Rios que secam, vozes que ecoam: O rap no enfrentamento da crise climática e social na Amazônia
Bruxos do Norte usam a música como ferramenta de luta social e resistência na Amazônia
Em meio às águas que secam e à fumaça que cobre o céu, o rap emerge como um grito coletivo que provoca respostas para essa crise. Manaus, um dos principais centros urbanos da Amazônia e sede de um dos maiores polos industriais da América Latina, carrega em si um paradoxo cruel: apesar de seu crescimento econômico, é uma das 10 capitais brasileiras com os piores índices de desenvolvimento humano, segundo relatório 2024 do Índice de Progresso Social (IPS). As grandes fábricas e a expansão industrial não conseguem esconder a realidade de uma cidade onde a desigualdade social é cada vez mais brutal, intensificada pelas mudanças climáticas. A maioria da população manauara vive em condições insalubres, enfrentando problemas de qualidade da água e do ar, além de insegurança alimentar que só piora com o agravamento dos fenômenos ambientais. O rap, historicamente uma voz das periferias, encontra em Manaus um terreno fértil para se afirmar como uma arma de resistência, traduzindo em versos as angústias de uma população abandonada à própria sorte. E é nesse contexto que o grupo Bruxos do Norte lança seu manifesto sonoro, Vazante 2, um grito por dignidade em meio ao colapso social e ambiental.
O título Vazante faz referência a um fenômeno natural essencial para os rios da Amazônia. A vazante ocorre quando o nível das águas dos rios diminui significativamente após o período de cheia, expondo praias, ilhas fluviais e áreas submersas. Esse ciclo anual, que alterna entre cheia e seca, molda a vida em todas as cidades da Amazônia, afetando a agricultura, a pesca e o transporte. Assim como a vazante impacta diretamente as vidas nas margens dos rios, o single Vazante 2 explora o impacto da crise climática e das desigualdades sociais nas margens da sociedade manauara, onde a falta de acesso a recursos básicos e a exploração de seus territórios se tornam cada vez mais visíveis.
A seca que atualmente atinge o Estado do Amazonas já é considerada a pior de todos os tempos, com recordes negativos para a região. No Baixo Solimões, em Manacapuru, a cota do rio atingiu o nível mais baixo já registrado, com 2,90 metros – 21 centímetros abaixo da marca histórica anterior. A seca mais severa na região ocorreu em 25 de outubro de 2023, quando o rio chegou a 3,11 metros, e agora, em 2024, o nível continua a baixar de forma alarmante.
No Alto Solimões, a cidade de Tabatinga registrou também o menor nível de sua história, com o rio alcançando -2,30 metros. O Rio Negro, por sua vez, chegou em outubro com a cota de 13,05 metros, apenas 35 centímetros acima do recorde de seca registrado em 2023, quando o rio alcançou 12,70 metros. Esse cenário dramático marca o segundo ano consecutivo de seca extrema no Amazonas, com consequências devastadoras para as pessoas que dependem das águas para viver.
O boletim publicado no início do mês de outubro pela Defesa Civil do Amazonas mostra que o número de pessoas atingidas pela estiagem em 2024 já supera o da seca histórica de 2023. Mais de 747 mil pessoas foram afetadas em todo o estado, sendo aproximadamente 187 mil famílias. Todos os 62 municípios do Amazonas estão em estado de emergência devido à seca, à fumaça e aos focos de incêndios que assolam a região. Comparado ao ano anterior, quando 633 mil pessoas foram atingidas (cerca de 158 mil famílias), a situação atual reflete o agravamento da crise climática.
Com níveis alarmantes de poluição e a falta de água potável assolando as comunidades mais pobres, o impacto da mudança climática é sentido de forma cruel pela população que já convive com profundas desigualdades sociais. Nesse cenário de emergência, a arte surge não apenas como expressão, mas como uma ferramenta vital de resistência. O rap, em especial, se afirma como uma voz que denuncia e mobiliza.
Para os Bruxos do Norte, o rap vai muito além do entretenimento; é uma arma cultural na luta por sobrevivência. Vazante 2 segue essa tradição, utilizando versos afiados para expor o que eles vivenciam nas periferias de Manaus, onde a crise climática se entrelaça com a falta de infraestrutura e o abandono social. A música denuncia a ausência de políticas públicas que garantam o mínimo para a dignidade humana, como acesso a água potável, saúde e saneamento básico.
“A seca e a fumaça não afetam igualmente a todos”, afirma Aka Buya, integrante do grupo. “Nas áreas nobres da cidade, os problemas existem, mas são contornáveis. Já nas periferias, onde o abandono é histórico, a situação é insustentável. A gente vive cercado por queimadas, sem água, sem assistência, enquanto as elites continuam indiferentes.”
Os dados são assustadores. O Amazonas registrou um aumento de 68% nas queimadas entre agosto e setembro de 2024, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Um número recorde que colocou Manaus em alerta. A fumaça densa cobriu a cidade em diversos períodos ao longo do ano, afetando drasticamente a saúde da população. E, somada à crise climática, está a cicatriz deixada pela pandemia de COVID-19, que ainda ecoa nas áreas mais vulneráveis. As periferias de Manaus, as mais atingidas pela pandemia, agora enfrentam mais um novo desafio para respirar.
É nesse contexto de caos que o rap de Bruxos do Norte se torna um respiro de esperança e luta. A música não apenas narra a realidade de opressão vivida nas periferias, mas também funciona como um instrumento de denúncia e articulação política. Vazante 2 carrega uma mensagem clara: a crise climática não pode ser dissociada da injustiça social. Para o grupo, lutar pela preservação da Amazônia é também lutar pela sobrevivência de seus povos.
A arte tem um papel crucial nesse processo. Ela não apenas dá visibilidade às questões sociais, mas salva vidas ao mobilizar e engajar comunidades em torno de causas comuns. Para os Bruxos do Norte, o rap é uma forma de preservar identidades, contar histórias que muitas vezes ficam à margem das grandes narrativas, e reivindicar direitos. A música se torna uma forma de resiliência diante de um sistema que frequentemente apaga essas vozes. “Nosso rap é a nossa forma de resistir”, explica LF, outro integrante do grupo. “A música nos dá força para continuar lutando e mostrando ao mundo que a Amazônia não é apenas um bioma. É nossa casa, nossa história, nosso povo. E estamos lutando para viver, não só sobreviver.”
O lançamento de Vazante 2 acontece justamente no período em que Manaus comemora 355 anos de fundação, mas enquanto a cidade se engaja em celebrações, as comunidades periféricas vivem uma realidade de luta constante. Para os Bruxos do Norte, esse contraste é emblemático. Enquanto o centro da cidade brilha com luzes e festas, as quebradas se afogam em fumaça, seca e esquecimento.
Mais do que uma canção, Vazante 2 é um manifesto contra a invisibilização dessas realidades. A música reforça a necessidade de reconhecer que a crise climática não é um problema distante, ela já está aqui, afetando de forma desproporcional aqueles que têm menos condições de se proteger. E, nesse cenário, a cultura emerge como um dos últimos redutos de resistência e sobrevivência. Para o grupo, a arte tem o poder de não apenas denunciar injustiças, mas também inspirar transformação social.
O novo single está disponível em todas as plataformas digitais, com lançamento dia 25 de outubro de 2024. Você pode escutar a música e assistir ao clipe no canal do youtube do grupo