Roma, as ilusões da anti-História
Apresentada como reconstituição da vida romana, a série da HBO cultiva preconceitos, porque se apóia numa idéia falsa e paralisante: a de que “as relações humanas, emoções e sentimentos nunca mudam”Florence Dupont
O enredo da série televisiva britânico-americana “Roma” [1] começa em 52 a.C., com o retorno de Júlio César a Roma. Esse, apesar da oposição de Pompeu e do Senado, atravessou o Rubicão depois da rendição de Vercingétorix na Gália. Termina em 44 a.C. com o assassinato de César.
A grande história desenvolve-se em 12 episódios. César e Pompeu estão na trama principal. Marco Antônio, Brutus, Otávio (o futuro imperador Augusto), sua mãe Atia, (sobrinha de César), Cícero, Catão (o Jovem), Cleópatra e a pequena história do centurião Lucius Vorenus e do legionário Titus Pullo [2], na secundária. Os cenários são grandiosos. Roma foi reconstituída com grandes gastos nos célebres estúdios de Cinecittà, na periferia da capital da Itália. Os atores têm presença e os figurinos são espetaculares.
Fora quatro ou cinco acontecimentos contados por antigos historiadores, tudo é falso, ou quase. Todos que assistirem a essa pretensa série histórica acreditarão que os romanos queimavam velas em frente as estátuas de seus deuses, iam ao teatro, à noite, assistir peças estúpidas, obscenas e sangrentas e que os homens eram heterossexuais ao extremo [3].
Em nome da realidade, todos os preconceitos
Os produtores esqueceram-se de contratar um consultor em história? Jonathan Stamp, o expert em história antiga da BBC, poderia ter assumido o posto. Além do mais, não é necessário ser diplomado em estudos clássicos para saber que nunca nenhum círio, vela ou lamparina a óleo queimaram sobre o altar dos deuses romanos; que as comédias eram encenadas pela manhã, ao ar livre, em um ambiente ritual; que se tratava de espetáculos essencialmente musicais, sem qualquer violência, lúdicos por definição; e que chamavam César de “marido de todas as mulheres” e “mulher de todos os maridos”.
Por que tal negação da verdade histórica, que rompe com as declarações de intenção da série? Os realizadores anunciam que revisarão a história oficial — segundo eles, muito idealizada. Revelarão “a face oculta de Roma”. Na realidade, eles endossam todos os preconceitos sobre a questão e não fazem, em nome do realismo, nada mais que levar a censura hollywoodiana. Juntam cenas de religião e sexo sistematicamente “nuas e cruas” às túnicas de outrora.
Se nosso consultor quisesse verdadeiramente revisar a história, não colocaria Vercingétorix de bigode, cabelos longos e vestido com peles de animais. As moedas gaulesas da época o mostram com um perfil “romano”, de cabelos curtos e sem barba. Além disso, os espectadores acreditarão que Vercingétorix foi garroteado em público, no fórum, durante o triunfo de César [4]. A lista de pequenos e grandes erros históricos é longa.
Hierarquizar o processo civilizatório para impor nossa visão de mundo
Os realizadores esforçam-se na reconstrução das realidades materiais — com relativo sucesso —, mas evitam abordar aquilo que cria a identidade de um grupo humano — os sentimentos. Eles se imaginam, como bons ocidentais etnocentristas, sendo o modelo universal. Partindo do princípio de que “as relações humanas, as emoções e os sentimentos não mudam”, projetam sua concepção de humanidade para os romanos. O que nos vale afirmações como “os homens sempre quiseram a mesma coisa: dinheiro, glória, amor…”, ou ainda “por trás de todo grande homem existe uma grande mulher” [5], nas quais são julgadas a profundidade e a perspicácia histórica.
Os realizadores esqueceram (voluntariamente?) que os romanos se moviam, falavam, entendiam, enxergavam diferentemente dos ocidentais do século 21. As ligações com o espaço, o tempo e o corpo não eram as nossas. Os romanos pertenciam a uma cultura codificada — cultura do conveniente — onde cada um via a imagem de si sob o olhar do outro (à maneira da maior parte das sociedades em torno do Mediterrâneo). É o suficiente para compreender como as pessoas das sociedades tradicionais na Índia, Sicília, Córsega, Grécia ou Argélia se comportavam em seu cotidiano. Essa alteridade é vista, sentida e entendida ao primeiro gesto. No silêncio, risos incompreensíveis, maneira de olhar para o lado, dizer sem dizer e numa infinita complexidade de regras de etiqueta que determinam a distância dos corpos, a amplitude dos gestos e a altura da voz.
Sem dúvida, os realizadores não mostrariam nossos ancestrais romanos sendo tão próximos de trabalhadores imigrantes do Mali, do Magreb ou da Turquia…. Os produtores pretenderam mostrar os “verdadeiros romanos”, diferentes de nossa realidade atual. Mas essa diferença não resulta de uma pesquisa antropológica. Foi construída, a priori, a partir da dialética do já e do ainda não sobre o fundamento do homem eterno. Os romanos ainda não eram cristãos, mas eles já praticavam a trepanação [6]. O já é técnico, isso porque nós descendemos deles; o ainda não é moral, porque somos melhores do que eles.
Segundo a idéia geralmente aceita de que a civilização progride, é evidente que os romanos ainda não eram tão civilizados quanto nós porque eles ainda não haviam aceitado as virtudes pacificadoras do cristianismo e do comércio. Então, aprendemos que “para eles a força antecede o direito” – é o cúmulo para um povo que criou o direito de contrato – e que não foram “mais do que soldados: nem comerciantes, nem homens de negócios”. Para a anedota, Cícero, como todos os cavaleiros, tirava sua fortuna de negócios comerciais, e enriqueceu, entre outras maneiras, com especulação imobiliária. Aprendemos também que “para eles, a compaixão, a clemência, o amor não eram virtudes”. É suficiente ler Cícero, Tito Lívio ou Sêneca para verificar que a compaixão – miseratio -, a clemência – clementia – ou a amizade – amicitia – sempre estavam entre os comportamentos fundamentais da humanidade civilizada.
Mulheres subestimadas… costumes deturpados
O “homem eterno” é, sobretudo, representado pelas mulheres, reduzidas à sua sexualidade. A série abusa do eterno feminino, da mãe e da prostituta. As patrícias são debochadas, perversas, ciumentas. Só agem por amor ou ódio. Manipulam seus filhos ou amantes. Esqueceu-se de que as grandes damas romanas foram, em sua maioria, mulheres de negócios e de letras. Mulheres “sublimes” que partilhavam os mesmos valores que os homens de sua posição. Se elas não exerciam atividades políticas, possuíam um papel essencial na religião, o privilégio de portar jóias de ouro e de circular em liteiras. Um detalhe: enquanto a arqueologia comprovou que a magia em Roma era praticada essencialmente por homens, o filme mostra que eram as mulheres que se devotavam à feitiçaria.
As mulheres pertencentes a classes inferiores não foram descritas corretamente. Um voyeurismo duvidoso mostra uma camponesa violada por um soldado na campanha romana, as prostitutas em um lupanar e uma escrava tratada como um objeto — ainda que gentilmente — por Pulo, simples homem de tropa. A época contemporânea se regozija de se indignar diante dessa sexualidade violenta, arcaica, instintiva, universal contra as mulheres. A visão proposta também é falsa. O prazer erótico em Roma era feito apenas de doçura, languidez e passividade. A história da violação na campanha é historicamente impossível. De início, um soldado não sairia de sua unidade em marcha sem ser imediata e severamente punido. Além disso, a violação era, certamente, praticada em guerras, sempre contra o inimigo. Isso ocorria freqüentemente ao fim de uma longa campanha, quando o exército entrava vitorioso em uma cidade, a fim de, sob a ordem do general, punir uma resistência excessiva. A violação se apresenta como um ato simbólico — da mesma forma que a pilhagem — exercida contra mulheres e homens. Mesmo assim, era bastante rara, e suscitava o horror, não tendo relação com a sexualidade viril e juventude.
Niobe [7], esposa do centurião, foi retratada como dona-de-casa, o que é extremamente enganador. As mulheres se dedicavam pouco a seus filhos. Além do mais, a arqueologia nos ensina que aquelas que tinham tais ocupações exerciam, também, atividades econômicas na cidade — comércios ou ateliês. Algumas pertenciam a colégios profissionais. Inscrições mostram as mulheres de negócios seguindo oficialmente os candidatos às eleições. A história de Niobe não é verossímil. Crente que seu marido estava morto – ausente há oito anos – ela mantinha um amante, com o qual teve uma criança que educou em sua casa. Quando seu cônjuge descobriu a infidelidade, se descontrolou. Durante a discussão Niobe caiu de uma janela e morreu, num suposto suicídio. Essa aventura não condiz com o que sabemos dos costumes romanos. Uma mulher romana livre – e não uma liberta – só se suicidaria em caso de violação [8], com o fim de salvar sua honra. Em caso de adultério, não há mais honra a salvar. Antes, Niobe teria que abandonar seu filho a um mercador de escravos. E, caso o marido soubesse do adultério, teria o direito de matá-la.
A falta que faz Satyricom, de Fellini
De fato, por meio da ficção, a série pretende apenas confortar a ideologia imperialista do ocidente e a fé na sua evolução moral. Os erros históricos são artefatos do gênero. Tomemos o exemplo do Senado romano, ancestral de nossas assembléias políticas. Os senadores votam com mãos levantadas, em uma sala circular, e se combatem como maltrapilhos. Vemos também Marco Antônio, tribuno da plebe, sentado. Entretanto, o senado romano era retangular, os senadores votavam colocando-se ao lado daqueles que aprovavam. Não possuíam nenhum comportamento passível de lhes fazerem perder sua auctoritas [9]. Além do mais, os tribunos da plebe não podiam sentar-se no Senado. Eram mantidos fora, com porta aberta, para poderem se opor com seu veto.
Os produtores tomaram o voto pelo elevar de mãos e a sala redonda do imaginário comum — reconstruído em outros filmes e séries, como Julio César [10] ou Eu, Cláudio, [11], sobre a cidade antiga. Adicionaram violência física, já que que esse era um povo bárbaro. Enquanto nós – “seres civilizados”— debatemos com violência verbal, eles o faziam com as mãos. A presença de Marco Antônio na sala do Senado facilita, sem dúvida, a narração cinematográfica.
Enfim, os realizadores propõem uma ilusão positivista: a realidade histórica será materialmente possível de se objetivar. Ilusão que combina com um certo “imperialismo humanista”. Todos os homens são parecidos em seus corpos, cabeça e coração; somente variam suas condições materiais e nível de civilização. Essa se embasa em valores mais ou menos primitivos, como honra, coragem e fidelidade.
Temos acesso a uma civilização somente por seu imaginário. A reconstituição das condições materiais vem em seguida, e tem sentido, apenas, em função desse imaginário. Os romanos só conheciam, como gêneros de narrativa, a grande história ou as récitas fabulosas. Quanto mais a série cai na pequena história, a pretexto do realismo, mais se distancia da realidade romana.
Por mais paradoxal que possa parecer, o único verdadeiro filme histórico sobre Roma é Satyricon (1969) de Federico Fellini. Nele, o cineasta é parte do imaginário romano, de uma récita fabulosa – o Satyricon de Petrônio, que não trata da reali