Renda básica é conquista da sociedade civil organizada
A pandemia da Covid-19 é mais um desses momentos de sua história em que o Brasil vivencia um eloquente exemplo de como a mobilização popular é a real responsável pela conquista de direitos. Em resposta ao rápido avanço da pandemia, o Congresso aprovou e o Executivo federal sancionou em tempo recorde a renda básica emergencial, no valor de R$ 600 mensais por família de baixa renda, por três meses
Direitos para a maioria da população não são concedidos gratuitamente. Não são benesses do poder, dos ocupantes de cargos na estrutura do Estado. Toda conquista de direitos tem por trás a mobilização da sociedade civil organizada, ainda que isso seja pouco visível aos olhos do conjunto da população brasileira.
A pandemia da Covid-19 é mais um desses momentos de sua história em que o Brasil vivencia um eloquente exemplo de como a mobilização popular é a real responsável pela conquista de direitos. Em resposta ao rápido avanço da pandemia, o Congresso aprovou e o Executivo federal sancionou em tempo recorde a renda básica emergencial, no valor de R$ 600 mensais por família de baixa renda, por três meses.
No contexto atual, de incertezas e repentina necessidade de distanciamento social que o novo coronavírus impôs, o debate histórico da renda básica foi remobilizado nas periferias das grandes cidades brasileiras. Chegou aos deputados em menos de duas semanas, prazo entre a confirmação da primeira morte por coronavírus no país, no dia 17 de março, e a votação na Câmara, no dia 27. Apenas três dias depois, foi apreciado pelos senadores.
No dia 16 de março, uma segunda-feira, escritórios por todo o Brasil abriram a semana com os trabalhadores em home office. Ao mesmo tempo, ativistas e movimentos sociais deram início a um vigoroso movimento de chamar a atenção para a parcela dos brasileiros que não têm as condições materiais para praticar o isolamento social e se proteger do novo coronavírus, por viverem em áreas de grande densidade populacional e infraestrutura insuficiente, ou pelo risco de passarem fome sem trabalhar.
No dia 20 de março, Rede Brasileira de Renda Básica, Coalizão Negra por Direitos, Instituto Ethos, Nossas e Inesc lançaram uma petição online pela renda básica emergencial. Mais de 130 ONGs, institutos, fundações e redes de todo o Brasil se uniram à campanha, que obteve 500 mil assinaturas em apenas três dias e mobilizou a sociedade na demanda por uma resposta eficiente por parte das autoridades.
Em meio a uma condução errática da crise sanitária, depois de editar uma medida provisória que permitia suspensão de salários por quatro meses e de propor ajuda de apenas R$ 200 aos trabalhadores, o governo de Jair Bolsonaro tentou chamar para si a autoria do projeto. Via relatoria da proposta na Câmara, aumentou os R$ 500 propostos pela oposição para R$ 600. O fato é que o presidente encampou este valor porque já não havia ambiente na sociedade para rejeitar uma ajuda mais substancial aos trabalhadores.
Há muitos outros exemplos evidentes na história democrática recente do Brasil de que a conquista de direitos só se dá com a atuação da sociedade civil organizada. A lei Maria da Penha, de 2006, foi fruto da articulação de décadas dos movimentos de mulheres brasileiras, que tiveram um marco importante em 1985 com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
A longa luta do movimento negro no enfrentamento à discriminação e à violência estrutural contra a população negra está na base da lei que tornou o racismo crime, há pouco mais de 30 anos, do Estatuto da Igualdade Racial e da implantação de cotas raciais nas universidades.
A inclusão de capítulo específico na Constituição de 1988 que reconhece aos indígenas direitos permanentes sobre suas terras, sua cultura e modos de vida, resultou da notável participação política dos próprios indígenas naquele momento e da luta da sociedade civil organizada durante o processo da Constituinte.
Mais que nunca, nestes tempos em que o país precisa ser capaz de minimizar os efeitos da pandemia de covid-19 e garantir a dignidade de toda a população, reconhecer e fortalecer a atuação da sociedade civil é fundamental para fazer a diferença.
Ana Valéria Araújo é superintendente do Fundo Brasil de Direitos Humanos