessos históricos, mormente no campo das garantias fundamentais e sociais – contribuiu para a formação dessa mentalidade de que tratarei adiante.
Em suma: corrupção nas entranhas do PT e dos governos Lula e Dilma; exposição de todo esse panorama a partir da midiatização dos processos (com transmissões “ao vivo” das sessões de julgamento do STF e do TRF/4ª); catástrofe do governo Temer… fatores primários que geraram clamor popular e demanda por “mudança” do cenário político nacional. O vigoroso deputado federal Jair Bolsonaro está atento a esse quadro e sugere uma pré-candidatura à Presidência da República pelo PSC. Mas nesse momento ainda não conhecemos o bolsonarismo, eis que está sendo gestado.
Em 2017 a cena eleitoral ganhou vigor. A condenação de Lula em primeira instância (julho de 2017) distribuiu ao mundo inteiro as primeiras capas dos mais relevantes jornais e serviu de mote para discursos carregados de satisfação: corrupto, ladrão, cadeia, comunismo, Cuba, Venezuela etc. eram as palavras-chave desses discursos. Outras condenações – e prisões – se somaram e se seguiram: José Dirceu, João Santana, João Vaccari, Renato Duque, Pedro Barusco, Marcelo Odebrecht, Eduardo Leite, Eduardo Cunha, Gim Argello, Pedro Corrêa, Luiz Argôlo, Rodrigo Rocha Loures etc. etc. A prisão de Lula, em abril de 2018, foi o grand finale daquele evento político de 2016. Até então apontado como favorito em todas as pesquisas eleitorais, seria impedido de concorrer por ocasião da “Lei da Ficha Limpa” (tanto pela prisão em si quanto pela condenação colegiada).
Não obstante, desde a tomada de poder por Michel Temer as especulações em torno dos nomes que disputariam as eleições de 2018 ecoavam nos corredores do Planalto. Os pequenos saíram na frente: fortes sinais desde logo prenunciavam a [eterna] candidatura de Eymael; Marina Silva retornava à cena – e dela saiu completamente derretida; o próprio Temer dividia com Meirelles a atenção do (P)MDB; no tucanato os nomes de sempre eram Aécio, Serra e Alckmin (destacando-se o último logo após o aparecimento dos demais nos autos da Lava Jato); Ciro Gomes pelo PDT corria e correu como terceira via; no PT, como dito, Lula era e sempre foi o nome elementar que, impedido pelo Judiciário (do piso ao teto), foi substituído por Haddad às vésperas do prazo de inscrição; ainda, Boulos; o emblemático Cabo Daciolo; Álvaro Dias; Amoêdo; Goulart; Vera; e Bolsonaro.
Vamos a este último, objeto de minha reflexão. Jair Messias Bolsonaro elegeu-se deputado federal pelo Rio de Janeiro em 1990, e desde então vem sendo reeleito. (Antes disso, havia servido o Exército Brasileiro por 11 anos, e atuado como vereador eleito no Rio de Janeiro por 2 anos.) Está em seu sétimo mandato na Câmara e, portanto, há 28 anos na Praça dos Três Poderes. Acompanhou os governos Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer. Ao todo, e nesse período de 28 anos como deputado, esteve filiado em 9 partidos políticos, aprovou 2 projetos de lei e 1 emenda constitucional.
A ele se vinculam os bolsonaristas de quem decorre o bolsonarismo. Insistindo no marco temporal desse fenômeno, cravo o ano de 2017, após as consagradas impressões de que o governo Temer ia mal. Da prisão de Lula em diante os ânimos se acirraram ainda mais. Redes sociais como as armas mais letais, além da faca de Adélio (aqui, as nossas sinceras homenagens e respeito ao candidato).
E quem são os bolsonaristas? Digo muito respeitosamente: é provável que nem eles mesmos saibam quem são, na essência. Moralistas (tem também os falsos moralistas), apoiam-se exclusivamente naquele slogan anticorrupção do PT. Sobra pouco além disso. Na economia, alguns (pouquíssimos) até compreendem o projeto liberal do candidato – e eu nem discuto, ao menos aqui, a orientação ideológica dos eleitores, pois essa divergência é salutar para a democracia e o desenvolvimento das nações –; outros (também poucos, e até mesmo letrados!) convocam o discurso punitivista que faz eco aos notórios programas policiais de TV (“bandido bom é bandido morto”) e às decisões da Lava Jato; e há, evidentemente, aqueles tomados por uma insanidade agressiva que usa a “onda bolsonarista” para realizar as suas catarses, os seus espelhamentos comportamentais.
Todavia, em geral, e eu insisto nisso, a concepção bolsonarista é, antes de tudo, “anti PT”. Segundo os mesmos, o velho PT corrupto dos governos Lula e Dilma, das pedaladas fiscais, o PT de José Dirceu, de José Genoíno, Mercadante e Palloci, o PT da Petrobras, da Odebrecht, da OAS, do Léo Pinheiro, do Cerveró, do triplex, do sítio, dos doleiros… O bolsonarismo é, antes de tudo, uma corrente contrária às práticas governamentais do PT nos anos 2002-2016. (Esquecem os bolsonaristas, no entanto, e propositadamente, todos os avanços sociais que o governo do PT conquistou nesse período; não é o caso de tratar disso aqui.)
Mas não termina assim. Um passo depois do discurso “anti PT” – e muito aquém da verdadeira compreensão econômica, jurídica e política do plano de governo de Bolsonaro – os bolsonaristas, notadamente inspirados em seu líder, invocam práticas questionáveis. Pelas mais correntes redes sociais – Facebook, Twitter e Whatsapp – líderes e seguidores avassalam propagandas discutíveis, senão falsificadas, nos mais variados temas políticos e sociais. Na pauta, declaradamente: preconceito, racismo, homofobia, misoginia, xenofobia, intolerância, autoritarismo, agressão, tortura, além de armamento, prisão, repressão…
Diante desse quadro, o meu principal questionamento é esse: o que leva alguém a seguir essa prática ou esse discurso? Há pelo menos duas dúzias de referências teóricas para fundamentar pretensas respostas. Vou apenas de Freud, Jung e Adorno para tentar responder.
Em 1921, Sigmund Freud publicou “Psicologia das massas e a análise do eu”. Não deixa de ser uma retomada da justificativa posta em “Totem e tabu” (1913), em consonância com a contribuição de Carl Gustav Jung – que publicaria “Arquétipos e inconsciente coletivo” em 1969. A essência da primeira obra aqui citada é relevantíssima para a minha problemática. Da psicologia individual à psicologia social (devidamente integradas), Freud explica que as relações sociais são internalizadas e toda a sua conjuntura reforça o ego (o “eu”) que se volta, novamente, à sociedade. Ou seja, o que faz a sociedade (reforçada), além do próprio sujeito, é o inconsciente, e este é retroalimentado pela sociedade a partir dos focos de liderança. (A antropologia chegou ao mesmo destino, embora por caminho diverso.) A influência do líder conduz à formação da psiqué e, por sua vez, da própria sociedade. Pelo seu fascínio, o líder constitui, assim, o “ideal do ego” (o “eu ideal”). O sugestionamento na hipnose – à qual Freud destaca 3 capítulos nessa obra – decreta processos simbólicos de conquista e manutenção desse fascínio, numa espiral contínua e centrífuga.
Já o inconsciente coletivo, essa “camada mais profunda da psiqué”, por sua vez, decorre de imagens herdadas de um passado ancestral. Isso é psicológico e mesmo físico (biológico, genético), e seus conteúdos estimulam um padrão previsível (e esperado) de comportamento pessoal. A ele se relacionam os arquétipos, protótipos ou modelos de ação gravados no inconsciente e capazes de formar a personalidade humana. Dentre inúmeras possibilidades de arquétipos, Jung declinou especial destaque para o arquétipo do herói: referência de personalidade para toda a humanidade, representante de um mundo melhor, mais agradável e encantador do que o mundo em que vivemos; o líder hipnotizante freudiano, a quem todos querem seguir e em quem todos se espelham.
Em suma – e sei que posso soar rude, mas não é intencional; é apenas a minha conclusão parcial –: os bolsonaristas estão hipnotizados coletivamente, e seguem o arquétipo do herói materializado no líder Bolsonaro rumo a um novo mundo, um mundo melhor.
Mais um texto, dentre inúmeros, que pode contribuir com a fundamentação dessas reflexões é o do Theodor W. Adorno, publicado em 1950, intitulado “A personalidade autoritária”. Nele, e também referenciando Freud (e Maurice Samuel e Otto Fenichel, dentre outros), o autor aborda o conceito antropológico de “homem autoritário”: o sujeito de uma combinação de ideias da sociedade industrial com crenças irracionais. “Ele é ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e sempre temeroso de não ser igual aos outros, ciumento de sua independência e inclinado a se submeter cegamente ao poder e à autoridade”. Assim, a ideologia assume papel central na configuração dessa autoridade e na distribuição desse conceito às massas de apoiadores (aqueles que seguem o líder). Estratégias ou táticas discursivas são levadas em conta para dizer, para negar, para alterar a realidade (fake news) ou mesmo para não-dizer (não comparecer ao debate, p. ex.).
A personalidade do homem autoritário, suas estratégias de confronto (e de não-confronto), o mito do herói ao qual ele está envolto, a consagração e apreensão do inconsciente coletivo, a hipnose coletiva de adoração do líder e a propagação de toda a sua mitologia (não por acaso nem por brincadeira os bolsonaristas chamam o líder de “mito”; é inconsciente revelado no ego, com forte prevalência do id – o instinto, o impulso, o “vilão”) formam, agora sim com maior consistência teórica, o produto “bolsonarismo”.
Bolsonarismo é adoração cega por um mito que promete o novo mundo, o paraíso na terra. É histeria coletiva (ou delírio coletivo) decorrente de hipnose coletiva. É passividade diante da conjuntura histórica. É, mais facilmente, e na prática, irresponsabilidade política.
A esperança – porque sempre há esperança – vem no sentido de que isso não durará muito. (Nos tempos atuais, nada dura muito.) Um movimento sem consistência como esse há de ser rapidamente esquecido, senão rejeitado pelos seus próprios partícipes. A hipnose termina num estalar de dedos.
André Peixoto de Souza é doutor em Direito pela UFPR e doutor em Educação pela UNICAMP.