República Islâmica sob pressão
Diante do desenvolvimento espetacular das organizações xiitas no Iraque, o regime iraniano vê aumentar as ameaças norte-americanas e a exasperação de grande parte da população com o poder dos mulás e com a impotência dos grupos reformistasPaul-Marie de La Gorce
“Agora estamos cercados”. Para os dirigentes políticos de Teerã, de todas as tendências, a ocupação do Iraque pelas forças norte-americanas fecha o cerco do Irã, iniciado pelo dispositivo militar que os Estados Unidos instalaram no Cáucaso, na Ásia central, no Afeganistão, no Paquistão e no Golfo. Aliás, consideram que, na realidade, esse era um dos objetivos essenciais da guerra. Sabem que a República Islâmica está sendo desafiada pelo presidente George W. Bush desde que este a classificou, junto com o Iraque e a Coréia do Norte, entre os países que constituem o “eixo do mal”. Para enfrentar tal desafio, coloca-se para eles a questão: o que fazer?
Sua resposta depende, em grande parte, das lutas internas em que estão engajados, seguindo um esquema que as manifestações estudantis, que começaram na terça-feira, 10 de junho, poderiam desestruturar em pouco tempo. Até então, elas opunham os “conservadores” reunidos em torno do Guia da Revolução, o aiatolá Ali Khamenei, aos “reformadores”, agrupados em torno do presidente da República, Mohammed Khatami, e à corrente liderada pelo ex-presidente Ali Rafsandjani, que atualmente ocupa o cargo-chave de presidente do Conselho de Discernimento da Ordem Islâmica1.
Seu sentimento comum é que num prazo mais ou menos curto – nos próximos meses ou após a possível reeleição do presidente Bush – terão que responder às ameaças norte-americanas. Num país em que se ostenta por toda parte a mais veemente hostilidade contra os Estados Unidos, considera-se, em todos os grupos e em todos os clãs, tanto a possibilidade de um confronto quanto a de uma negociação: um é inevitável; será que a outra ainda é possível?
Aposta perdida
A oportunidade para a negociação surgiu no momento em que, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o presidente George W. Bush optou por uma ação direta contra o grupo Al-Qaida e o regime dos talibans no Afeganistão. O governo iraniano decidiu, então, apoiar a operação norte-americana, mobilizando sua influência determinante sobre a comunidade hazara, de confissão xiita, e suas ligações, complexas porém estreitas, com as comunidades tadjique e uzbeque.
Essa foi a opção do grupo dos reformadores. Quiseram, dessa forma, aproveitar a oportunidade para provar sua compreensão em relação às exigências da política norte-americana, e o fizeram de acordo com a política iraniana, que sempre viu no regime dos talibans um intermediário da preponderância do Paquistão em território afegão, próximo das fronteiras iranianas, nas regiões mais difíceis e mais instáveis. Desse modo, eles apostavam numa aproximação metódica e calculada entre Washington e Teerã. Perderam a aposta: o governo norte-americano não correspondeu à sua expectativa.
Segunda chance
O governo iraniano concluiu que, dependendo dos objetivos estratégicos dos Estados Unidos, o destino da República Islâmica talvez fosse decidido no Iraque
Uma corrente favorável ao restabelecimento de relações estreitas e vantajosas com o Irã sempre existiu nos principais órgãos governamentais norte-americanos. Mas a corrente oposta venceu mais uma vez. Para seus partidários, os reformadores iranianos demonstraram, há muito tempo, sua impotência e seria preferível fazer algum acerto provisório com o clã dos conservadores, dado que o poder real está em suas mãos, mesmo com o risco de acusá-los mais tarde de quererem equipar o Irã com armas atômicas. Foi essa corrente que prevaleceu.
Uma segunda oportunidade iria apresentar-se aos dirigentes iranianos para darem chance a uma negociação com os Estados Unidos: foi a guerra contra o Iraque. Em Genebra, durante as semanas que precederam as hostilidades, houve conversações diretas entre representantes norte-americanos e iranianos, das quais se concluiu que o Irã veria com bons olhos a derrubada do regime do presidente Saddam Hussein, mas desejava que a ocupação do território iraquiano pelas forças norte-americanas não fosse longa.
Destino decidido no Iraque
Depois, sob a égide conjunta de Washington e de Teerã, houve um acordo, teoricamente “secreto”, entre as organizações xiitas iraquianas – umas apoiadas pelo governo iraniano, outras sob proteção norte-americana – para a abertura de um corredor entre o território iraniano e as regiões já ocupadas pelo exército norte-americano, onde a comunidade xiita está implantada. Na seqüência, a República Islâmica mostrou, deliberadamente, a maior discrição diante do desdobramento das operações, e o exército iraniano rechaçou brutalmente o grupo wahabita que desenvolvia, no norte do Iraque, uma atividade política e religiosa violenta, suspeita para os serviços norte-americanos de estar em relação com a Al-Qaida, e que, diante do controle da região pelas milícias curdas, tentava atravessar a fronteira.
Para os dirigentes iranianos, o estabelecimento no Iraque de uma República Islâmica de preponderância xiita não seria um trunfo: seria um perigo
Não adiantou. O secretário da Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, dirigiu, publicamente, pesadas ameaças à Síria e ao Irã caso um destes dois países ajudasse a resistência iraquiana se ela continuasse após a queda de Bagdá. E mesmo que a responsável pelo Conselho Nacional de Segurança, Condoleezza Rice, tenha dirigido à Síria, de forma enfática, as ameaças norte-americanas, estas, naturalmente, não deixaram indiferentes os dirigentes iranianos. Estes concluíram que, dependendo dos objetivos estratégicos dos Estados Unidos, dos confrontos ou dos acordos entre comunidades religiosas e forças políticas, bem como da resistência iraquiana às forças de ocupação, o destino da República Islâmica talvez fosse decidido no Iraque. Era preciso, então, dispor de meios para agir. Um símbolo disso já é a criação da emissora de televisão Al-Olam, de informação contínua em língua árabe, que tem como centro os acontecimentos no Iraque.
A pressão dos xiitas iraquianos
No país, os movimentos políticos nascidos da comunidade xiita manifestaram-se desde os primeiros dias que se seguiram à ocupação norte-americana. Uns estimulados pelos grupos exilados na Inglaterra e nos Estados Unidos – e cujo dirigente mais conhecido era Ahmed Chalabi, presidente do Conselho Nacional Iraquiano que tem base em Londres. Outros, com retaguarda no Irã – sendo o mais importante o Conselho Supremo da Revolução Islâmica no Iraque (CSRII), presidido por Baqer Al-Hakim (leia, nesta edição, o artigo de Juan Cole). Outros ainda emanando das mais influentes mesquitas e religiosos das regiões xiitas, como o aiatolá Ali Sistani. Todos reivindicavam a constituição de um poder nacional, a saída das forças norte-americanas de ocupação e a presença dos xiitas à frente do país em conformidade com sua preponderância numérica.
Não era nada disso o que se esperava em Washington quando, antes da guerra, se especulava a respeito de uma acolhida favorável, e até entusiasta, da comunidade xiita à chegada das tropas norte-americanas e a respeito de seu apoio após o fim das operações. Mais ainda: uma espécie de rivalidade se instalava entre as organizações políticas da comunidade xiita assumindo, às vezes, um rumo violento, como ocorreu com o assassinato do aiatolá Abdel Majid Al-Khoï e com os ataques aéreos em Bagdá contra os estabelecimentos que fabricavam ou vendiam bebidas alcoólicas. Foi o suficiente para que as mais altas autoridades norte-americanas anunciassem que barrariam o caminho ao estabelecimento de uma República Islâmica, denunciassem uma ingerência do Irã e ameaçassem usar a força.
A opção iraniana
Esta não foi, no entanto, a opção considerada pelos dirigentes iranianos. Para eles, o estabelecimento no Iraque de uma República Islâmica de preponderância xiita não seria um trunfo: seria um perigo. Os próprios xiitas não seriam unanimemente favoráveis a isso, muitos desejando que o país permanecesse unido sob um regime que admitisse, sem discriminação, todas as confissões; as outras comunidades, sunita e curda seriam violentamente hostis a tal solução; dela decorreria um risco de fragmentação do país que os Estados Unidos explorariam para prolongar indefinidamente sua ocupação.
A opção iraniana é, portanto e ao contrário, um poder iraquiano nacional e popular, baseado na comunidade xiita, mas também na tendência “pan-árabe” da comunidade sunita que subentendia, recentemente, os ex-partidos nacionais e o partido Ba?ath, refreando as exigências curdas e satisfazendo-as parcialmente e, é claro, formando uma “frente comum” contra a manutenção da ocupação norte-americana. Mas é verdade que, dentro do país, os movimentos políticos xiitas poderiam ter outras intenções, como demonstra sua “corrida ao poder” em que os partidários de um islamismo radical exercem pressões.
Graves acusações
As ameaças norte-americanas se apóiam no desenvolvimento espetacular das organizações xiitas suspeitas de quererem estabelecer um regime islâmico no Iraque
Por enquanto, os dirigentes iranianos têm que enfrentar o crescimento das ameaças norte-americanas. Estas se apóiam primeiramente, como se viu, no desenvolvimento espetacular das organizações xiitas suspeitas de quererem estabelecer uma República Islâmica no Iraque, segundo o modelo de Teerã, embora isto não seja nem o objetivo nem a estratégia do regime de Teerã. Questionam os vínculos entre Teerã e o grupo Al-Qaida; entretanto, nada de tangível prova que existam e, se a escuta – pelos serviços norte-americanos – dos telefones via satélite e das comunicações por rádio permitiu localizar as atividades da Al-Qaida em território iraniano, tudo indica que estas se situam nas fronteiras afegã e paquistanesa, tão incertas e porosas que não se pode ver nisso a prova de uma cumplicidade iraniana.
Muito mais graves são as acusações feitas contra o governo iraniano de querer dispor de um armamento nuclear. Concebido e iniciado no tempo do Xá, adiado após a instauração da República Islâmica e abandonado por ela em favor do programa Eurodif, o programa atômico iraniano parece ter sido relançado em vista da produção de armas nucleares no contexto resultante da existência ou da emergência provável de forças nucleares entre os vizinhos do Irã: na União Soviética, no Paquistão, no Golfo – onde forças aéreas e navais norte-americanas estavam instaladas -, no Iraque e em Israel.
Inspeções súbitas
Mas esse programa, conduzido, aparentemente, longe das instalações nucleares com fins civis e tão secreto quanto possível, não parece ter tido resultado. Depois da chegada dos reformistas ao poder, os programas nucleares civis é que foram retomados. Segundo os dirigentes norte-americanos, logo eles estariam no ponto em que poderiam passar, em um ano ou talvez menos, à fase de enriquecimento do combustível nuclear até o patamar necessário à produção de uma arma. Em contrapartida, este não seria o caso na central nuclear de Bucheir, construída com a ajuda da Rússia: ela é de um tipo tal que, para extrair do reator uma fração do combustível irradiado em vista de seu uso militar, seria necessário proceder a operações que nunca passariam desapercebidas.
Pedindo que o Irã aceite um aditamento ao tratado de não proliferação, prevendo inspeções súbitas, o governo norte-americano pisa em terreno sólido o bastante para ter obtido o apoio da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e da União Européia. Mas o governo iraniano, por sua vez, pode, com razão, considerar que se trata de uma exigência visando exclusivamente o Irã e solicitar garantias ou
contrapartidas. (meio estranho)
Risco de confronto
Washington conta com a exasperação de uma grande parte da população em relação ao poder dos mulás e com o descrédito crescente do grupo dos reformistas
O que podem fazer, então, os Estados Unidos, se partirem para o confronto? A opção menos plausível seria o desencadeamento de uma guerra análoga àquela conduzida contra o Iraque. O Irã é um país de uma outra envergadura por sua dimensão, sua população, seus recursos, sua posição geoestratégica. Invadi-lo exigiria o envolvimento de forças consideráveis. As forças iranianas, divididas entre um exército clássico e o corpo de guardas da Revolução, só dispõem, na verdade, de verbas restritas e representam apenas um poder limitado, mas, com exceção talvez das regiões curda, no noroeste, e balúchi, no sudeste, a resistência poderia prolongar-se indefinidamente em toda a parte central do país.
A opção mais razoável seria a destruição específica e dirigida dos centros industriais e nucleares supostamente capazes de produzir, um dia, armas atômicas. Mas a reação iraniana já anunciada não se limitaria, certamente, a uma ruptura com a AIEA, e poderia traduzir-se, por exemplo, em iniciativas desestabilizadoras do dispositivo político e militar norte-americano no Afeganistão – e, indiretamente, no Paquistão.
Também os imprevistos e os riscos de um confronto levaram vários conselheiros do presidente norte-americano a apostarem nas chances de uma ação conduzida do interior. Para seu êxito, contam com a exasperação de uma grande parte da população em relação ao poder dos mulás e com o descrédito crescente do grupo dos reformistas. As recentes eleições municipais foram, de fato, marcadas pelo sucesso, sem precedente há muitos anos, dos candidatos conservadores. A explicação para tal fato é simples: apenas 10% dos eleitores votaram em Teerã, apenas um pouco mais no conjunto das zonas urbanas, o que traduz a recusa da imensa maioria dos eleitores em votar em reformistas considerados, definitivamente, incapazes de mudar o regime e impotentes para impor o menor avanço das liberdades públicas e individuais. É o sinal mais impressionante de uma crise grave: mostra que não haveria mais alternativas institucionais, legais e pacíficas que os iranianos pudessem esperar.
O cansaço com o regime dos mulás
Depois da impotência dos reformistas, não existe nenhuma força organizada em condições de cristalizar o sentimento geral de cansaço em relação ao regime dos mulás
Este é, sem dúvida, o sentido que se deve dar à brusca revolta estudantil iniciada na noite de terça-feira, 10 de junho, no campus da universidade de Teerã, a qual continuou nos dias 11 e 12 e culminou na sexta-feira, dia 13, com o reforço de passeatas vindas dos bairros vizinhos, com a entrada em ação das milícias islamitas que vieram reprimi-la com invulgar brutalidade, com as manifestações estendendo-se a outras cidades do país. Esse movimento de revolta assumia pleno sentido no atual contexto político do Irã. A seqüência mostrará se as coisas param por aí. Pelo menos, deve-se observar que não existe, depois da impotência do bloco dos reformistas, nenhuma estrutura, nenhuma força organizada, nenhum líder nem grupo dirigente em condições de cristalizar o sentimento geral de cansaço e de exasperação em relação ao regime dos mulás em uma força política real.
Que ninguém duvide disto: o regime iraniano atravessa uma fase difícil. Nada, entretanto, deveria fazer os dirigentes norte-americanos encarregados de gerenciar esta crise se esquecerem de que, no Irã, o patriotismo e o próprio nacionalismo são dados essenciais da sociedade e do espírito público. A este respeito, as declarações do presidente Bush – aprovando a revolta estudantil de Teerã e correndo o risco de dar a impressão de a haver inspirado – são exatame