Repristinando 1969
Ante a incapacidade de conter a crescente oposição ao regime, a Junta Militar, que então chefiava o Poder Executivo, aproveitou-se do recesso compulsório do Congresso para editar a Emenda Constitucional nº 01/1969, descaracterizando a Constituição então vigente. As mudanças foram tão significativas que a maioria dos doutrinadores as reputou como uma nova Constituição. Mesmo processo parece ter acontecido em dezembro de 2016
Ao concluir que há investigações que “trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”,1 o Tribunal Regional Federal da 4ª região provavelmente entendeu que apenas convalidava a conduta adotada pelo Poder Judiciário na operação Lava-Jato. Contudo, tal decisão ecoou em Brasília.
De fato, nos últimos meses, os demais poderes da República também se inspiraram em nosso passado recente, revelando que certas práticas autoritárias deixaram uma marca indelével no sistema político brasileiro.
Durante o último ciclo de ditadura cívico-militar, procurou-se dissimular as restrições aos direitos fundamentais mediante a outorga, ou melhor dizendo, a imposição de uma Constituição em 1967. Tratava-se de um mero verniz de legalidade, para um ambiente contaminado pela violência das agências policiais e militares.
Ante a incapacidade de conter a crescente oposição ao regime, a Junta Militar, que então chefiava o Poder Executivo, aproveitou-se do recesso compulsório do Congresso Nacional para editar a Emenda Constitucional nº 01/1969, descaracterizando a Constituição então vigente.
As mudanças foram tão significativas, que a maioria dos doutrinadores as reputou como uma nova Constituição, mais uma vez outorgada, a qual vigorou com algumas alterações até o sepultamento das pretensões políticas das Forças Armadas.
O marco formal da extinção dessa aventura autoritária consistiu na promulgação da Constituição Federal de 1988, cujo art. 3º enuncia diversos objetivos fundamentais, dentre os quais “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Enfim, num texto elaborado por uma Assembleia Constituinte, assumia-se o compromisso de reformar a estrutura econômica e social brasileira, legada pelo último regime de exceção, enquanto indutora da desigualdade excessiva de seus cidadãos. Sob o influxo de uma Constituição Dirigente, o Estado agora deveria priorizar a construção de uma nova sociedade, empregando seu orçamento para atender tal finalidade.
Passados mais de 28 anos, e 91 emendas depois, o Estado de bem-estar social instituído pela Constituição Federal vigente, ainda não era uma realidade, em que pese tenha garantido um patamar mínimo de custeio para a saúde e a educação, vinculando-o a percentuais da receita orçamentária.
Com mais de uma centena de dispositivos aguardando regulamentação, como é o caso do imposto sobre grandes fortunas e a restruturação do sistema financeiro para atender ao interesse da coletividade, a Constituição ainda observava o sistema tributário legado pelo regime de exceção anterior, cujo enfoque não é a renda auferida pelo contribuinte.
E mesmo nas situações em que houve alguma regulamentação, geralmente esta se revelou assaz tímida, em razão de um hiato valorativo entre a lei fundamental da República e a legislação que lhe deveria conferir eficácia. Tal é o caso da isenção tributária concedida aos lucros e dividendos, que acarreta uma renúncia fiscal de aproximadamente R$ 43 bilhões, conforme pesquisa do Ipea.2 Apenas na Estônia há medida similar.3
Em meio a tal quadro de anomia jurídica, ineficaz para a redução da desigualdade social, o país é assolado por uma violência crescente. Somente em 2015, foram registrados mais de 58 mil homicídios, para os quais o consumo e o tráfico de drogas e o alcoolismo figuram dentre as principais causas, conforme estudo divulgado pela ONU.4
A reversão desse quadro demandará investimentos consideráveis no tratamento dos usuários de substâncias psicoativas, afora sua prevenção, que também envolve consideráveis despesas em educação. Subentenda-se: os recursos atualmente disponibilizados para o custeio da educação e saúde são insuficientes para conter tal precarização da segurança pública.
Uma das causas para a insuficiência de recursos reside numa recorrente fraude contábil promovida no cômputo dos percentuais mínimos estipulados para o custeio de despesas relacionadas a áreas essenciais.
A partir de 1994, mediante emenda às disposições transitórias da Constituição Federal, foi promovida a desvinculação de 20% das receitas da União, com o objetivo de reforçar o superávit primário e custear os juros da dívida pública.
Nas mais de duas décadas seguintes, apenas 80% da arrecadação foram utilizados para estimar os percentuais destinados à educação e saúde; o mesmo pode se afirmar quanto às demais hipóteses de despesas constitucionalmente vinculadas. Aliás, em 2016, tal percentual de desvinculação foi majorado para 30% e ainda foi estendido para os estados e municípios. Sem perder seu caráter “provisório”, tal desvinculação vigorará até 2023, com o objetivo de melhorar a situação das contas públicas…
E, novamente a pretexto de conter o endividamento da União, o Congresso Nacional mais uma vez exorbitou seus poderes de representação da vontade popular, promulgando a Emenda Constitucional nº 95/2016. Porém, desta vez foi mais longe, pois vinculou à inflação a majoração das despesas com a manutenção de políticas públicas essenciais.
Em vez de suplementar a legislação brasileira, observando os preceitos que conformam a ordem constitucional, nossos parlamentares preferiram lançar mão de medidas exceção, que perdurarão por vinte anos, dessa forma repristinando práticas do nefasto regime antecedente.
Tal qual a Junta Militar em 1969, o Poder Legislativo excedeu os limites do poder de emenda à Constituição, com o objetivo de esvaziar seus fundamentos e objetivos, com um especial gravame nesse caso atual: as normas vilipendiadas, em seu conjunto, decorriam do Poder Constituinte originário, quando do pleno exercício de suas prerrogativas em inovar a ordem jurídica.
Enfim, a partir de 15 de dezembro de 2016, o Brasil conta com uma “nova” Constituição, desta vez outorgada pelo Legislativo, após anuir com um projeto apresentado pelo Executivo. Trata-se de uma Constituição Dirigente Invertida, na medida em que vincula: “toda a política do Estado brasileiro à tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada”.5 Em razão desse engessamento exacerbado, estimam-se perdas anuais de R$ 25,5 bilhões para a educação,6 ao passo que as projeções para o custeio da saúde não são otimistas.7
Essa medida traumática, aliada a diversos outros projetos de lei que tramitam com uma celeridade inusual – como é o caso do PLS 280/2016, que versa a respeito do abuso de autoridade, e a preocupante PEC 298/2016, que pretende conceder plenos poderes de “Assembleia Constituinte” a um Congresso que não foi eleito para tal finalidade – impactam diretamente no Poder Judiciário e no Ministério Público, funcionalmente alheios à arena política brasileira, mas que figuram como protagonistas de operações destinadas a coibir a corrupção enraizada nos demais poderes.
Convém, então, medir a reação dos membros de tais instituições a tal rompimento da ordem jurídica, pois será crucial para ditar os rumos do que sobrou do estado democrático de direito social.
No caso do Ministério Público, antes da Constituição de 1988, a principal atividade desempenhada pela referida instituição, relacionava-se à atuação em sede criminal. Ao então “Promotor Público”, que geralmente não contestava a “revolução” então promovida pelas Forças Armadas, competia primordialmente buscar a responsabilização de todos aqueles cuja conduta se ajustava ao tipo penal: que nada mais é do que a mera descrição abstrata de um fato presumido como lesivo à ordem jurídica.
Já sob a nova ordem constitucional foi legado ao Ministério Público o papel de garantidor do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O agora “Promotor da Justiça”,8 deverá atuar para a efetivação do “Estado de bem-estar social”, inclusive na persecução criminal.
Porém, a transição para esse novo perfil não foi integralmente concluída. A última ditadura que assolou o país também deixou cicatrizes no Ministério Público, como se observa no recorrente discurso de natureza puramente repressiva.
Alguns dos membros da referida instituição reputam os projetos de modificação legislativa recentemente colocados em prática pelas duas casas do Congresso Nacional, como uma mera retaliação daqueles que foram envolvidos nas diversas operações de combate ao crime organizado.
Outra forma de interpretar tal revanchismo legislativo exigiria uma compreensão dos mecanismos de poder, sob o influxo de fatores econômicos e sociais indutores da corrupção. Ou seja, um mundo assaz complexo, revela-se além das margens da abstração do tipo penal.
Para o “Promotor Público”, a resposta para a instabilidade institucional que aflige o país se restringirá à mera defesa de operações de repressão ao crime. Quanto ao “Promotor da Justiça”, a postura é assaz distinta: a preocupação será resgatar a Constituição Cidadã.
*Daniel Balan Zappia é promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso.