Revolução da viola: do culto à vanguarda
Pesquisadores e músicos indicam que a viola vive seu período mais fértil. Ligada às tradições populares, ela tem seu auge com um sem-número de instrumentistas, compositores e mestres. Deixou de ser som de acompanhamento de cantores para abrir, entre roças e cidades, uma nova fronteira melódica e harmônica
Os dedos de Almir Sater ponteiam um blues. O ganso é o nome da música. Composição própria, tocada no palco do programa Viola, minha viola, da TV Cultura, sob o olhar atento da cantora e folclorista Inezita Barroso. O templo da música caipira muda naquele momento. Pelas suas mãos, o Pantanal se aproxima do Mississipi. Almir toca de óculos. Repousa o pé direito sobre o esquerdo, um tipo de suporte próprio para a viola se moldar ao corpo. O blues segue acompanhado pelo violão do irmão mais novo, Rodrigo Sater, que pouco tempo depois repetirá a saga de peão-violeiro em novela – dessa vez, a escolhida é a trama Paraíso, da TV Globo.
Mas ali, atrás do palco do blues caipira, na coxia, há algo mais importante. Os violeiros Roberto Corrêa, Paulo Freire e Adelmo Arcoverde observam atentos a apresentação – todos são virtuoses das dez cordas. Mais que regionalistas, eles integram uma geração de instrumentistas brasileiros que conseguiu deslocar a viola para um novo patamar: o de instrumento complexo, de sonoridades amplas, que bebe na inspiração das tradições e voa alto, incorporando novas referências e elementos eruditos e populares.
Ao lado de Almir, o grupo se apresenta como parte do projeto “Violeiros do Brasil”, idealizado e dirigido pela produtora Myriam Taubkin. É um registro de 13 violeiros selecionados em dois momentos: 1997 e 2008. Na década passada, o encontro resultou em um disco ao vivo e ajudou a dar visibilidade para um movimento de contemporanização da viola, com novos instrumentistas e influências. “A viola já tinha mudado. E ali começou a mostrar sua força”, lembra Paulo Freire. Mas voltemos à apresentação televisiva do grupo. A música após o blues de Almir Sater encerrará o programa. Todos juntos farão um arranjo clássico para a voz de Inezita Barroso. Ansioso, o pernambucano Adelmo Arcoverde pergunta: “Que tom ela canta?”. Roberto responde sério: “Si”. A pegadinha faz tremer o rosto do experiente professor e improvisador Adelmo. “Si” é um tom complicado, que exige acordes com pestanas. Com cinco sustenidos, é quase impossível fazer rápidas e precisas progressões na escala. Silêncio estratégico. Depois, risos. A piada se desfaz. Paulo e Roberto se desmancham. E entram no palco. Tocam Boiadeiro errante em “Sol”.
“A viola é passado, presente e futuro”, sentencia Roberto Corrêa, físico graduado e um dos principais violeiros dessa geração, com um intenso trabalho como pesquisador da área. “O que se vê de mais interessante no atual cenário musical brasileiro é o que se tem feito com a viola”. De instrumento incrustado nos rincões do Brasil, servindo de base para cateretês, cânticos religiosos e brincadeiras pagãs, ela rompe o preconceito de ser caipira e se torna contemporânea. É capaz de se misturar a instrumentos de música clássica e aos populares – clarinete, flauta, cello, fagote, piano. “Ela vai no caminho inverso de outros instrumentos, porque há pouca coisa escrita. Não veio do erudito, como o piano, por exemplo, e se popularizou depois do violão”, explica Myriam Taubkin. Para entender essa evolução, é preciso voltar um pouco na história e localizar a origem deste instrumento idiomático. A âncora da tradição nasceu portuguesa e abrasileirou-se.
A evolução
Caipira, nordestina, de arame, cinturada, cantadeira, do capeta ou devota. A viola brasileira pode ter muito nomes e apelidos – aliás, tantos quantos se possa imaginar –, mas sua estrutura é semelhante ao instrumento que desembarcou no Brasil com os colonizadores portugueses. Dez cordas presas nas extremidades e com uma caixa de ressonância de madeira em forma de oito. “A viola veio com os jesuítas para a catequese. Os índios adoravam as escalas musicais. Os cantos eram de devoção.
Nossa música paulista começou santa”, relata Inezita Barroso. Em seu apartamento, em São Paulo, Inezita guarda a relíquia de uma imagem de São Gonçalo, o santo violeiro que encantava as mulheres de “vida fácil” com danças, para que elas não caíssem nos pecados da carne. Assim, ganhava força a mística do tocador de viola.
Ele era visto como alguém que enfeitiçava as mulheres, ainda que exista quem encontre outras fontes de inspiração para os solos e melodias.
A capacidade de tocar viola sempre esteve ligada a uma espécie de pacto com o lado espiritual. Geralmente com um ente avesso a santos, anjos e querubins. Segundo as tradições populares, era mesmo o diabo que fazia um bom violeiro. Tal como acontece com os tocadores de blues norte-americanos. Robert Johnson, dizem, teria feito um. Receitas não faltam para encontrar o diabo. Paulo Freire, jornalista por formação e violeiro por adoção, conta que o bom mesmo é meter a mão em buraco de igreja do interior. Depois de sentir os dedos quebrados pelo tinhoso, os ponteados estarão todos morando na sua mão. “Funciona”, brinca. O anedotário rural ainda recomenda botar um guizo de cascavel dentro da viola. Uma pesquisa de Mário de Andrade sobre a cultura popular, na década de 1920, registrava que o guizo da cobra dá bom som para o instrumento. Mas na pequena Pindamonhangaba, interior de São Paulo, havia violeiro que tinha um pé atrás com o conselho. “O guizo melhora o som, mas não presta, porque seis meses depois vira a própria cascavel”, registrou o inquérito do escritor modernista.
A viola e seus trejeitos foram passados no boca a boca por muito tempo. Durante a colonização, os bandeirantes a levaram sobre as mulas e cavalos para o interior do Brasil. O isolamento geográfico a aproximou cada vez mais dos temas rurais, tornando-a um instrumento do campo. Só veio a ter algum registro musical bem mais tarde, com pesquisadores. Entrou para a indústria fonográfica por iniciativa pessoal de um folclorista da cidade paulista de Tietê: Cornélio Pires, que pagou do próprio bolso a gravação que a dupla Mariano e Caçula fez da música Jorginho do sertão. O sucesso de Cornélio foi estrondoso. Cinco mil cópias vendidas em 20 dias na carroceria de um caminhão pelo interior. Lançou-se para a história como um dos primeiros “produtores independentes” do país. Um mercado que a elite desconhecia. E detestava.
A música caipira, com a viola no prumo, seguiria como um gênero do interior por décadas a fio. Os principais nomes? Raul Torres e Florêncio, Capitão Furtado, João Pacífico, Tonico e Tinoco, Luizinho, Limeira e Zezinha, Vieira e Vieirinha, Carreirinho, Nenete e Dorinho, Jacó e Jacozinho, José Fortuna e Pitangueira, Tião Carreiro e Pardinho, Pena Branca e Xavantinho, Zé Mulato e Cassiano, e tantos outros que não cabem nestas linhas. Dessa lista sem-fim, um músico foi especia
l: Renato Andrade, cujo trabalho abriu nova trilha para a viola caipira. Mineiro de Abaeté, ele teve formação clássica para o violino, mas trocou de instrumento. Amadureceu uma técnica espetacular para tocar viola. Suas músicas eram verdadeiras novidades melódicas. Autossuficientes. Renato as nomeava como causos rurais: O jeca na estrada, Prelúdio da inhuma e Sinhá e o diabo. Entre suas qualidades também se destacava a de contador de histórias. A receita do pacto do diabo para os violeiros se popularizou em suas apresentações. “Tinha hora que dava para acreditar que ele tinha pacto com o demo mesmo. Era muito som para pouco dedo. Parecia que ele tinha mais de duas mãos”, fala Paulo Freire.
Divisor de águas
O primeiro registro do projeto “Violeiros do Brasil”, da produtora Myriam Taubkin, contou com a presença de Renato Andrade e de Zé Coco do Riachão, dois mestres do gênero. Na segunda edição, ambos já tinham morrido, mas os 11 demais são unânimes em avaliar a genialidade musical dos companheiros. “Renato Andrade fez história. Tenho como certo que podemos avaliar o movimento da música de viola antes e depois dele. É um divisor de águas da viola no Brasil”, diz Pereira da Viola, mineiro do Vale do Mucuri. O legado artístico de Renato tem pelo menos quatro discos fantásticos. E uma rapidez inacreditável nos dedilhados. Uma vez, o jornalista José Hamilton Ribeiro, veterano amante dos caipiras, calculou, em uma reportagem do Globo Rural, que Renato Andrade era um dos músicos mais rápidos do mundo. “Era mais rápido que os mais rápidos instrumentistas eruditos”, diz.
Renato trouxe para muitos instrumentistas o caminho das experimentações. Ivan Vilela, mineiro de Itajubá, foi um deles. Apaixonado pelo Clube da Esquina, soube como poucos adentrar no mundo da viola. Em dois discos instrumentais, “Paisagens” (1998) e “Dez cordas” (2007), transita entre o tradicional e o moderno. Toca cururus, flerta com o movimento armorial e rompe preconceitos ao (re)construir Eleanor Rigby, de Lennon e McCartney. Ainda compôs uma ópera caipira, prova de que é teórico e prático do instrumento. Na Universidade de São Paulo (USP), foi o criador do primeiro curso de graduação de viola caipira, lugar em que também levantou um séquito de alunos admiradores. “O aluno de viola precisa ser, além de um bom músico, um pesquisador com pés fincados na antropologia, na sociologia rural e na história. Precisa ser um intelectual capaz de identificar os traços idiomáticos da viola e da música produzida pelos caipiras”, explica.
E assim, cada violeiro vai buscando suas referências. Paulo Freire, por exemplo, já botou distorção de guitarra na sua viola de cocho – aquela viola do Centro-Oeste construída a partir de uma peça única de madeira. Escavada e sem abertura para caixa de ressonância, ela traz um som metalizado. A distorção de guitarra, diz Paulo, está em seu subconsciente musical desde quando ficou marcado pelo solo de Jimi Hendrix, no hino norte-americano contra o fim da Guerra do Vietnã. Paulo, que é filho do anarquista, psiquiatra e escritor Roberto Freire, juntou a distorção de guitarra aos efeitos da música Antônio Conselheiro para simular o bombardeio de Canudos – nossa chaga aberta do sertão nordestino.
Uma terceira geração
Quem também busca sonoridades diferentes é Braz da Viola. Luthier conhecido e autor de um dos mais famosos métodos de aprendizagem de viola, Braz agora mistura timbres da guitarra elétrica e contrabaixo com a viola caipira e a de cocho.
Traz as melodias das toadas caipiras e deságua no blues e no jazz.
“A viola tem um imenso caminho pelo século XXI, porque tudo está por ser explorado”, diz Myriam. A trilha mostrada por Braz da Viola e seus companheiros no projeto “Violeiros do Brasil” é uma espécie de ciclo de uma segunda geração de músicos. Isso se pensarmos que a primeira foi a de Renato Andrade, e a segunda, a dos demais aqui citados. Vale ainda lembrar de alguns não contemplados no projeto, e que são igualmente magistrais: Chico Lobo, Zeca Collares e Fernando Deghi.
Uma terceira geração, contudo, já surge no cenário independente, formada sob a influência de caminhos abertos por todos que a antecederam. Uma geração que já reflete uma pluralidade de sons. Em uma década ou menos, a maioria provavelmente será de novos mestres. Está aí a magia de um instrumento que se renova na bagagem das ascendências mestiças do brasileiro. E tudo se mistura no saco da viola. Com o diabo e seus santos.
*Aloisio Milani é jornalista.