Desde criança, sempre ouvi falar da peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, e a sua histórica montagem do Oficina, em 1968. Na época, os brutamontes do famigerado Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, depredaram o teatro Ruth Escobar e espancaram os atores, entre os quais estava Marília Pêra. Censurada inúmeras vezes, a peça traz consigo a marca da (resistência à) violência: um Brasil autoritário, que novamente arreganha os dentes e que se concentra na figura de Jair Bolsonaro — um dos personagens da nova montagem.
Com a vinda do Oficina para o Rio, pude finalmente assistir à “Roda Viva”. A abertura da peça é marcada pela execução de “Invocação em defesa da Pátria”, de Villa-Lobos e Manuel Bandeira. O poeta canta a grandeza do Brasil, “céus e mares unidos como irmãos”, ao mesmo tempo que imagens de um país em plena destruição são exibidas: Brumadinho, as florestas em chamas, o óleo nas praias, o Witzel que dá vivas à morte, tal como Millán-Astray (“viva la muerte!”). Mas não é um réquiem, pelo contrário. E então eu entendi que, cinquenta anos depois, “Roda Viva” não poderia mais falar daquele Brasil, mas de agora — ou, como o próprio Zé Celso me disse uma vez, “1968 é agora”.
O surrealismo político da “nova era” dispensa as caricaturas: a sua mera reprodução cênica é a provocação em si mesma. No centro do palco, um demagogo anuncia cortes e ataques a direitos, absurdos ditos sob gritos de “Mito!”. Outra personagem, Tristeza Cristina, distribui veneno por todos os cantos. Agroboys armados desfilam ao som de sertanejo. Índios se opõem. Ao mesmo tempo, um rapaz com uma câmera enquadra as cenas por ângulos em movimento, tudo é projetado no fundo do palco — cinema, teatro e realidade numa só linguagem.

Ao longo de quase quatro horas, acompanhei Benedito (Roderick Himeros), o Anjo Negro (Gui Calzavara) e o capeta (Zé Ed), além de Juliana (Camila Mota) e do boêmio Mané (Marcelo Drummond). Todos impecáveis em seus papéis. Músicas como “Roda Viva” e “Sem fantasia” foram cantadas juntamente com a inédita “Iê iê iê bíblico”, do repertório original, jamais gravada, além de um rap à la Olavo de Carvalho. Tudo feito ali na hora: sete instrumentistas e um coro de 16 integrantes.
Éramos o público-atuador e cantávamos juntos as músicas do Chico. Os atores se dirigiam a nós, arremeçavam flores: “Quem não gostou dessa peça, saia daqui! Diga horrores! Nos divertimos à beça, e tomem flores, flores, flores! Flores para los vivos! Amor!”
A atriz Cafira Zoé estendeu-me a mão, “vem, sobe!”. Um sonho: eu estava no palco de “Roda Viva”. E foi ali que experimentei uma sensação de liberdade como nunca antes. Terminamos no palco cantando “Para ver a luz do sol”, do pernambucano Edgar Ferreira.
Lembrei-me novamente de Zé Celso: 1968 estava lá, agora.
Pano.
André Rosa é escritor e tradutor. Traduziu poetas de língua russa, como Ievguêni Ievtuchenko, Vera Inber e Nikolai Asseiév.
RODA VIVA, 2019
Texto: Chico Buarque
Diretor: José Celso Martinez Corrêa
ELENCO
Benedito Silva: Roderick Himeros
Juliana: Camila Mota
Anjo: Guilherme Calzavara
Capeta: Zé Ed
Mané: Marcelo Drummond
O Coro: Cafira Zoé
Clarisse Johansson
Cyro Morais
Danielle Rosa
Fernanda Taddei
Gabriela Campos
Isabela Mariotto
Kael Studart
Kelly Campello
Marcelo Dalourzi
Mayara Baptista
Nolram Rocha
Sylvia Prado
Tony Reis
Tulio Starling
Wallie Ruy