Resposta a um “Especialista”
Réplica do escritor à crítica do jornalista William Dalrymple a seu livro “Qui a tué Daniel Pearl?” sobre a morte do jornalista seqüestrado e posteriormente executado por islamitas em Karachi, publicado na edição de dezembro do ’Le Monde diplomatique’Bernard-Henri Lévy
Tive que esperar o relatório sobre meu livro feito pelo New York Review of Books, reproduzido pelo Daily Times, do Paquistão, e agora pelo Monde diplomatique, para ficar sabendo que Karachi, a cidade do martírio de Daniel Pearl, é uma cidade-glamour.
Tive que esperar por esse dia, e por esse artigo, para descobrir que a capital econômica do Paquistão não é a “cidade sem mulheres” que descrevi porque o autor do artigo, confortavelmente instalado no “radioso salão de embarque do aeroporto”, pôde ali ver “mulheres jornalistas muito elegantes”, “manequins”, cercadas por enxames de atendentes, sorridentes com seus turbantes; todas as mulheres que, nos bairros da cidade, são obrigadas a esconder seu pobre sorriso sob o véu, ficarão certamente satisfeitas, imagino, com o caráter surrealista desse quadro! Assim como as 372 mocinhas que, somente no ano de 2002, por não terem tido a chance de ser “manequins” nem “jornalistas muito elegantes”, foram vítimas do que ali se chama, pudicamente, de crimes de honra!
Libelo de calúnias?
Ao longo de todo o livro, em especial, em sua última parte, faço precisamente, a apologia do islamismo popular, não radical, do “outro Paquistão
No que me diz respeito, o problema reside no fato de que, movido pela vontade de defender o Paquistão, movido pelo desejo de demonstrar que minha pesquisa não passava de um abominável libelo de calúnias contra o país dos Puros, o autor – que vocês [redação do Monde diplomatique] apresentaram, não sem riscos, como um “especialista em assuntos do Paquistão” – perde o senso das medidas: deixemos de lado as injúrias (que beiram o ridículo); deixemos de lado a acusação – cômica, para quem passou um ano de sua vida seguindo suas pistas – de denegrir “a memória” de Daniel Pearl (mais importante para mim, como vocês compreenderão, foi o testemunho de “gratidão” que foi endereçado por Judea e Ruth Pearl, na edição de 19 de outubro de 2003 do Los Angeles Times, ao autor do “primeiro livro de investigação” que teve a iniciativa de seguir “os passos” de seu filho); em compensação, mais difíceis de deixar de lado são os momentos daquele artigo em que os direitos à livre crítica servem de álibi para desinformar os leitores deste jornal.
É o caso, por exemplo, da repreensão que me é feita de “não fazer qualquer distinção” entre “os paquistaneses leigos e seus adversários islamitas”, quando, ao longo de todo o livro (e, de maneira mais especial, em sua última parte, intitulada “As guloseimas do Islã”, em que faço, precisamente, a apologia do islamismo popular, não radical, do “outro Paquistão”), se pleiteia essa distinção necessária, indispensável, vital.
A verdadeira guerra de civilizações
O mesmo ocorre com o inacreditável desaforo com que o autor se apropria – para com ela me confrontar – da parte central de minha tese, o leitmotiv que venho defendendo há anos, ou seja, a idéia segundo a qual a verdadeira guerra das civilizações, aquela que nos deveria mobilizar a todos, não se trava entre o “ocidente” e o “resto”, mas dentro do próprio “resto”, dentro de um mundo islâmico que pode ser qualquer coisa menos um monólito, entre radicais e moderados, entre os partidários da guerra santa e os que buscam a razão e a tolerância: em minha vida, assim como neste livro, na defesa que fiz, ontem, da Bósnia e de Massoud, bem como na que faço, hoje, dos chechenos, das mulheres argelinas ou do espírito laico no Paquistão, nunca deixei de apoiar esse segundo Islã, defendendo-o com unhas e dentes daqueles que advogam um pseudo-choque de culturas e de ir, pessoalmente, reforçar a luta daquelas e daqueles que arriscam diariamente suas vidas para impedir seu fim.
A verdadeira guerra das civilizações não se trava entre o “ocidente” e o “resto”, mas dentro de um mundo islâmico que pode ser qualquer coisa menos um monólito
E, finalmente, há os detalhes de pretensos erros menores dos quais meu livro estaria semeado e que teriam que ser metodicamente analisados, um por um: desde o endereço da família Shaikh em Londres, no Deyne Court Gardens, do qual mencionei apenas o essencial por ter a preocupação de proteger as pessoas e que teria sido facilmente verificável se o “Especialista” de vocês, ao invés de se contentar com o guia London A-Z street Atlas, tivesse tido a pachorra de pesquisar nos bairros da zona Leste da capital britânica, o que eu fiz, acompanhado por Lara Fielden, da BBC; desde o endereço dos Shaikh, portanto, até alguns aspectos da política paquistanesa em que ele aponta alguns deslizes quando, na realidade, é ele que, em sua estranha catilinária, acumula erros factuais.
Imaginação, fatos e boatos
Um exemplo: imaginando, por certo, que ninguém se dará ao trabalho de procurar verificar, o “Especialista” imagina acreditar que eu defini o Paquistão como a “casa do diabo”. Ora, além da expressão não ser minha, e sim de um paquistanês citado como seu autor, não é do Paquistão que se trata naquela página, mas de um local em que, de passagem, devo dizer que acredito ter sido um dos raros ocidentais a entrar: a madrasa de Binori Town.
Outro exemplo: ele me censura por “transformar em fato”, sem citar “fonte alguma”, o “boato” segundo o qual Osama bin Laden teria “recebido cuidados médicos” num hospital militar em Peshawar. Ora, além do fato de que, também nesse caso, tomei a cautela de não tomar uma posição pessoal sobre a veracidade do boato em questão, uma simples leitura teria permitido verificar que aquele se baseia, na realidade, em duas fontes – provavelmente irrelevantes para um tal “Especialista” em assuntos paquistaneses – que tive o cuidado de citar com todas as letras: a publicação Jane?s Intelligence Digest de 20 de setembro de 2001 e a edição da emissora CBS News de 28 de janeiro de 2002.
Imprecisões importantes
Outro exemplo: tornando a especular sobre a confiança do leitor e a credibilidade de suas afirmações, ele apresenta como uma idéia surgida exclusivamente de minha imaginação – e, portanto, sem fontes nem fundamento – o fato de que Omar Shaikh tivesse contribuído para o financiamento dos atentados de 11 de setembro. Ora, seria o caso de se perguntar, também aqui, se ele realmente chegou a abrir o livro. Pois ele não deu sorte: o longo capítulo que dedico a essa questão, e que se intitula “O dinheiro do Jihad”, baseia-se em outra série de fontes (CNN, 6 e 8 de outubro de 2001, The Hindu, 13 de outubro, Associated Press, 10 de fevereiro etc.) que, uma vez mais, eu cito da maneira mais exaustiva possível.
Há os detalhes de pretensos erros menores dos quais meu livro estaria semeado e que teriam que ser metodicamente analisados, um por um
E, finalmente, há exemplos de ignorância e imprecisões pelo menos preocupantes, para um “Especialista que se deu ao trabalho (sic) de estudar o livro que analisa e que o assunto de que o livro trata”: Omar Shaikh, o organizador do seqüestro de Pearl, não combateu, como nos é ingenuamente relatado, o exército indiano na Caxemira; sua primeira prisão, em 1994, não ocorreu “no momento” em que “tentou” seqüestrar um grupo de turistas ocidentais, e sim após o ter feito, quando esse grupo de turistas já estava mantido preso há vários dias em condições semelhantes àquelas em que seria mantido Daniel Pearl; o fato, considerado óbvio, de que ele teria aderido ao islamismo após ter sido “testemunha” de “massacres de muçulmanos na Bósnia” só é realmente estabelecido dessa maneira na versão de sua biografia reescrita após o golpe – em nome da necessidade da causa – pelos serviços secretos do Paquistão; finalmente, ao contrário do que se afirma ao longo desse mesmo parágrafo, ele não se entregou “à polícia”, e sim àqueles serviços secretos, o que, evidentemente, muda tudo, já que estes o manteriam detido em sigilo, e protegido, durante o tempo necessário para eliminar vestígios e provas que poderiam ter sido muito úteis aos investigadores e a Mariane Pearl; e quanto ao caso de Abdul Ghani Lone, o líder da Caxemira cuja presença no hotel Akbar – alguns meses antes da primeira armadilha que Omar preparou para Pearl – foi um dos sinais, em minha opinião, dos vínculos existentes entre aquele hotel e o ISI, e que o “Especialista” de vocês destaca em primeiro plano, foi ele que, uma vez mais, pensando ser um gênio, comete três erros grosseiros.
Erros grosseiros
O primeiro erro: antes de adotar posições moderadas sobre a questão da participação no processo eleitoral na Caxemira – e, por isso mesmo, ter sido assassinado – Abdul Ghani Lone foi, por muito tempo, um dos dirigentes da linha dura do movimento.
O segundo: nessa condição, ele teve vínculos com a ala radical do ISI, que vem financiando, há vinte anos, os grupos de combatentes islamitas mais fanáticos e que transformou o Hotel Akbar – tal como descrevi após o tempo que ali passei – num de seus quartéis-generais oficiosos em pleno centro de Rawalpindi.
O terceiro: ele não era o líder do “Hurriyat”, e sim da “All Parties Hurriyat Conference” que, ao contrário do que parece pensar o “Especialista” de vocês, não é um partido, mas uma confederação de partidos com posições extremamente distintas; na verdade, foi pensando nisso, e pensando, especificamente, na existência, dentro dessa confederação, de um grupo – o “Jamaat-e-Islami of Jammu and Kashmir” – que tem um memorial trust que coleta donativos do exterior para financiar a guerra santa, que listei o Hurriyat entre as “ONG islamitas” vinculadas à Al-Qaida.
Sofrimento paquistanês
Imaginando, por certo, que ninguém se dará ao trabalho de procurar verificar, o “Especialista” imagina acreditar que eu defini o Paquistão como a “casa do diabo”
Ora, dirão, tudo isso é insignificante. Sim e não. Só tem condições de criticar alguém quem disponha de informações inquestionáveis. E, principalmente, não se trata de uma simples polêmica entre especialistas, ou de pedantismos e vaidades, e sim de homens e mulheres concretos, moldados na carne e no sangue pelo sofrimento paquistanês, muito real – na realidade, esses “mortos-vivos”, esses “condenados vivos” cuja menção faz sorrir o “Especialista” e que, é verdade, são menos fáceis de encontrar em radiosos saguões VIP dos aeroportos do que nos bairros mais miseráveis da cidade-glamour que é Karachi.
Como seriam melhor defendidos os interesses daquele “outro Paquistão”? Multiplicando contorções intelectuais destinadas a demonstrar que o sistema de poder formado por militares e mulás é culpado, embora não o seja, mas sendo assim mesmo, pelos seqüestros dos jornalistas Najam Sethi, Hussain Huqqani, Ghulam Hasnain e, depois, Daniel Pearl, ou optando por falar de uma maneira clara e tomando abertamente o partido daqueles que, como esses jornalistas e outros, lutam pela liberdade de imprensa em Islamabad e Karachi?
Última palavra
Quem insulta a memória de um “jornalista de qualidade”, conhecido pelo seu “rigor na apuração dos fatos”? Um crítico que ousa escrever que o Paquistão é um país acolhedor onde os jornalistas estrangeiros “só encontram hospitalidade” – não é verdade, Daniel Pearl?… -, ou alguém que decidiu acompanhar, passo a passo, a investigação dessa morte atroz e das redes implicadas no crime? Um “Especialista” que, ao cabo de uma série de erros e imprecisões, nos oferece, sem qualquer contrapeso crítico, a versão para o seqüestro que lhe é proposta pelo ex-diretor-geral do ISI, Ahmid Gul, reconhecidamente próximo da Al-Qaida, ou um escritor que, em meio ao complicado quebra-cabeças que é a política paquistanesa, resolveu, certa vez, desafiar o discurso oficial?
A primeira prisão de Shaikh, o organizador do seqüestro de Pearl, não ocorreu “no momento” em que “tentou” seqüestrar turistas ocidentais, e sim após o ter feito
Uma última palavra, especificamente dirigida ao Monde diplomatique. Adivinho a pressa com que se entregaram a reproduzir aquele texto absurdo e pleno de erros. Imagino a competição sadia que opôs vocês ao resto da imprensa internacional, principalmente a paquistanesa que, apesar disso, os conseguiu bater em velocidade, já que o Daily Times de Karachi, como disse no início, publicou um resumo desse texto imortal no dia 22 de novembro, ou seja, oito dias antes de vocês e até antes – esse detalhe deixa a gente pensando – da publicação do suposto original pelo New York Review of Books, com a data de 4 de dezembro. Mas, seria necessária toda essa pressa? Seria o assunto tão incandescente que nem desse tempo para vocês abrirem o livro de que pretendiam falar, obrigando-os – como vocês, aliás, alertam os leitores com uma franqueza tocante, a retraduzir às pressas as frases que o “Especialista” de vocês havia traduzido para o inglês? Convenhamos que é uma maneira pelo menos leviana de tratar os escritores. E, já que vocês cometeram a imprudência de falar em “fraude”, é uma forma de falsear as citações que me parece original e que pode, principalmente, acabar mal. Pesquisem um pouco, vamos lá; agora, que têm tempo para isso, dê